Foi
um período profundamente triste, meu pai sofreu muito, mas também
houve descoberta. Ali naquele hospital, vó, foi a primeira vez que o
vi chorar. Mesmo com muita dor, ele não chorava. O único dia em que
chorou foi quando foi fazer um exame em um andar diferente do
hospital. Fui acompanhando o auxiliar de enfermagem que empurrava sua
maca e, enquanto aguardávamos, meu pai fez um sinal para que eu me
aproximasse. Assim que cheguei meu ouvido perto de sua boca, ele
disse: “Eu estou sofrendo porque fiz sua mãe sofrer”.
Surpreendida por aquela ação e compadecida de sua situação,
tentei desconversar e dizer que não era nada daquilo. Ele insistiu:
“Não, filha, eu sei. Eu estou sofrendo porque fiz sua mãe
sofrer”. E chorou calado. Eu segurei o choro durante o tempo do
exame e enquanto o acompanhava de volta ao quarto. Só então me
tranquei no banheiro para chorar toda aquela tristeza.
O
quadro dele foi se agravando a ponto de só conseguir ficar à base
de morfina. Os médicos já haviam conversado comigo sobre a
gravidade, que não havia cura, mas que fariam o possível para que
ele pudesse ter dignidade até o fim. Mesmo assim, vó, eu não
queria aceitar. Fazia apenas um ano desde a morte da minha mãe e eu
não conseguia conceber ficar órfã de pai também. À época eu era
espírita kardecista e todos os dias rezava a oração para salvar
moribundos.
Eu
me sentia esgotada emocionalmente. Era uma jovem de vinte e dois anos
enfrentando muitas tristezas de uma só vez, mas todos os dias estava
lá, mesmo me aborrecendo por vezes com os amigos e com a namorada
dele. Com o Evangelho na mão, eu seguia firme.
Um
dia um grupo de auxiliares de enfermagem me chamou para a sala onde
ficavam. Uma moça me ofereceu uma xícara de chá de camomila e um
homem gentil, negro, de voz doce, me disse:
“Você
precisa deixar seu pai ir. Já fez tudo o que podia por ele.
Trabalhamos aqui há anos e vimos muitas pessoas morrerem sozinhas,
completamente abandonadas. Seu pai, não, ele teve você. Todos nós
comentamos, até a equipe médica comenta da sua devoção. Mesmo tão
jovem, esteve aqui dia após dia. Mas você precisa deixar ele ir.”
Desabei
no choro. Pela primeira vez eu podia chorar sem ninguém me pedir pra
parar. E chorei todo o choro represado, o choro pela morte da minha
mãe, as lágrimas barradas pelo “você precisa ser forte”.
Pessoas que não me conheciam me enxergaram como humana, perceberam
meu sofrimento e meu pedido de socorro silencioso. Aquele choro me
tirou da anestesia, do “estou bem, meu pai vai ficar bom”. Hoje
percebo que muita gente não me ofereceu ajuda porque realmente
acreditava que eu daria conta de tudo.
Fiquei
ali chorando e, entre um gole e outro de chá de camomila, entendi
que precisava aceitar aquela situação. Eu tinha medo da perda, não
conseguia vislumbrar uma vida sem alguém pra me orientar. Mas meu
pai estava convivendo com dores agudas, já estava respirando com
ajuda de aparelhos, o olhar estava perdido. “Fique aqui na nossa
sala o tempo que precisar, se liberte do peso”, disseram os
enfermeiros. Pareciam anjos que você havia mandado em meu socorro,
vó.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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