Naquele
dia feriamos. Encontrei à porta da escola os meninos em alvoroço, e
alguém nos guiou a uma casa distante, onde mulheres chorosas punham
estrelinhas no manto que adornava um cadáver pequeno, transformado
em anjo. Findo esses retoques, o choro aumentou e quatro alunos
seguraram as alças do caixão azul. Saímos, andamos caminhos
esburacados, lamacentos, subimos uma ladeira íngreme e, escorregando
no barro vermelho, alcançamos paredes brancas, simples manchas
vistas lá debaixo, agora altas e largas, zebradas de verde.
Atravessei o portão.
Nunca
havia entrado em cemitérios e habituara-me a receá-los, por causa
dos espectros que me descreviam na cozinha. À noite essas narrações
davam-me tremuras, arrepiavam-me os cabelos. A treva se enchia de
mistérios, as labaredas fumacentas do fogão viviam, acompanhavam a
dança das bruxas. Ali, porém, na claridade forte do sol, os
terrores se dissipavam. O bando de crianças ria, espalhava-se nas
ruas estreitas, galgava montículos fofos, alinhados. Largou-se à
beira de uma cova o caixão azul, o velho Simeão escondeu-o, tomou a
pá e cobriu-o de terra, fabricou uma espécie de canteiro. Ouvi as
pancadas ocas, indiferente à cerimônia. Lembrava-me do que se dizia
do coveiro, lento, de mãos trêmulas.
Perdera
a família, despojara-se de todos os interesses que o prendiam à
vida e, quase na decrepitude, só estimava a companhia dos mortos.
Calejara no ofício.
Como
as pernas trôpegas exigiam repouso, descia raro à cidade. Consumia
o resto das forças à sombra dos túmulos, arrancando ervas nocivas,
podando roseiras. E concluída a tarefa, sossegava em cima de uma
catacumba e dormia.
Quando
o achassem teso, não seria preciso transportá-lo em viagem difícil:
deixá-lo-iam entre as suas plantas. Essa figura engelhada me
tranquilizava.
Simeão
vivia com defuntos — e nunca um deles o incomodara. Homem poderoso.
Ou então os defuntos eram bem fracos.
Distanciei-me,
fui examinar flores roxas de louça, cabeças de lagartixas nas
rachaduras dos sepulcros. As narrativas noturnas — diabos com olhos
de brasas, cachorros mastigando pedaços de carne podre —
sumiam-se. E o medo também cessava, no trabalho de adivinhar nomes e
datas que desbotavam nas lousas. O que eu sentia era nojo. Nojo das
pedras, dos tijolos, dos garranchos, certamente impregnados de óleo.
Receava tocar em objetos sujos de gordura fúnebre, indelével.
Farrapos sem cor, folhas secas, pétalas murchas, fragmentos vagos,
juntos em lixo, nauseavam-me: apesar de lavados pelo inverno,
queimados pelo verão, deviam conter pus ou tutano.
Arredei-me
para um canto, onde o muro se abria. Era um ossuário. Vi esqueletos
em desordem, arcarias de costelas emaranhando-se umas às outras,
rosários de vértebras. No monte lúgubre, uma caveira me espiava e
parecia zombar de mim. Nunca me viera à idéia semelhante horror. Um
acervo de porcarias. Difícil imaginá-las frações de pessoas,
misturadas, decompondo-se num monturo. O crânio avultava, para bem
dizer adquiria feições, tinha vontade de falar. As minhas mãos se
umedeceram, a vista se turvou. Zangava-me por não conseguir
afastar-me, correr na relva com os garotos, ver, de espírito leve,
os pássaros, as roseiras do velho Simeão. Preso ao depósito
sinistro, um nó a apertar-me as goelas, senti desejo de chorar.
