segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A rainha de Ferryland

Blue vê o nome que escolheu para si refletido em todo lugar ao redor: blocos de gelo lambidos pela lua, oceano denso de gelo flutuante, líquido transformado em vidro. Ela masca um pedaço de biscoito seco no convés enquanto a tripulação do navio dorme, espana as migalhas de suas luvas e as observa caírem no breu salpicado de branco das águas.
O nome do veleiro é A rainha de Ferryland, e carrega uma tripulação de caçadores sedentos por empilhar escalpos no porão, famintos pelo que pele e carne e gordura poderão comprar na baixa estação. O interesse de Blue está parte no óleo, mas principalmente na instalação de novas tecnologias a vapor: há uma série de resultados a alcançar, um ponto a partir do qual derrubar a indústria, um leme com o qual conduzir esses navios por entre a cruz de um fracasso e a espada de outro, a um curso que leva para Jardim.
Sete filamentos se enredam no colapso ou na sobrevivência desta pescaria — insignificante aos olhos de alguns, imensurável aos de outros. Em alguns dias, Blue se pergunta por que alguém sequer se incomodou em criar números tão pequenos; outros dias, ela supõe que até o infinito precisa começar em algum ponto.
Esses dias raramente acontecem quando está em uma missão.
Quem pode dizer o que Blue pensa durante uma missão, quando missões são frequentemente vidas inteiras, quando a história criada para que ela empunhe um gancho de caçador leva anos? Tantos papéis, vestidos, festas, calças, intimidades envolvidas em conseguir uma cabine e se agasalhar em roupas disformes para se proteger do inverno do Novo Mundo.
O horizonte pisca e a manhã boceja sobre ele. Caçadores avançam pelas laterais do veleiro, Blue entre eles: remam pelo gelo, ferramentas à mão, rindo, cantando, acertando crânios e cortando peles.
Blue já carregou três peles a bordo quando uma grande e impetuosa foca atrai sua atenção: ela levanta a cabeça ameaçadoramente por meio segundo antes de disparar para a água. Blue é mais rápida. O crânio da foca se quebra como um ovo sob seu porrete. Ela se agacha ao lado do animal para inspecionar a peliça.
A visão a atinge como um hakapik. Ali, na pele coberta de gelo, manchada e marcada como papel artesanal barato, pontos e salpicos se transformam em uma palavra que ela consegue ler: “Blue”.
Sua mão não treme enquanto ela arranca o couro. Sua respiração está tranquila. Ela vinha mantendo as luvas majoritariamente limpas, mas agora as mancha de vermelho, vermelho como certo nome.
Enterrado nas profundezas das vísceras brilhantes está um pedaço de bacalhau seco, não digerido, arranhado e sulcado com linguagem. Ela mal percebe que se acomodou sobre o gelo, pernas cruzadas, confortável, como se fosse uma xícara de chá, e não tripas de foca, soltando um vapor escuro e fragrante ao seu lado.
Ela vai guardar a peliça. O bacalhau, vai esmagar até virar pó, espalhar sobre algum biscoito rançosamente amanteigado e comer no jantar; o corpo, ela vai descartar do jeito habitual.
Quando a rastreadora chega, forte e rápida em seu encalço, tudo o que resta é uma mancha vermelho-escura na neve azul. De quatro, ela lambe e chupa e mastiga até que toda a cor desapareça.

Amal El-Mohtar e Max Gadstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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