Solteira,
chorei.
Casada,
já nem pranto tive.
Viúva,
a lágrima teve saudade de mim.
Miserinha
Na
manhã seguinte, parto cedo para o mercado do peixe, à procura de
Miserinha. Recordo-me dela, no convés do barco que me trouxe a
Luar-do-Chão. Parecia predestinado que voltaria a encontrar a gorda
senhora. O lenço que ela lançara às águas do rio parecia ainda
flutuar no meu olhar. Para minha protecção, ela dissera.
No
bazar, vou garimpando entre as verduras e as tendas das peixeiras. A
multidão fervilha, tudo se vende, desde agulhas a carroçarias de
camião. Jovens rolando pedaços de cana-de-açúcar entre os dentes
me fazem lembrar sabores antigos. Recordo as multidões da cidade e
como meu pai as descrevia: só há lá dois tipos de pessoas: uns
aproximam-se de nós para pedir, os outros para nos roubar.
Por
fim, descortino Miserinha. Ela lá está, meio adormecida, trocando
conversa com as vendedeiras.
– Miserinha?
– Sou
quase eu, Miserinha Botão.
Não
me olha. Está centrada em medir-me a voz. Por fim, exclama: –
Você, meu sobrinho? Então ela se lança, sem direcção, para um
abraço. Em mim os seus braços se demoram enquanto sussurra em meu
ouvido: éramos família, ela o soubera desde que me vira no barco.
Mais afiada que lâmina a vida decepara os laços dos nossos
destinos. O tempo, depois, tem ilusão de costureira. Ela memorizara
a minha voz, desde o momento que me reconhecera na travessia do rio.
– Tia
Miserinha, o Avô quer que vá para nossa casa.
– Eu
sei, ele sempre quis. Mas não posso.
– Aquela
é a sua casa.
– Minha
casa é esse mundo todo. Deste e do outro lado do rio.
A
sua recusa é definitiva. Eu não percebia. Miserinha explica: no
mundo de hoje, tudo é areia sem castelo. Há lugar de morar, há
lugar de viver. Agora, lhe faltava era um lugar de morrer. Pede-me
que escute um pedido simples: enquanto estiver na Ilha eu que dê uma
volta pelas ruelas, só para ver se ela não estaria por ali tombada,
num beco sem luz.
Esse
o seu maior temor: ser deixada como os miseráveis que morrem e ficam
nas bermas, a apodrecer, sem amor, nem respeito. Nunca aconteceu
antes, aquele virar de costas ao irmão caído. Em Luar-do-Chão, nem
há palavra para dizer “pobre”. Diz-se “órfão”. Essa é a
verdadeira miséria: não ter parente. Miserinha exclama: como
estamos doentes, todos nós! Era ela que estava vendo sombras? Ou
seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa cegueira que
é deixarmos de sofrer pelos outros?
– É
que eu já ando a bicho, farejando poeiras.
Aprendera
a cirandar entre a cidade e a Ilha. Se apoiava no ajuntamento dos
viajantes, fosse a multidão um corpo único que lhe desse mão e
direcção. O barco a fazia ficar mais jovem, dizia.
– Sobre
aquelas águas nenhum Cristo andou.
Como
o vento que sopra contra nós e nos devolve o nosso próprio cuspo,
assim decorrera a sua vida. Na cidade era mais fácil esquecer.
Porque ela se juntava aos muitos pedintes e percorria as grandes
avenidas. Pedia aos brancos. E aos indianos. É triste ficar ao sabor
de outra raça para sobrevivermos, dizia Miserinha. Afinal, a família
não passa pelo sangue, pela raça. Somos irmãos de quem?,
perguntava. Nem os pobres, hoje, se juntam, solidários.
– Às
vezes recebo coisas, dinheiros. Deram-me aquele lenço, esse que
tombou no mar.
De
uma dobra da capulana desenrola moedas que trazia consigo. Conferia
as quantidades, mais pelo som que pelo aspecto. Ela se apurava nessa
ciência em que os miseráveis se parecem com os ricos – só sabem
contar em se tratando de dinheiro.
