Talvez estejamos muito condicionados a
uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente
desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie
de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não
pode cair? Quem disse que a gente já não caiu? Houve um tempo em
que o planeta que chamamos Terra juntava os continentes todos numa
grande Pangeia. Se olhássemos lá de cima do céu, tiraríamos uma
fotografia completamente diferente do globo. Quem sabe se, quando o
astronauta Iúri Gagárin disse “a Terra é azul”, ele não fez
um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós
pensamos ser. Ele olhou com o nosso olho, viu o que a gente queria
ver. Existe muita coisa que se aproxima mais daquilo que pretendemos
ver do que se podia constatar se juntássemos as duas imagens: a que
você pensa e a que você tem. Se já houve outras configurações da
Terra, inclusive sem a gente aqui, por que é que nos apegamos tanto
a esse retrato com a gente aqui? O Antropoceno tem um sentido
incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a
ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da
Terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno.
Essa configuração mental é mais do que
uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo — várias
gerações se sucedendo, camadas de desejos, projeções, visões,
períodos inteiros de ciclos de vida dos nossos ancestrais que
herdamos e fomos burilando, retocando, até chegar à imagem com a
qual nos sentimos identificados. É como se tivéssemos feito um
photoshop na memória coletiva planetária, entre a tripulação
e a nave, onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica
parecendo uma coisa indissociável. É como parar numa memória
confortável, agradável, de nós próprios, por exemplo, mamando no
colo da nossa mãe: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa,
nos alimentando forever. Um dia ela se move e tira o peito da
nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, olha em volta, reclama
porque não está vendo o seio da mãe, não está vendo aquele
organismo materno alimentando toda a nossa gana de vida, e a gente
começa a estremecer, a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos
mundos, que o mundo está acabando e a gente vai cair em algum lugar.
Mas a gente não vai cair em lugar nenhum, de repente o que a mãe
fez foi dar uma viradinha para pegar um sol, mas como estávamos tão
acostumados, a gente só quer mamar.
O fim do mundo talvez seja uma breve
interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer
perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos
nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando
se transfere isso para a mercadoria, para os objetos, para as coisas
exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato
todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra. Todas as histórias
antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita
e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem
grega da deusa da prosperidade, que tem uma cornucópia que fica o
tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo… Noutras tradições, na
China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas,
a referência é de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a
imagem masculina ou do pai. Todas as vezes que a imagem do pai rompe
nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.
O desconforto que a ciência moderna, as
tecnologias, as movimentações que resultaram naquilo que chamamos
de “revoluções de massa”, tudo isso não ficou localizado numa
região, mas cindiu o planeta a ponto de, no século XX, termos
situações como a Guerra Fria, em que você tinha, de um lado do
muro, uma parte da humanidade, e a outra, do lado de lá, na maior
tensão, pronta para puxar o gatilho para cima dos outros. Não tem
fim do mundo mais iminente do que quando você tem um mundo do lado
de lá do muro e um do lado de cá, ambos tentando adivinhar o que o
outro está fazendo. Isso é um abismo, isso é uma queda. Então a
pergunta a fazer seria: “Por que tanto medo assim de uma queda se a
gente não fez nada nas outras eras senão cair?”.
Já caímos em diferentes escalas e em
diferentes lugares do mundo. Mas temos muito medo do que vai
acontecer quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma paranoia da
queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir
essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande
estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então, talvez
o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não
eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas
coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que
realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra. Então,
que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de ficar
inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e
não se deixe iludir com o aparato da técnica. Na verdade, a ciência
inteira vive subjugada por essa coisa que é a técnica.
Há muito tempo não existe alguém que
pense com a liberdade do que aprendemos a chamar de cientista.
