domingo, 25 de outubro de 2020

A entrega

         Era de manhã, bem cedo. Eu esperava o sujeito da entrega na pracinha do início da Niemeyer, andando de um lado para o outro, sobre a plataforma de tábuas de madeira, construída acima dos blocos de pedras irregulares do quebra-mar. Embaixo do terraço havia um vão, habitado por ratos e baratas. Inesperadamente, um sujeito enorme — não digo que ele parecia um macaco pois o homem era preto e eu não sou racista, mas ele tinha a agilidade de um macaco —, usando apenas uma das mãos, içou o corpo e deu um salto por cima do corrimão do deque.
Uma dona de roupa escura, saída de alguma festa de emergente da Barra, que cheirava coca e tomava cerveja com um casal numa das mesas do quiosque, apesar de drogada, viu a proeza do negão e gritou alvoroçada, ó, ó, vocês viram?
O casal não tinha visto porra nenhuma, os dois riam de alguma piada idiota, um esfregando a cabeça no ombro do outro.
O negão bocejou, se espreguiçou, ajeitou a bolsa que carregava a tiracolo e foi até o balcão do quiosque. Parecia um daqueles caras que vasculham as latas de lixo à procura de alguma coisa que possa ser aproveitada. Mas o negão examinou os depósitos de lixo sem meter a mão lá dentro.
A dona se levantou da mesa e se aproximou do negão.
Também cheguei perto e a ouvi perguntar: tem muita barata aí?
A entrega ia ser feita a qualquer momento, e aquela vadia, que nem sabia que eu era um benfeitor de consumidores como ela, puxava conversa com o negão. O negão suava muito, apesar do sol ainda não ter começado a castigar. Aproximei-me sempre conta tudo. O puto não fedia, tinha até cheiro de sabonete. Deus me deu várias coisas boas, inteligência, um pau grande e um nariz de cão perdigueiro cego.
Para importunar ainda mais, chegou uma velhota de biquíni e ficou zanzando no deque, levantando os braços e respirando fundo, olhando o sol nascer em cima do Arpoador. Eu ia gritar para ela dar o fora com as suas varizes e pelancas, mas a bruaca se retirou antes disso, dando uma corridinha miúda em direção à praia lá embaixo.
A dona continuava conversando com o negão, que dizia que as baratas cinzentas não eram nojentas como as baratas domésticas. Durante esse lero-lero ele apalpava dissimuladamente a bolsa que trazia a tiracolo, vendo tudo em volta com o lado do olho. Também sei ver assim, de banda, não dá para ler jornal, mas permite observar as pessoas à volta. O negão vigiava os meus movimentos e eu os dele.
Ao cheirar o suor do cara eu tinha conseguido também ver o seu relógio, ter um bom olho é tão importante quanto ter um bom nariz, e quando falo de bom nariz não me refiro ao nariz sem septo da dona de preto. Lance de artista, o do negão, fingindo fuçar as latas de lixo. Mas ele não podia ter tomado banho com sabonete e nem devia usar um Breitling no pulso se queria provar que dormia no meio das baratas. As pessoas não dão bola para detalhe e se fodem.
O carro da entrega chegou.
Abri o blusão, tirei o 45 da cintura e atirei na cabeça do negão. Depois, peguei a bolsa que ficara sob o seu corpo caído. A dona de preto, os babacas que estavam com ela e o cara do quiosque, nenhum se mexeu nem abriu o bico. Fui até o carro do entregador.
Eu vi tudo, ele disse, quem era a figura?
Ainda não sei, respondi, espero que seja um defunto barato. Este lugar aqui está riscado do mapa.
É isso aí, ele disse.
Peguei a mercadoria, fui para o meu carro. A caminhonete do entregador veio atrás, mas logo nos separamos. Enquanto dirigia, abri a bolsa do negão. Documentos e uma Glock, uma joia. Fiquei com a pistola e joguei o resto na primeira lixeira que encontrei.
O sol agora estava forte. Ia ser um dia quente.

Rubem Fonseca, in Secreções, excreções e desatinos

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