– Miserinha:
nós queremos que fique em nossa casa.
– Admirança
está lá em casa?
– Está
sim, porquê?
Um
sorriso triste, um imperceptível murmúrio. O alívio é irmão
gêmeo do desapontamento. Ambos se dizem do mesmo modo: pelo suspiro.
E é suspirando que Miserinha acrescenta: – Eu não posso ir para
Nyumba-Kaya. Porque essa casa já não tem raiz. Não tarda a que se
vá embora.
– Se
vá embora?
– Vão
levar essa casa, meu filho.
– Vão
levar como?
– Vão
levar tudo. Já levaram nossa alma. Agora só falta a Ilha.
Com
um gesto me pede que me retire. Ela tem os seus afazeres, suas
obrigações secretas. Se ela não podia ver, restava-lhe essa
pequena vingança de manter oculta parte do seu viver. Eu que a
deixasse só, era hora de ela se ajeitar pelos descaminhos, tudo
medido pela inclinação das sombras.
Respeito
o seu pedido e regresso a Nyumba-Kaya. Sem pensar, desemboco na sala
grande. O Avô lá está, teimando em sua horizontalidade. Fico ali,
junto a seu corpo, em solitário velório. Me assalta uma vontade
absurda de me deitar no chão e olhar os céus, na solitária
companhia de Dito Mariano. É o que faço. Já estendido no soalho,
vou alongando sossego numa quase sonolência. A ausência de tecto,
naquela visão, me sugere haver uma chaminé por onde fossem saindo
as nuvens. E assim, amolecido, adormeço.
Desperto,
sacudido por abalo de perder chão. Nem bem sei onde me encontro.
Olho em volta, em desfoco, e acredito ver mexer a perna do Avô. A
meu lado, se estende um lençol. Meu peito arqueja à medida que vou
levantando uma ponta do pano. Como se fosse a uma criança dormindo,
o lençol recobre uns papéis. Tomo-os na mão e estremeço.
A
mesma caligrafia, o mesmo desafio para meus olhos estupefactos:
Eu
não lhe pedi? Não lhe pedi que não revelasse a ninguém estes
modos de aparição? Por que razão mostrou estas cartas a
Dulcineusa? Você rompeu a promessa. Agora, não me resta senão me
anunciar, perder meu último mistério. Quem fala nestas cartas sou
eu, seu Avô Mariano. Não se pergunte mais, não duvide de mais
ninguém. Sou eu, Dito Mariano, o sombrio escrevente.
Por
que razão escrevo? Porquê não lhe apareço em voz, falando dentro
de sua cabeça? Escrevo porque assim tem mais distância. Eu podia
falar-lhe enquanto você espreita na sala sem tecto. Mas já não
tenho voz que seja visível. E depois sofro de um medo: soltar o
suspiro finalíssimo perto de si. Você corria o risco de me
acompanhar nesse desfiladeiroo Assim eu uso a sua mão, vou na sua
caligrafia, para dizer as minhas razões. Sou como o besouro. Abro as
asas, as de fora, só para perder resguardo. Porque lá dentro, bem
ocultas, estão as outras asas, as voáveis, essas que me levam para
além de mim.
Escutou
Dulcineusa falar de mim? Tanta saudade, meu Deus, tanta saudade ela
me dedica! Até me faço pena, só agora ela me dá a medida de seu
querer. Coitadinha, ela me tinha amor. Mas eu que posso dizer do
amor? Ela queria a prova e eu, seguindo a tradição, não podia
mostrar paixão por mulher. Lá na cidade ouvi dizer que vocês já
usam modos dos brancos. E dão-se as mãos e até se beijam às
vistas do público. Mas, aqui, só homem que foi enfeitiçado é que
exibe carinhos por motivo de mulher. A velhice me ensinou: o amor é
coisa de vivo. Ou talvez o amor seja a mãe de toda a coisa viva.
Pois, eu, mesmo antes, nunca fui bem vivo. Por isso, nunca o amor foi
para mim.