Acabaram os cientistas. Toda pessoa que seja capaz de trazer uma
inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de
fazer coisas, da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em
qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro a essa nossa
ansiedade de perder o seio da mãe, vem logo um aparato artificial
para dar mais um tempo de canseira na gente. É como se todas as
descobertas estivessem condicionadas e nós desconfiássemos das
descobertas, como se todas fossem trapaça. A gente sabe que as
descobertas no âmbito da ciência, as curas para tudo, são uma
baba. Os laboratórios planejam com antecedência a publicação das
descobertas em função dos mercados que eles próprios configuram
para esses aparatos, com o único propósito de fazer a roda
continuar a girar. Não uma roda que abre outros horizontes e acena
para outros mundos no sentido prazeroso, mas para outros mundos que
só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade, de perda
daquilo a que podemos chamar inocência, no sentido de ser
simplesmente bom, sem nenhum objetivo. Gozar sem nenhum objetivo.
Mamar sem medo, sem culpa, sem nenhum objetivo. Nós vivemos num
mundo em que você tem de explicar por que é que está mamando. Ele
se transformou numa fábrica de consumir inocência e deve ser
potencializado cada vez mais para não deixar nenhum lugar habitado
por ela.
De que lugar se projetam os paraquedas?
Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar
que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho.
Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou
que a gente banaliza “estou sonhando com o meu próximo emprego,
com o próximo carro”, mas que é uma experiência transcendente na
qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da
vida não limitada. Talvez seja outra palavra para o que costumamos
chamar de natureza. Não é nomeada porque só conseguimos nomear o
que experimentamos. O sonho como experiência de pessoas iniciadas
numa tradição para sonhar. Assim como quem vai para uma escola
aprender uma prática, um conteúdo, uma meditação, uma dança,
pode ser iniciado nessa instituição para seguir, avançar num lugar
do sonho. Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm
passagem por eles. São lugares com conexão com o mundo que
partilhamos; não é um mundo paralelo, mas que tem uma potência
diferente.
Quando, por vezes, me falam em imaginar
outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações
e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos
relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, como se a gente
não fosse natureza. Na verdade, estão invocando novas formas de os
velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza
que eles mesmos criaram para consumo próprio. Todos os outros
humanos que não somos nós estão fora, a gente pode comê-los,
socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O
estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos
antepassados recentes encomendaram para nós.
Na verdade, a gente vive reclamando, mas
essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: “Depois
de abrir, não tem troca”. Há duzentos, trezentos anos ansiaram
por esse mundo. Um monte de gente decepcionada, pensando: “Mas é
esse mundo que deixaram para a gente?”. Qual é o mundo que vocês
estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? O.k.,
você vive falando de outro mundo, mas já perguntou para as gerações
futuras se o mundo que você está deixando é o que elas querem? A
maioria de nós não vai estar aqui quando a encomenda chegar. Quem
vai receber são os nossos netos, bisnetos, no máximo nossos filhos
já idosos. Se cada um de nós pensa um mundo, serão trilhões de
mundos, e as entregas vão ser feitas em vários locais. Que mundo e
que serviço de delivery você está pedindo? Há algo de
insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos
agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores; há algo
de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, teríamos feito
muito melhor.
Devíamos admitir a natureza como uma
imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos
parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos
compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como
medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num
convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade
com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição,
pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade
implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas
do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma
razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que
é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo,
que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os
quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora
dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta. E por
dançar uma coreografia estranha são tirados de cena, por epidemias,
pobreza, fome, violência dirigida.
Já que se pretende olhar aqui o
Antropoceno como o evento que pôs em contato mundos capturados para
esse núcleo preexistente de civilizados — no ciclo das navegações,
quando se deram as saídas daqui para a Ásia, a África e a América
—, é importante lembrar que grande parte daqueles mundos
desapareceu sem que fosse pensada uma ação de eliminar aqueles
povos. O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá
fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno
que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares
de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical
largava um rasto de morte por onde passava. O indivíduo não sabia
que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento,
um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas.
Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo
foi no século XVI . Não estou liberando a responsabilidade e a
gravidade de toda a máquina que moveu as conquistas coloniais, estou
chamando atenção para o fato de que muitos eventos que aconteceram
foram o desastre daquele tempo. Assim como nós estamos hoje vivendo
o desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam
Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social,
desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e
estamos todos jogados nesse abismo.
Ailton Krenak, in Ideias para adiar o fim do mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário