quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Guia à Chartreuse para uso dos novos leitores

 

Quantos novos leitores levará ao romance de Stendhal a nova versão filmada da Cartuxa de Parma que será projetada dentro em pouco na televisão? Talvez poucos, se comparados ao número de telespectadores, ou quem sabe muitíssimos, segundo a escala de grandeza das estatísticas sobre a leitura de livros na Itália. Mas o dado importante que nenhuma estatística poderá fornecer consiste em quantos jovens serão atingidos por um raio desde as primeiras páginas e se convencerão de repente de que o mais belo romance do mundo só pode ser esse, e reconhecerão o romance que sempre haviam desejado ler e que servirá como termo de comparação para todos os outros que hão de ler depois. (Falo sobretudo dos primeiros capítulos; indo adiante iremos deparar com um romance diverso, com vários romances diferentes um do outro, que pedirão ajustes na própria participação na história; mas o impulso inicial continuará agindo.)
Isso é o que nos aconteceu bem como a tantas outras gerações que se seguem há mais de um século. (A Chartreuse saiu em 1839, mas é preciso calcular aqueles quarenta anos que se passaram antes que Stendhal fosse entendido, conforme ele previra com precisão extraordinária; contudo, de todos os seus livros, foi logo o mais bem-sucedido e contou, no lançamento, com um entusiástico ensaio de Balzac que tinha nada menos que 72 páginas!)
Se o milagre há de se repetir ainda e por quanto tempo, não podemos saber: as razões do fascínio de um livro (seus poderes de sedução, que são bem diferentes de seu valor absoluto) são feitas de tantos elementos imponderáveis. (O valor absoluto também, admitindo que tal conceito tenha sentido.) Pois bem, que, se volto a ter em mãos a Chartreuse ainda hoje, como em todas as releituras que fiz em períodos diversos, através de todas as mudanças de gosto e de horizonte, encontro aquele ímpeto da sua música, aquele allegro con brio que torna a me envolver: aqueles primeiros capítulos na Milão napoleônica em que a história com seus estrondos de canhão e o ritmo da vivência individual caminham sincronizados. E o clima de plena aventura em que se entra com Fabrizio que gira em torno do úmido campo de batalha de Waterloo, entre carrinhos de vivandeiras e cavalos em fuga, é a verdadeira aventura romanesca calibrada de perigo e de incolumidade e com uma forte dose de candura. E os cadáveres com olhos arregalados e braços ressecados são os primeiros cadáveres de verdade com que a literatura de guerra procurou explicar o que é uma guerra. E a atmosfera feminina amorosa que começa a circular desde as primeiras páginas, feita de trepidação protetora e de intriga ciumenta, já revela o verdadeiro tema do romance, que acompanhará Fabrizio até o final (uma atmosfera que, com o decorrer da ação, não deixará de resultar opressiva).
Será que me tornei leitor da Chartreuse para toda a vida por pertencer a uma geração que viveu a guerra e cataclismos políticos na juventude? Mas nas lembranças pessoais, menos livres e serenas, dominam as dissonâncias e os estridores, não aquela música que arrebata. Talvez seja verdade exatamente o contrário: consideramo-nos filhos de uma época porque se projetam as aventuras stendhalianas sobre a própria experiência para transfigurá-la, como fazia Dom Quixote.
Afirmei que a Chartreuse é tantos romances juntos e me detive no início: crônica histórica e social, aventura picaresca; depois se entra no tronco do romance, isto é, o mundo da pequena corte do príncipe Ranuccio Ernesto IV (a Parma apócrifa que é historicamente identificável como Módena, reivindicada com paixão pelos modenenses como Antonio Delfini, mas a quem restam fiéis como a um próprio mito sublimado os filhos de Parina como Gino Magnani).
Aqui o romance se faz teatro, espaço fechado, tabuleiro de um jogo entre um número limitado de personagens, lugar cinzento e parado em que se desenvolve uma cadeia de paixões que não se combinam: o conde Mosca, homem de poder, escravo do amor por Gina Sanseverina; Sanseverina, que consegue tudo o que deseja e que só vê os olhos do sobrinho Fabrizio; e este que ama a si mesmo em primeiro lugar, algumas aventuras rápidas como contorno e no final concentra todas essas forças que gravitam sobre e ao redor dele apaixonando-se perdidamente pela angélica e pensativa Clelia.
Tudo isso no mundo mesquinho das intrigas político-mundanas da corte, entre o príncipe obcecado pelo medo de ter enforcado dois patriotas e o “fiscal” Rassi, que encarna (talvez pela primeira vez numa personagem de romance) a mediocridade burocrática naquilo que pode possuir de atroz. E aqui o conflito, segundo as intenções de Stendhal, encontra-se entre essa imagem da retrógrada Europa de Metternich e o absoluto daqueles amores sem controle de si mesmo, último refúgio dos ideais generosos de uma época derrotada.