Nem
sei o que me prendia a Dulcineusa, mas era como se adivinhasse que
seria nos braços dela que eu viria a morrer. Dulcineusa era a minha
despedideira. No seu copo eu tinha, tantas vezes, saído de mim. E
seria naquele mesmo copo que me despediria de mim. Como se ela se
convertesse em mãe e eu descendesse da sua carne, seu materno
suspiro. Aquele seria o meu parto póstumo.
Querem
agora que me dirija para o cemitério. Antes não me importava. Me
demorava por lá, naquelas árvores tão cheias de sombra. O
cemitério era tão bonito, tão prazeiroso que até dava vontade de
morrer. Nesses tempos, ali corria um riachinho, uma aguinha ainda
solteira. Olhava as campas, ordenadas para todo o sempre e me baixava
o desejo de um sono. Isso acontecia quando eu era moço e a vida
ainda não doía. Agora, há muito que me afasto, evitando aquelas
bandas.
Dulcineusa
sabe desses gostos e desagostos, como sabe de tudo em mim. Viu como
ela estremeceu ao escutar o nome de Miserinha? É que, por muitos
anos, essa mulher foi minha amante. Dulcineusa sabia, desde o
primeiro momento. Não me importo, dizia ela. Até que, por tradição,
eu devia tomar conta de Miserinha. São mandos antigos, a gente se
conforma. Assim falava Dulcineusa. Mas não era verdade de boca e
coração. Nofundo, ela se ciumava a ponto de encomendar morte para a
cunhada. Miserinha sabe desse ódio. Por isso ela se recusa a vir.
Também, quem sabe, ela já ganhou hábito de viver na berma daquelas
obscuridades? O melhor é deixarmos assim as mulheres em regime de
separação de males. Cada uma no pátio das suas saudades. Trate,
sim, de visitar o coveiro Curozero Muando. Ele lhe explicará os
segredos deste nosso mundo.
Mariano
PS: Lhe peço, agora: me traga uma moça gostosa, carne rija para eu
abraçar na hora de meu último momento. Para que eu, nesse instante,
me embebede dessa ilusão de não me desconsistir só, sozinhamente.
Pouso
a carta com um riso atravessado: uma moça para fechar a despedida? O
Avô queria morrer como o peixe: o corpo todo na boca. Espreito o
aparente cadáver. Em voz alta, dou despacho à minha inquietação:
– Não é o senhor, não pode ser o Avô que escreve isto.
– Meu
neto: você está rezar junto com seu Avô?
É
Avó Dulcineusa que me interrompe. No contraclaro distingo melhor a
sua voz que os seus contornos. A Avó avança e, com decisão, me
retira o papel da mão.
– Dê-me
cá essa porcaria! Rasga a carta. E, de novo, volta a dilacerar os
pequenos pedaços. De rasgão em rasgão, cada papel acaba tendo não
mais que o tamanho de uma simples palavra. Os pedacinhos lhe escapam
dos dedos e borboleteiam rente ao chão.
– Avó,
como é que rasga uma coisa que não é sua?
– Pouco
barulho, neto. Tenha respeito que trago visitas.
Virando-se
para a porta ela manda avançar alguém que não reconheço
imediatamente. Mas logo, pelo arrastar indeciso das pernas, constato
tratar-se da gorda Miserinha. A Avó a vai puxando por um braço, com
exibido orgulho, como se fosse um troféu de guerra.
– Se
admira, meu neto? Pois, fui eu que trouxe a minha cunhada. Ela vai
ficar aqui comigo.
Com
seus olhos pisqueiros, Miserinha passa em revista a sala como se
captasse inavistáveis seres. Segura Dulcineusa com as duas mãos
enquanto murmura: – Me conduza, cunhada. Me conduza até onde ele
está.! xAs duas avançam bambeadas até à mesa fúnebre. A Avó
retrocede, em silêncio. Miserinha fica só, ante o falecido. E ali
se demora. Sem palavra, sem gesto. Por fim, num suspiro, sua voz
vacila: – Este homem está mentir.! Como sempre, ele está mentir.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário