Sei que corro o risco de escandalizar
leitoras e leitores. Não sei explicar por quê, mais aos leitores
que às leitoras.
Como começar, senão pelo princípio? E
o início é um pouco brutal. Preparai-vos. Eu simplesmente
entrevistei uma dona de pensão de mulheres, de uma chamada casa
suspeita.
Está dito. Asseguro-vos porém que não
deveis me temer: meus motivos eram e são límpidos. Sou inocente.
Não posso contar como consegui o número
do telefone e o nome daquela que passarei a chamar de “dona Y” –
não desejo identificá-la para não lhe causar problemas com a
polícia, se é que os há. Consegui o número do telefone,
telefonei-lhe.
No começo de nossa conversa houve um
mínimo de desconfiança da parte dela: não sabia bem o que eu
queria, e só Deus sabe o que pensou que eu queria. Mas em breve já
me dizia: “pois é, meu bem.” Disse-lhe que tinha muita vontade
de conhecê-la pessoalmente, e se podíamos tomar chá juntas, onde
ela marcasse. Sugeriu que eu fosse vê-la na sua casa. Preferi, “meu
bem”, que não. Também não sei por que marcou encontro comigo
defronte da Farmácia Jaci, na Praça José de Alencar. É, aliás,
um ponto péssimo: passam homens em penca e não sabem o que uma
mulher parada está fazendo ali.
Meus motivos de ter vontade de
conhecê-la? É que fui uma adolescente confusa e perplexa que tinha
uma pergunta muda e intensa: “como é o mundo? e por que esse
mundo?” Fui depois aprendendo muita coisa. Mas a pergunta da
adolescente continuou muda e insistente.
E o que foi que aprendi na terra,
bastando-me para isso abrir um pouco meus olhos estreitos? Vi que o
problema da prostituição é obviamente de ordem social. Mas, atrás
dele, também, há outro profundo: é que muitos homens preferem
pagar, exatamente para não terem afeto nem sentimento, exatamente
para humilharem e serem humilhados. A fuga ao amor é um fato.
Paga-se para fugir. Até homem casado gosta, às vezes, de sustentar
a casa para transformar a esposa em objeto pago.
Bem. Na manhã do dia em que eu me
encontraria com dona Y, telefonei-lhe. Mas disse que estava de saída
para o médico. Perguntei o que tinha. Tinha o que toda dona de
pensão de mulheres por força devia ter: coração doente. Fiquei de
chamá-la mais tarde. Foi um custo: telefone ocupadíssimo, Deus sabe
com que e nós também: trata-se de casa de família, como me
disse, e muito reclusa, motivo pelo qual os encontros são
combinados por telefone. Afinal consegui a ligação e dona Y diz:
estou pior, vou-me deitar, telefone às quatro da tarde. Pensei: não
me vá essa criatura morrer antes de eu vê-la.
Não. Não me foi fácil decidir-me a
vê-la. Ao primeiro contato telefônico arranjei uma dor de cabeça
violenta que só passou depois que entendi que era causada pela ideia
de que eu cometia um pecado. Nessa noite, ainda, tive um pesadelo no
qual dona Y me dizia ser leprosa. E eu não queria tocá-la. Acordei
assustada. Por que então continuei na obstinação de querer vê-la?
Porque eu tinha que procurar a resposta irrespondível.
Fiquei hora e meia defronte da Farmácia
Jaci. E nada. Voltei para casa, telefonei-lhe, ela me disse que me
esperara meia hora. Perdi o interesse. Passaram-se semanas sem eu
sequer lembrar-me dela. Mas sou daquelas que deseja ir até o fim do
que quer. Telefonei-lhe de novo. E de novo o encontro marcado
defronte da Farmácia Jaci. Dessa vez ela quis que fosse às dez
horas da manhã, de tarde estava ocupada demais.
Esperei um pouco. De manhã só passam
mulheres com sacos de compras. Ela veio vestida como me avisara. E é
distinta. Provavelmente mais distinta do que eu, que não preciso
aparentar distinção.
Foi logo me explicando que sua casa era
mesmo de família. Que a pessoa que cuidava dos negócios era um
cunhado viúvo, e que também esse não vivia só daquilo. Perguntei
mais tarde se ela ganhava alguma coisa. Disse que não. Mentira.
Fomos tomar um refresco numa casa de chá que estava se abrindo
naquela hora, e pedi o que ela pediu: suco de uva.
Oh Deus, mas que coisa sem graça. Ela
tem uma filha que estuda balé. Já por falta de assunto, falamos de
incêndios. Disse ela que sofrera vários, mas jogara o colchão
incendiado pela janela.
O mais engraçado é que ela gostou de
mim. Disse: agora que nos conhecemos, me telefone sempre para
conversarmos um pouco. Pensei: nunca, não me interessa.
Disse-me que, coitadinhos, os homens
precisam é de um lugar seguro. Que felizmente o Mangue acabara. O
Mangue era ruim. Pois é.
Que mais digo? Nada. Ela ainda tinha
tempo de ficar, eu tinha tempo. Mas quem se levantou para ir embora
fui eu. E paguei os sucos de uva. Nesse dia perdi a fome para o
almoço.
Que afinal esperava eu? A pergunta da
adolescente morrera? O mundo é sem graça? Ou eu sou sem graça? Ou
dona Y é sem graça? Tudo provavelmente. Senti que eu estava com
aquele dia estragado.
Um amigo meu, a quem eu contara a espécie
de encontro que eu pretendia ter, dissera-me sem espanto e tranquilo:
é aí que entra a escritora. Mas é que não sou escritora. Sou uma
pessoa que estava interessada pelo mundo. E que, pelo menos naquele
dia, não estava mais. Até sem fome.
Ah, ela me disse que o tipo de moças
que procuram esse gênero de trabalho querem muito dinheiro e isso é
horrível. Mas que coisa óbvia.
E aqui fica a entrevista que falhou. Nós
todos falhamos quase sempre.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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