Um núcleo dramático de melodrama (e a obra fora a primeira chave usada pelo melômano Stendhal para entender a Itália), mas na Chartreuse o clima (por sorte) não é o de uma obra trágica e sim (descoberta de Paul Valéry) o da opereta. A tirania é tétrica, porém tímida e pesada (em Módena aconteceram coisas bem piores), e as paixões são peremptórias mas com mecanismo assaz simples. (Uma só personagem, o conde Mosca, é dotada de uma verdadeira complexidade psicológica, feita de cálculo mas também de desespero, de possessibilidade mas igualmente de senso do vazio.)
Mas o aspecto “romance de corte” não se esgota aqui. À transfiguração romanesca da Itália reacionária da Restauração se sobrepõe o enredo de uma crônica renascentista, daqueles que Stendhal fora desentranhar das bibliotecas para extrair os contos chamados de Crônicas italianas. Aqui se trata da vida de Alessandro Farnese que, sendo muito amado e protegido por uma tia, dama galante e intrigante, fez uma esplêndida carreira eclesiástica não obstante sua juventude libertina e aventureira (chegara a matar um rival e por isso acabara prisioneiro no Castel Sant’Angelo) até se tornar papa com o nome de Paulo III. O que tem a ver essa história sangrenta da Roma entre o Quatrocentos e o Quinhentos com a de Fabrizio numa sociedade hipócrita e cheia de escrúpulos de consciência? Absolutamente nada, e mesmo assim o projeto de Stendhal partira exatamente dali, como transposição da vida de Farnese para uma época contemporânea, em nome de uma continuidade italiana da energia vital e da espontaneidade passional em que ele não cansou de acreditar (mas dos italianos soube ver também coisas mais sutis: a desconfiança, a ansiedade, a cautela).
Fosse qual fosse a primeira fonte de inspiração, o início do romance era dotado de um impulso tão autônomo que podia muito bem seguir adiante por conta própria, esquecendo-se da crônica renascentista. Ao contrário, de vez em quando Stendhal dela se recorda e volta a considerar a vida de Farnese como a sua pauta. A consequência mais visível é que Fabrizio, assim que despe o uniforme napoleônico, entra num seminário e faz os votos. Por todo o restante do romance temos de imaginá-lo vestido de monsenhor, coisa certamente incômoda para ele e também para nós, pois nos custa algum esforço combinar as duas imagens, a condição eclesiástica incidindo só exteriormente no comportamento da personagem e nada sobre seu espírito.
Já alguns anos antes, um outro herói stendhaliano, também ele jovem apaixonado pela glória napoleônica, havia decidido vestir a sotaina, visto que a Restauração bloqueara a carreira das armas a quem não fosse filho de família nobre. Mas em Le rouge et le noir, a antivocação de Julien Sorel é o tema central do romance, uma situação bem mais profunda e dramática do que para Fabrizio del Dongo. Fabrizio não é Julien, pois não é dotado de sua complexidade psicológica, nem é Alessandro Farnese, destinado a se tornar papa e, enquanto tal, herói emblemático de uma história que pode ser entendida tanto como revelação escandalosa anticlerical quanto como lenda edificante de uma redenção. E Fabrizio, quem é? Para além das roupas que veste e das aventuras em que se deixa envolver, Fabrizio é alguém que tenta ler os signos de seu destino, segundo a ciência que lhe ensinara o abade-astrólogo Blanès, seu verdadeiro pedagogo. Interroga-se sobre o futuro e o passado (era ou não era Waterloo a sua batalha?), mas toda a sua realidade está no presente, instante por instante.
Como Fabrizio, toda a Chartreuse supera as contradições de sua natureza composta por força de um movimento incessante. E quando Fabrizio termina na cadeia, um novo romance se abre no romance: o carcerário, da torre e do amor por Clelia, que é algo ainda diferente de todo o resto e ainda mais difícil de definir.
Não existe condição humana mais angustiante do que a do preso, mas Stendhal é tão refratário à angústia que, mesmo tendo de representar o isolamento na cela de uma torre (após uma detenção ocorrida em condições misteriosas e conturbadas), os estados de ânimo que exprime são sempre extrovertidos e esperançosos: “Comment! moi qui avait tant de peur de la prison, j’y suis, et je ne me souviens pas d’être triste!”. Não me lembro de ter ficado triste! Jamais uma refutação das autocomiserações românticas foi pronunciada com tanta candura e tanta boa disposição.
Essa torre Farnese, que nunca existiu nem em Parma nem em Módena, tem uma forma bem precisa, composta de duas torres, uma um pouco mais delicada, construída sobre a mais volumosa (mais uma casa em cima de um terrapleno, coroada por uma passareira, de onde se debruça a donzela Clelia em meio às aves). É um dos lugares encantados do romance (a respeito dele Trompeo lembrou-se de Ariosto e, por outros aspectos, de Tasso), um símbolo, certamente: tanto é assim que, como ocorre com todos os verdadeiros símbolos, não se saberia jamais decidir o que simboliza. O isolamento, na própria interioridade, isso é evidente; mas também, e ainda mais, a saída de si mesmo, a comunicação amorosa, pois nunca Fabrizio foi tão expansivo e loquaz como por meio dos improváveis e complicadíssimos sistemas de telegrafia sem fio com que consegue se corresponder da cela seja com Clelia seja com a sempre providencial tia Sanseverina.
