terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Capítulo dez | Sombras de um mundo sem luz


Solteira, chorei.
Casada, já nem pranto tive.
Viúva, a lágrima teve saudade de mim.
Miserinha

Na manhã seguinte, parto cedo para o mercado do peixe, à procura de Miserinha. Recordo-me dela, no convés do barco que me trouxe a Luar-do-Chão. Parecia predestinado que voltaria a encontrar a gorda senhora. O lenço que ela lançara às águas do rio parecia ainda flutuar no meu olhar. Para minha protecção, ela dissera.
No bazar, vou garimpando entre as verduras e as tendas das peixeiras. A multidão fervilha, tudo se vende, desde agulhas a carroçarias de camião. Jovens rolando pedaços de cana-de-açúcar entre os dentes me fazem lembrar sabores antigos. Recordo as multidões da cidade e como meu pai as descrevia: só há lá dois tipos de pessoas: uns aproximam-se de nós para pedir, os outros para nos roubar.
Por fim, descortino Miserinha. Ela lá está, meio adormecida, trocando conversa com as vendedeiras.
Miserinha?
Sou quase eu, Miserinha Botão.
Não me olha. Está centrada em medir-me a voz. Por fim, exclama: – Você, meu sobrinho? Então ela se lança, sem direcção, para um abraço. Em mim os seus braços se demoram enquanto sussurra em meu ouvido: éramos família, ela o soubera desde que me vira no barco. Mais afiada que lâmina a vida decepara os laços dos nossos destinos. O tempo, depois, tem ilusão de costureira. Ela memorizara a minha voz, desde o momento que me reconhecera na travessia do rio.
Tia Miserinha, o Avô quer que vá para nossa casa.
Eu sei, ele sempre quis. Mas não posso.
Aquela é a sua casa.
Minha casa é esse mundo todo. Deste e do outro lado do rio.
A sua recusa é definitiva. Eu não percebia. Miserinha explica: no mundo de hoje, tudo é areia sem castelo. Há lugar de morar, há lugar de viver. Agora, lhe faltava era um lugar de morrer. Pede-me que escute um pedido simples: enquanto estiver na Ilha eu que dê uma volta pelas ruelas, só para ver se ela não estaria por ali tombada, num beco sem luz.
Esse o seu maior temor: ser deixada como os miseráveis que morrem e ficam nas bermas, a apodrecer, sem amor, nem respeito. Nunca aconteceu antes, aquele virar de costas ao irmão caído. Em Luar-do-Chão, nem há palavra para dizer “pobre”. Diz-se “órfão”. Essa é a verdadeira miséria: não ter parente. Miserinha exclama: como estamos doentes, todos nós! Era ela que estava vendo sombras? Ou seriam os demais que já nada enxergavam, doentes dessa cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?
É que eu já ando a bicho, farejando poeiras.
Aprendera a cirandar entre a cidade e a Ilha. Se apoiava no ajuntamento dos viajantes, fosse a multidão um corpo único que lhe desse mão e direcção. O barco a fazia ficar mais jovem, dizia.
Sobre aquelas águas nenhum Cristo andou.
Como o vento que sopra contra nós e nos devolve o nosso próprio cuspo, assim decorrera a sua vida. Na cidade era mais fácil esquecer. Porque ela se juntava aos muitos pedintes e percorria as grandes avenidas. Pedia aos brancos. E aos indianos. É triste ficar ao sabor de outra raça para sobrevivermos, dizia Miserinha. Afinal, a família não passa pelo sangue, pela raça. Somos irmãos de quem?, perguntava. Nem os pobres, hoje, se juntam, solidários.
Às vezes recebo coisas, dinheiros. Deram-me aquele lenço, esse que tombou no mar.
De uma dobra da capulana desenrola moedas que trazia consigo. Conferia as quantidades, mais pelo som que pelo aspecto. Ela se apurava nessa ciência em que os miseráveis se parecem com os ricos – só sabem contar em se tratando de dinheiro.
