“Muita religião, seu moço!” —
dizia ainda Riobaldo. — “Eu cá, não perco ocasião de religião.
Aproveito de todas. Bebo agora de todo rio...”
Ponha-se “língua” em lugar de
religião, e aí temos uma definição estilística da obra de
Guimarães Rosa. Nela estará acenada a hibridez de um sistema
expressivo cujos elementos provêm de origens as mais variadas, em
que termos de gíria (“o meu esmarte Patrão”, “Moço esporte
de forte”) e latinismos (“assim vocado e ordenado”; “as
infernas grotas”; “O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a
comunicação”) se misturam aos rodeios de acentuado sabor popular
e a preciosismos rebuscados.
Ao relacionar os componentes desse
estilo, em seu estudo nunca assaz citado, Manuel Cavalcanti Proença
afirma que, contudo, ele não constitui uma nova língua: “O que
ocorreu foi ampla utilização das virtualidades da nossa língua,
tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele [=
o autor] se serviu.” E para neles basear a analogia, Oswaldino
Marques, em seu estudo igualmente fundamental, cita em apoio das
inovações mais ousadas outros tantos “parâmetros”, termos
vernáculos tomados ao acaso.
Deve-se admitir, porém, a existência de
praxes não apoiadas em analogias. Estão neste caso as amálgamas de
dois vocábulos cuja fusão é provocada não por associação
intelectual, mas pela coincidência sonora de uma sílaba. Duas
palavras — fúnebre e brilho — fundem-se na parcela
sonora comum em funebrilho, para designar uma noção (enfeite
de caixão) até então não denominada com termo específico. Ou
então diligente e gentil fundem-se para indicar a
função momentânea de dois atributos em diligentil. Outros
exemplos: personagente (já citado), perséquito, sussurruído,
delirido, tumultroada, engenhingonça, afobafo, malandrajo,
excelentriste, dançandoar-se, descreviver. De momento não me
ocorre outro parâmetro a não ser tranquilômetro,
tranquilometragem, pertencentes à pseudolíngua
publicitária. Em tais casos a fantasia do autor substitui-se às
tendências da língua entregando-se à criação arbitrária de
neologismos com a mesma deleitação que inspira as bizarrices da
linguagem infantil na boca de sua personagem Brejeirinha.
Nem sempre o significado dessas inovações
é óbvio: mais de uma constitui enigma de decifração nada fácil,
capaz de suscitar as interpretações mais desencontradas. Veja-se
este exemplo, encontrado em “Nada e a nossa condição”: “Ante
e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens
que pulando gritavam, sebestos, diabruros”. O leitor fica intrigado
com o adjetivo não dicionarizado sebesto. Deverá ligá-lo a
sebesta (nome de árvore) ou a sebo (especialmente das
locuções: metido a sebo; ora, sebo!), tomá-lo por uma corruptela
de sebento ou considerá-lo uma amálgama audaciosa de sebo
+ besta ou de se (pronome) + besta? Todas essas
conjeturas, embora desencorajadas pelo contexto, hão de se
apresentar ao espírito do leitor mais prontamente do que o
verdadeiro radical, pedido emprestado ao substantivo grego sébas
(“temor religioso”, “veneração”) e ao correspondente verbo
sebo.
Outro exemplo, constante da “Pequena
palavra” já citada, mostra também como seria ilusório pretender
a uma compreensão integral de uma página de Guimarães Rosa. Ao
caracterizar o divertimento dos pastores húngaros diz que “se
alargam nas tabernas rurais, onde o país canta e dansa suas csardas,
que em ritmo alternam: a lentidão melancólica e lassa — e — o
ferver tenso agilíssimo de alegria doidada que alucina com um
inaudito frisson”. À primeira leitura o trecho não oferece
dificuldades: mas se matiza de engenhosa musicalidade aos olhos de
quem notar (mas quem notará?) que o autor, num enlevo de virtuoso,
encontrou jeito de encerrar nele os próprios termos que, em magiar,
designam as duas variantes do csárdás: lassu
(“lento”) e friss (“rápido”). Não é difícil prever
a perplexidade dos autores de teses de doutoramento sobre a linguagem
de João Guimarães Rosa (teses que já começam a aparecer, dentro e
fora do país) dando tratos à bola para desvendarem os mistérios
adrede espalhados pelo autor ao longo de suas páginas, enquanto
este, de longe, os observa com discreta malícia e aquelas suas
risadinhas cordiais de esfinge bem-educada.
Embora com raízes na língua, que não
desconhece palavras de polivalência funcional (como longe,
advérbio, adjetivo e substantivo), nas páginas de Guimarães Rosa
os vocábulos ganham elasticidade quase ilimitada. Não somente
substantivos, adjetivos e advérbios, mas conjunções e interjeições
trocam de categoria funcional com grande facilidade: “Mas a Moça
estava devagar.”; “a gente (...) pensava num logo luar”; “Desço
em pulos passos”; “outroras coisas”; “o que fácil não fiz”;
“os futuros antanhos”; “mal dava para se ver, no escurecendo”;
“a de nunca naturalidade”; “Sou de nem palavras.”; “Aquilo
na noite do nosso teatrinho foi de Oh.”; “Disse de não,
conquanto os costumes”, etc.