A torre é o lugar onde nasce o primeiro amor romântico de Fabrizio pela inatingível Clelia, filha de seu carcereiro, mas é também a gaiola dourada do amor de Sanseverina, do qual Fabrizio é prisioneiro desde sempre. Tanto é assim que na origem da torre (capítulo XVIII) existe a história de um jovem Farnese encarcerado porque se tornara amante da madrasta: o núcleo mítico dos romances de Stendhal, a “hipergamia” ou amor pelas mulheres mais velhas ou em posição social mais elevada (Julien e mme. de Rénal, Luciene mme. de Chasteller, Fabrizio e Gina Sanseverina).
E a torre representa a altura, o poder de ver longe: a panorâmica incrível que Fabrizio domina lá de cima abarca toda a cadeia dos Alpes, de Nice até Treviso, e todo o curso do Pó, de Monviso a Ferrara; mas não só aquilo que se vê: também a própria vida e a dos outros, e a rede de rejeições intricadas que moldam um destino.
Como da torre o olhar abrange toda a Itália do Norte, igualmente do alto desse romance, escrito em 1839, o futuro da história da Itália já se descortina: o príncipe de Parma, Ranuccio Ernesto IV, é um tiranete absolutista e ao mesmo tempo um Carlo Alberto que prevê as próximas etapas do Risorgimento e cultiva no coração a esperança de ser um dia o rei constitucional da Itália.
Uma leitura histórica e política da Chartreuse foi uma via fácil e quase obrigatória, partindo de Balzac (que definiu esse romance como o Príncipe de um novo Maquiavel!), assim como foi igualmente fácil e obrigatório demonstrar que a pretensão stendhaliana de exaltar os ideais de liberdade e progresso sufocados pela Restauração é bastante superficial. Mas justamente a leviandade de Stendhal pode nos dar uma lição histórico-política não desprezível, quando nos mostra com quanta facilidade os ex-bonapartistas se tornam (ou permanecem) autorizados e zelosos membros do establishment legitimista. Que tantas tomadas de posição e tantas ações mesmo temerárias que pareciam motivadas por convicções absolutas revelassem depois que o que havia por trás era bem pouco, é um fato que se viu e reviu tantas vezes, naquela Milão e alhures, mas o belo da Chartreuse é que isso se constata sem fazer escândalo, como uma coisa que se evidencia por si própria.
O que faz da Cartuxa de Parma um grande romance “italiano” é o sentido da política como ajuste calculado e distribuição dos papéis: com o príncipe que, enquanto persegue os jacobinos, se preocupa em estabelecer com eles futuros equilíbrios que lhe permitam colocar-se à frente do iminente movimento de unidade nacional; com o conde Mosca que, de oficial napoleônico, passa a ministro partidário de repressões violentas e chefe do partido ultra (mas pronto a encorajar uma facção de ultras extremistas só para poder dar provas de moderação afastando-se deles), e tudo isso sem ser minimamente envolvido em sua essência interior.
Distancia-se cada vez mais, indo adiante no romance, a outra imagem stendhaliana da Itália como o país dos sentimentos generosos e da espontaneidade no viver, aquele lugar da felicidade que se abria ao jovem oficial francês na chegada a Milão. Na Vie d’Henry Brulard, ao narrar aquele momento, ao descrever aquela felicidade, interrompe o relato: “On échoue toujours à parler de ce qu’on aime”.
Essa frase deu o tema e o título ao último ensaio de Roland Barthes, que devia apresentá-lo em Milão, no congresso stendhaliano de março de 1980 (mas enquanto o escrevia ocorreu o acidente de trânsito que lhe custou a vida). Nas páginas que ficaram, Barthes observa que, nas obras autobiográficas, Stendhal declara várias vezes a felicidade de suas estadas juvenis na Itália, porém jamais consegue representá-la.

Todavia, vinte anos mais tarde, por uma espécie de après-coup que também faz parte da sinuosa lógica do amor, Stendhal escreve sobre a Itália páginas triunfais que, aquelas sim, desencadeiam no leitor como eu (mas não creio que seja o único) aquele júbilo, aquela irradiação que o diário íntimo descrevia mas não lograva comunicar. São as páginas, admiráveis, que formam o início da Cartuxa de Parma. Existe uma espécie de acordo milagroso entre a massa de felicidade e de prazer que irrompeu em Milão com a chegada dos franceses e a nossa alegria na leitura: o efeito narrado coincide finalmente com o efeito produzido.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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