Miserinha: nós queremos que fique em nossa casa.
Admirança está lá em casa?
Está sim, porquê?
Um sorriso triste, um imperceptível murmúrio. O alívio é irmão gêmeo do desapontamento. Ambos se dizem do mesmo modo: pelo suspiro. E é suspirando que Miserinha acrescenta: – Eu não posso ir para Nyumba-Kaya. Porque essa casa já não tem raiz. Não tarda a que se vá embora.
Se vá embora?
Vão levar essa casa, meu filho.
Vão levar como?
Vão levar tudo. Já levaram nossa alma. Agora só falta a Ilha.
Com um gesto me pede que me retire. Ela tem os seus afazeres, suas obrigações secretas. Se ela não podia ver, restava-lhe essa pequena vingança de manter oculta parte do seu viver. Eu que a deixasse só, era hora de ela se ajeitar pelos descaminhos, tudo medido pela inclinação das sombras.
Respeito o seu pedido e regresso a Nyumba-Kaya. Sem pensar, desemboco na sala grande. O Avô lá está, teimando em sua horizontalidade. Fico ali, junto a seu corpo, em solitário velório. Me assalta uma vontade absurda de me deitar no chão e olhar os céus, na solitária companhia de Dito Mariano. É o que faço. Já estendido no soalho, vou alongando sossego numa quase sonolência. A ausência de tecto, naquela visão, me sugere haver uma chaminé por onde fossem saindo as nuvens. E assim, amolecido, adormeço.
Desperto, sacudido por abalo de perder chão. Nem bem sei onde me encontro. Olho em volta, em desfoco, e acredito ver mexer a perna do Avô. A meu lado, se estende um lençol. Meu peito arqueja à medida que vou levantando uma ponta do pano. Como se fosse a uma criança dormindo, o lençol recobre uns papéis. Tomo-os na mão e estremeço.
A mesma caligrafia, o mesmo desafio para meus olhos estupefactos:

Eu não lhe pedi? Não lhe pedi que não revelasse a ninguém estes modos de aparição? Por que razão mostrou estas cartas a Dulcineusa? Você rompeu a promessa. Agora, não me resta senão me anunciar, perder meu último mistério. Quem fala nestas cartas sou eu, seu Avô Mariano. Não se pergunte mais, não duvide de mais ninguém. Sou eu, Dito Mariano, o sombrio escrevente.
Por que razão escrevo? Porquê não lhe apareço em voz, falando dentro de sua cabeça? Escrevo porque assim tem mais distância. Eu podia falar-lhe enquanto você espreita na sala sem tecto. Mas já não tenho voz que seja visível. E depois sofro de um medo: soltar o suspiro finalíssimo perto de si. Você corria o risco de me acompanhar nesse desfiladeiroo Assim eu uso a sua mão, vou na sua caligrafia, para dizer as minhas razões. Sou como o besouro. Abro as asas, as de fora, só para perder resguardo. Porque lá dentro, bem ocultas, estão as outras asas, as voáveis, essas que me levam para além de mim.
Escutou Dulcineusa falar de mim? Tanta saudade, meu Deus, tanta saudade ela me dedica! Até me faço pena, só agora ela me dá a medida de seu querer. Coitadinha, ela me tinha amor. Mas eu que posso dizer do amor? Ela queria a prova e eu, seguindo a tradição, não podia mostrar paixão por mulher. Lá na cidade ouvi dizer que vocês já usam modos dos brancos. E dão-se as mãos e até se beijam às vistas do público. Mas, aqui, só homem que foi enfeitiçado é que exibe carinhos por motivo de mulher. A velhice me ensinou: o amor é coisa de vivo. Ou talvez o amor seja a mãe de toda a coisa viva. Pois, eu, mesmo antes, nunca fui bem vivo. Por isso, nunca o amor foi para mim.