Assim como nas enálages supracitadas o
advérbio se disfarça em adjetivo ou substantivo, toda e qualquer
locução adverbial pode-se revestir de função nominal: “Noutro
de-repente”; “do meu mais-longe”; “os às-nuvens pináculos
dos montes”; “aquela a-pique difícil fazenda”; “no entre
algumas flores”; “o em-diabo pretinho Alfeu”, passando até a
se flexionar: “em-diabas confusões”; “ela batia com a cabeça,
nos docementes”. Mais ainda, uma frase qualquer se transforma em
epíteto ou substantivo: “um narizinho que-carícia”; “no se é
o que é que é”; “o em que me tive”.
Quer dizer os materiais da língua estão
em fusibilidade permanente, lavas que só criam forma ao derramar-se.
Nem todos os produtos dessa criação vulcânica saem graciosos ou
eufônicos: há os que irritam e provocam; mas o conjunto da erupção
é um espetáculo que subjuga.
Por enquanto só se pode conjeturar a
profundeza da revolução operada nas letras brasileiras por
Guimarães Rosa. Quem assina esta introdução pôde, como árbitro
de vários concursos de conto, observar a sedução exercida pelo seu
estilo nos novos prosadores de todas as regiões do Brasil.
Inimitável na intuição das correntes fundas do inentendível mundo
íntimo, assim como na transferência de episódios locais para
horizontes universais, sua obra, por enquanto, está agindo sobretudo
pelo aspecto epidérmico. É de se esperar que nos talentos bastante
fortes para se subtraírem ao perigo do arremedo servirá de estímulo
para o desapego de todos os padrões tradicionais. Mas parece pouco
provável que suas invenções e liberdades em sua totalidade venham
a se enquadrar no corpus do idioma, precisamente porque seu
poder está no vislumbre fugaz da instantaneidade.
“Evidentemente há coisas que só
entenderá em Grande sertão: veredas o sertanejo,
precisamente o menos provável de seus leitores” — pondera com
espírito Adolfo Casais Monteiro. Estendendo a observação a
Primeiras estórias, acrescentaria eu que há outras coisas
que só o dialetologista, outras que só o filósofo, outras ainda
que só o psicanalista entenderá — o que equivale a dizer que
nenhum leitor entenderá a obra na íntegra. Tenho que esse
entendimento nem sequer é visado pelo escritor. Trabalhando como o
cineasta, sabe que os detalhes de seus flagrantes só parcialmente
serão percebidos pelo público na rápida sucessão das imagens e
nem por isso deixa de calcular e apurar os seus menores efeitos. Por
menos que pegue dessa profusão barroca, o leitor médio ainda pegará
bastante para ceder ao encantamento.
Dessa própria riqueza surge a
possibilidade de se encontrarem intenções e subentendidos mesmo
onde não os há, de surgirem interpretações de surpreender o único
detentor de todas as chaves da obra, o próprio autor. Até agora não
me consta que ele tenha posto em dúvida a validez de qualquer
explanação, nem creio que venha a fazê-lo. Mas tampouco fornece as
chaves a ninguém. “Rosa não entrega nem a pau o mapa da mina” —
segundo uma expressão feliz de Afonso Arinos de Melo Franco. Solta
pelo seu criador, a obra passa a ter a sua própria vida, que a este
não é dado nem retificar nem influenciar. Tudo leva a crer que os
livros de Guimarães Rosa suscitem mais tentativas de decifração
que os de qualquer outro escritor brasileiro, e que estas os tornem
ainda mais densos e mais cheios de significados.
Conta-me Guimarães Rosa que os
compositores de tipografia, não entendendo uma de suas palavras ou
frases, têm-nas modificado involuntariamente; e que, ao rever as
provas, tem-lhe acontecido não emendar o erro por decorrer de uma
compreensão aceitável dos antecedentes, e por se ajustar bem ao
contexto.
O grande tradutor de Grande sertão:
veredas, Meyer-Clason (que neste momento está transplantando
para o alemão estas Primeiras estórias), resolvera a maior
percentagem possível dos enigmas verbais que formam o tecido desse
romance gigantesco. Enganou-se, porém, ao tomar “lagarta-de-fogo”
(equivalente de tatarana, alcunha de Riobaldo) por “lagartixa
de fogo” e ao traduzir esse misterioso nome de bicho por
Feuersalamander. Foi assim agregada à variante alemã do
livro uma conotação alquimística e medieval inexistente no
original, mas que o autor, depois de estranhá-la no princípio,
acabou por admitir como perfeitamente compatível com o destino da
personagem, que ganhava assim uma nova dimensão.
Espero ter dado ao leitor, nestas
considerações prévias demasiadamente difusas, uma ideia pelo menos
da extensão do mundo em que se vai embrenhar, com o risco certo de
perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se
reencontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhos de Guimarães
Rosa.
Paulo Rónai, in Os vastos espaços (introdução à Primeiras Estórias, de G. Rosa)
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