A grande mulher internacional eu a vi uma
vez — minto! — eu a vislumbrei uma vez no antigo aeroporto do
Galeão, numa hora tipo 4:45 da manhã, e apenas por um instante. Eu
chegava num inverossímil avião de Bogotá; ela ia... meu Deus, ela
transitava de... de uma certa maneira intransitiva, como se apenas
acontecesse ali, de passaporte na mão e carregando uma pele no braço
quase a tocar o solo. Sim, foi apenas um instante, mas me feriu os
olhos de beleza para sempre.
A segunda vez, anos depois, foi em
Munique — eu digo Munique e vocês estranhariam se eu confessasse
que também poderia ser Zurique e até mesmo Frankfurt; na verdade eu
não sei.
Como? — perguntará um filisteu — o
senhor não sabe em que aeroporto se achava? Calma, houve o seguinte.
Eu estava em Paris e fui a Orly tomar um avião da Panair para o Rio.
Alguém me explicou que tinha havido uma alteração: nosso avião
iria primeiro a Munique (ou Frankfurt? ou Zurique?) e lá deixaria de
ser da Panair para ficar sendo da Varig; não houve isso, não houve
um dia em que houve isso? Lembro-me de que na volta conversei com um
comandante — da Varig? da Panair? — que era irmão ou tio da
escritora Gilda de Melo e Sousa, que é mulher do crítico Antônio
Cândido, me lembro do tempo em que eles se namoravam na Confeitaria
Vienense, na rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, faziam parte
de uma roda que tinha o Paulo Emílio, pessoal de uma revista chamada
Clima, eles bebiam leite maltado, noutra mesa eu com o João
Leite ou o Arnaldo Pedroso d'Horta tomávamos cerveja Original, de
Ponta Grossa, Paraná, que a Antártica miserável comprou e
destruiu; aliás a Gilda é também(?) sobrinha de Mário de Andrade
— será que o comandante era parente de Mário? Deixo as indagações
à pesquisa dos universitários paulistas.
Na verdade não seria difícil
estabelecer dia e lugar certos da aventura; creio que no avião ia
também o depois presidente da Varig, Sr. Eric de Carvalho, ele antes
não foi da Panair?, ou faço confusão? O que interessa é que num
aeroporto de língua predominantemente alemã fiquei algum tempo a
pasmar pela madrugada. De súbito começaram a chegar e partir
aviões.
Num deles — de Atenas, conexão para
Estocolmo? de Oslo para Turim? — de súbito surgiu aquela mulher.
Linda! Tão linda assim, só mesmo sendo mulher de aeroporto
internacional. Por quê? A sua qualidade de transiente (ela jamais
está embarcando ou chegando, é sempre passageira em trânsito) lhe
dá um leve ar de fadiga e também de excitação. E as pernas longas
e os sapatos desnecessariamente tão altos parecem ter prazer em
pisar, deter-se, avançar, voltar-se; a mão, cujo dorso é de uma
cor de marfim levemente dourado, segura uma ficha, e uns óculos, mas
se ergue para pegar a mecha de cabelos que tombou, então levanta um
pouco a cabeça e podemos ver os olhos, inevitavelmente azuis, e diz
no, ou non ou nein, e quando um homem
uniformizado lhe murmura algo ela faz com a cabeça que sim, e sorri
— e que iluminação, que matinalidade inesperada no sorriso dessa
mulher entretanto madura! Madura, não. Digamos: de vez.
(Aurélio Buarque de Holanda, mestre e
amigo: eu não gosto de inventar modas nem palavras em português,
mas lá atrás tive de escrever “qualidade de transiente” porque
não temos a palavra “transiência”, que não custava a gente
roubar do inglês; e agora escrevo “de vez”, quando na verdade
isso já é um adjetivo que devia ser uma palavra só, querendo dizer
“quase madura”; peço-lhe uma providência, professor, para
facilitar a vida da gente, que vive de escrever nesta língua.) Não,
nunca haverá mulher tão linda no mundo como essa grande mulher de
aeroporto internacional quando mal amanhece, há um langor, e ao
mesmo tempo um imponderável nervosismo e uma leve confusão dos
fusos horários — e ela surge de uma porta de vidro dessas que se
abrem sozinhas quando a gente avança, e ela avança com uma grande
sacola de couro e lona e se detém...
Ou não se detém.
Rubem Braga, in Recados de primavera
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