Nem sei o que me prendia a Dulcineusa, mas era como se adivinhasse que seria nos braços dela que eu viria a morrer. Dulcineusa era a minha despedideira. No seu copo eu tinha, tantas vezes, saído de mim. E seria naquele mesmo copo que me despediria de mim. Como se ela se convertesse em mãe e eu descendesse da sua carne, seu materno suspiro. Aquele seria o meu parto póstumo.
Querem agora que me dirija para o cemitério. Antes não me importava. Me demorava por lá, naquelas árvores tão cheias de sombra. O cemitério era tão bonito, tão prazeiroso que até dava vontade de morrer. Nesses tempos, ali corria um riachinho, uma aguinha ainda solteira. Olhava as campas, ordenadas para todo o sempre e me baixava o desejo de um sono. Isso acontecia quando eu era moço e a vida ainda não doía. Agora, há muito que me afasto, evitando aquelas bandas.
Dulcineusa sabe desses gostos e desagostos, como sabe de tudo em mim. Viu como ela estremeceu ao escutar o nome de Miserinha? É que, por muitos anos, essa mulher foi minha amante. Dulcineusa sabia, desde o primeiro momento. Não me importo, dizia ela. Até que, por tradição, eu devia tomar conta de Miserinha. São mandos antigos, a gente se conforma. Assim falava Dulcineusa. Mas não era verdade de boca e coração. Nofundo, ela se ciumava a ponto de encomendar morte para a cunhada. Miserinha sabe desse ódio. Por isso ela se recusa a vir. Também, quem sabe, ela já ganhou hábito de viver na berma daquelas obscuridades? O melhor é deixarmos assim as mulheres em regime de separação de males. Cada uma no pátio das suas saudades. Trate, sim, de visitar o coveiro Curozero Muando. Ele lhe explicará os segredos deste nosso mundo.
Mariano PS: Lhe peço, agora: me traga uma moça gostosa, carne rija para eu abraçar na hora de meu último momento. Para que eu, nesse instante, me embebede dessa ilusão de não me desconsistir só, sozinhamente.

Pouso a carta com um riso atravessado: uma moça para fechar a despedida? O Avô queria morrer como o peixe: o corpo todo na boca. Espreito o aparente cadáver. Em voz alta, dou despacho à minha inquietação: – Não é o senhor, não pode ser o Avô que escreve isto.
Meu neto: você está rezar junto com seu Avô?
É Avó Dulcineusa que me interrompe. No contraclaro distingo melhor a sua voz que os seus contornos. A Avó avança e, com decisão, me retira o papel da mão.
Dê-me cá essa porcaria! Rasga a carta. E, de novo, volta a dilacerar os pequenos pedaços. De rasgão em rasgão, cada papel acaba tendo não mais que o tamanho de uma simples palavra. Os pedacinhos lhe escapam dos dedos e borboleteiam rente ao chão.
Avó, como é que rasga uma coisa que não é sua?
Pouco barulho, neto. Tenha respeito que trago visitas.
Virando-se para a porta ela manda avançar alguém que não reconheço imediatamente. Mas logo, pelo arrastar indeciso das pernas, constato tratar-se da gorda Miserinha. A Avó a vai puxando por um braço, com exibido orgulho, como se fosse um troféu de guerra.
Se admira, meu neto? Pois, fui eu que trouxe a minha cunhada. Ela vai ficar aqui comigo.
Com seus olhos pisqueiros, Miserinha passa em revista a sala como se captasse inavistáveis seres. Segura Dulcineusa com as duas mãos enquanto murmura: – Me conduza, cunhada. Me conduza até onde ele está.! xAs duas avançam bambeadas até à mesa fúnebre. A Avó retrocede, em silêncio. Miserinha fica só, ante o falecido. E ali se demora. Sem palavra, sem gesto. Por fim, num suspiro, sua voz vacila: – Este homem está mentir.! Como sempre, ele está mentir.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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