segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Te cuida, tchê

          Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “uma recepcionista eclética, pois recebe e dá”), faz o possível para preveni-lo sobre os pacientes novos antes de entrarem no consultório, pois, como diz o analista, “se me entra um arreganhado, já recebo a tapa”. Lindaura deixa um pedacinho de veludo vermelho ao alcance do paciente na sala de espera. Depois escreve na sua ficha: “Não ligou para o veludo” ou “Passou a mão e começou a babar” ou “Botou na frente e foi ver no espelho se ficava bem”. Na ficha daquele cliente novo, de Não-me-toque, ela escrevera: “Viu o pedacinho de veludo e recuou horrorizado.” Era obviamente um paranoico.
Te deita no divã, tchê – disse o analista de Bagé.
Pra quê? – quis saber o paciente, desconfiado.
Oigalê bicho bem xucro – disse o analista com uma risada agradável, enquanto torcia o braço do outro e obrigava-o a se deitar. O paciente ficou se segurando sobre o pelego que cobria o divã, para evitar que arrancassem sua roupa. O analista sentou no seu banquinho e pegou a cuia. Ofereceu:
Um mate?
O que é que você quer dizer com isso?
O analista de Bagé passou a cuia para o outro, que olhou para a ponta da bomba com apreensão.
Pode tomar que os micróbios são de casa – disse o analista, mas o paciente devolveu a cuia. O analista continuou:
Pues, qual é o problema?
Eu sabia. Já andaram espalhando que eu tenho problema.
Se o amigo está aqui é porque tem um problema. Já vi que pelo mate não é.
Pare com esse tom condescendente!
O analista de Bagé fez força para se controlar. Um dia antes perdera a paciência e atirara um masoquista contra a parede. O masoquista não reclamara, mas com o impacto se quebrara o seu Freud entalhado em imbuia. O outro continuou:
Todo mundo me persegue.
Não é verdade.
Ninguém acredita em mim.
Eu acredito.
Você só diz isso pra me agradar.
Eu não estou querendo te agradar.
Por que não? Por que não?
Meia hora depois o analista de Bagé, com argumentos razoáveis, e com a ameaça de atirar a escarradeira na sua cabeça, convencera o paciente a abandonar sua mania de perseguição. Ninguém o estava perseguindo. Era pura fantasia.
E o jacaré embaixo da cama?
Não tem jacaré. Jacaré gosta de banhado. A tua cama fica em lugar seco?
Fica.
Pois então.
Ele devia sair dali convencido que ninguém nem nada estava contra ele. Devia se esforçar para levar uma vida normal.
Não sei se vou conseguir...
Vai.
Como é que você sabe?
Porque eu vou estar sempre atrás de ti, tchê. Te cuidando. De dia e de noite. A menor recaída na paranoia, ó...
E o analista de Bagé fez o gesto de quem acerta um cutelaço na nuca.

Luís Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé

Nenhum comentário:

Postar um comentário