quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O ferreiro

          Valendo-se da temperatura amena e fresca do verão que ora reinava naquelas latitudes e preparando-se para as perseguições especialmente ativas, esperadas para breve, Perth, o velho ferreiro, irritado e coberto de farruscas, ainda não removera sua forja portátil para o porão depois de ter concluído sua participação no trabalho com a perna de Ahab; mantendo-a no convés, presa a argolas junto ao mastro de proa; sendo quase incessantemente solicitado pelos líderes dos botes, arpoadores e remadores para lhes fazer algum trabalho; modificando, consertando ou remodelando as diversas armas e utensílios do bote. Muitas vezes ficava rodeado por um círculo ansioso, todos esperando ser servidos; segurando pás, pontas de piques, arpões e lanças, observando ciosos cada um de seus gestos fuliginosos, enquanto trabalhava. Todavia, o que esse velho homem possuía era um martelo paciente empunhado por um braço paciente. Murmúrios, impaciência ou petulância, de sua parte nada havia. Silencioso, vagaroso e solene; curvando sempre mais suas costas cronicamente arquejadas, trabalhava como se o trabalho fosse a própria vida; e a batida grave de seu martelo, a batida grave de seu coração. E assim era. – Muito infeliz!
O curioso passo desse velho homem, uma espécie de guinada leve, porém dolorosa, em seu caminhar, aguçara desde o início da viagem a curiosidade dos marujos. E às insistentes perguntas importunas ele por fim cedeu; e desde então todos vieram a saber da história vergonhosa de seu triste destino.
Em certa noite de um inverno rigoroso, estando atrasado, e não inocentemente, numa estrada entre dois vilarejos, o ferreiro um tanto estupidamente se deixou invadir por um torpor mortal e procurou abrigo em um estábulo envergado, caindo aos pedaços. O resultado foi a perda das extremidades de ambos os pés. Após essa revelação, cena a cena, foram contados os quatro atos de alegria e o longo e catastrófico quinto ato de tristeza do drama de sua vida.
Era um homem velho que, aos quase sessenta anos de idade, havia tardiamente encontrado aquilo que entre os peritos em tristeza se chama ruína. Fora um artesão de renomada excelência e sempre com muito trabalho para fazer; possuía casa e jardim; abraçava uma esposa jovem e dedicada, quase uma filha, e três filhos alegres e saudáveis; todos os domingos frequentava uma igreja alegre, situada num bosque. Mas certa noite, sob o manto das trevas, e além disso escondido sob um astuto disfarce, um ladrão perigoso invadiu-lhe sorrateiro a casa feliz e lhe roubou tudo de tudo. E, ainda mais triste é dizê-lo, havia sido o próprio ferreiro que, sem o saber, conduzira esse ladrão ao seio de sua família. Era o Mago da Garrafa! Ao sacar a rolha fatal, o demônio voou para fora e encolheu sua casa. Ora, por prudentes razões de bom senso e economia, a oficina do ferreiro ficava no porão da habitação, porém com uma entrada separada; de modo que a jovem esposa dedicada e saudável sempre ouvia, sem nenhum nervosismo de tristeza, mas com vigorosa satisfação, a forte batida do martelo de seu velho marido de braços jovens; cujas reverberações, abafadas ao passar por assoalhos e paredes, chegavam até ela não sem doçura no quarto das crianças; e assim, à férrea cantiga de ninar do Trabalho árduo, a prole do ferreiro era embalada até dormir.
Oh, dor sobre dor! Ó, Morte, por que não podes às vezes ser conveniente? Se tivesses levado contigo esse velho ferreiro antes de a ruína completa se abater sobre ele, a jovem esposa teria conhecido uma tristeza amena, e os órfãos, um pai lendário, verdadeiramente venerável, com quem sonhariam nos anos futuros; e todos teriam renda suficiente, dispensando cuidados. Mas a Morte colheu outro irmão, virtuoso e mais velho, de cujos cantarolantes labores diários dependia a manutenção de outra família, e deixou o mais que inútil velho de pé, até que a repugnante podridão da vida o tornasse mais fácil de ceifar.
Para que contar tudo? Os golpes do martelo no porão a cada dia tornaram-se mais espaçados; e a cada dia os golpes ficavam mais fracos do que os precedentes; a esposa sentava-se à janela, com frio, sem lágrimas nos olhos, que, cintilando, observavam os rostos lacrimosos de suas crianças; o fole caiu; a forja entupiu-se de cinzas; a casa foi vendida; a mãe mergulhou na longa relva do cemitério; os filhos, duas vezes, fizeram-lhe companhia; e o velho, sem casa, nem família, partiu cambaleante, um vagabundo de luto; nenhuma de suas aflições foi respeitada; suas cãs tornaram-se o escárnio dos cachos dourados!
A Morte parece ser o único destino desejável para uma tal travessia; a Morte, porém, é apenas o zarpar à região do estranho Desconhecido; é apenas a primeira saudação às possibilidades do imenso Remoto, do Selvagem, do Úmido, do Ilimitado; portanto, aos olhos de tais homens desejosos de morrer, que ainda guardam em si algum escrúpulo contra o suicídio, o todo dadivoso e receptivo oceano estende sedutoramente toda a sua planície de inconcebíveis e tentadores terrores e maravilhosas aventuras de uma nova vida; e dos corações de infinitos Pacíficos milhares de sereias cantam para eles – “Vem para cá, coração partido; aqui há outra vida, sem a culpa da morte intermediária; aqui há maravilhas sobrenaturais, sem que se tenha de morrer por elas. Vem para cá! Enterra-te numa vida que, para teu tão detestável quanto detestado mundo terreno, se faz mais do esquecimento que a morte. Vem para cá! Ergue a tua lápide também no cemitério e vem para cá, que nós te esposaremos!”.
Atento a essas vozes, a Leste e Oeste, pela hora da alvorada e do crepúsculo, o espírito do ferreiro respondeu, Sim, eu vou! E assim Perth conheceu a vida baleeira.

Herman Melville, in Moby Dick

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