Sentimento diverso do que me assaltava quando ouvia histórias de
casas mal-assombradas. O desespero me paralisava. Asco, a sensação
de me achar caído numa estrumeira, sem poder limpar-me, e a certeza
de haver em qualquer parte irremediável estrago. Aquilo era feio e
triste. E a feiúra e a tristeza se animavam, arreganhavam dentes
fortes e queriam morder-me. Engano: indiferença, imobilidade. A
imobilidade e a indiferença me atraíam. Tentei invocar as almas
penadas, os diabos que se agitam nas chamas eternas. Essas criaturas
me inspiravam piedade ou terror.
Diante
das carcaças nuas, era impossível comover-me. Loucura supor que
mangassem de mim.
Longamente
estive a contemplar as ruínas, ignoro como e quando me retirei.
Decerto os colegas foram buscar-me. Não me recordo.
Entrei
em casa mergulhado numa sombra espessa. À mesa, repeli a comida.
Meus parentes não perceberam o fastio, deixaram-me só, os cotovelos
sobre a tábua, reparando nas laranjeiras da vizinhança. Anoiteceu,
um negrume tingiu a folhagem, não trouxeram luz, os pequenos se
recolheram. Deitei-me num banco, as juntas estalaram. A escuridão
cresceu. Fechei os olhos. Mexi os dedos, procurei as falanges,
apalpei os braços, o tronco, o pescoço. Tateei o couro cabeludo,
forcejando por descobrir lá embaixo as suturas e as saliências.
Toquei
as maxilas e os zigomas. Contornei as órbitas, esfreguei as
pálpebras: o globo se deslocava devagar. Imundície. As pálpebras e
o globo iam apodrecer, estavam apodrecendo. Só o esqueleto
resistiria. Ossos. Aquela miséria segurava-se a mim, e não havia
jeito de eliminá-la. Uma caveira me acompanharia por toda a parte,
estaria comigo na cama, nas horas de brinquedo, nos desalentos,
curvar-se-ia sobre páginas enfadonhas e aguentaria cocorotes. Ia
encher-se de noções e de sonhos, esvaziar-se, descansar num
ossuário, ao sol, à chuva, mostrar os dentes às crianças.
Acabar-me-ia assim. Não interrompia o exame das órbitas, e as
cavidades horríveis se alargavam e aprofundavam, semelhantes aos
dois buracos que me haviam observado no cemitério. Os moleques
pairavam na cozinha, certamente sentados no pilão, aquecendo-se ao
fogo, embebendo-se em maravilhas extraterrenas. Em momentos
ordinários teria ido entender-me com eles, afrontar duendes e
gigantes ferozes. Ali deitado no banco, não me vinha a necessidade
de comunicar-me, fortalecer-me na companhia dos negrinhos. Os duendes
e os gigantes eram só palavras, os inimigos indeterminados que vivem
na treva se dispersaram. Intentei recordar-me deles, assustar-me.
Debalde. Lá fora cantavam grilos, o vento zumbia nos ramos das
laranjeiras e na cerca de pau-a-pique, vaga-lumes e baratas começavam
a manifestar-se, os moleques cochichavam. Apenas. E cá dentro — um
feixe de ossos. Apenas. A carne se eriçava, o sangue badalava na
artéria.
Isso
tudo seria gasto pelos vermes. A imagem horrorosa se obstinava. As
imagens também seriam gastas pelos vermes. Então para que me
fatigar, rezar, ir à loja e à escola, receber castigos da mestra,
escaldar os miolos na soma e na diminuição? Para que, se os miolos
iam derreter-se, abandonar a caixa inútil? O que mais me
impressionava eram as órbitas: a pesquisa minuciosa prosseguia e
achava-as desertas. Ocas e sombrias, como as outras. E o resto? Não
havia resto. Ali não havia nada. Aqui não haveria nada. O velho
Simeão habituara-se a dormir à luz dos fogos-fátuos, que já não
eram amantes falecidos em incesto, perseguindo-se, repelindo-se,
entre as sepulturas. Libertara-se de crenças, fugira ao
sobrenatural. E resignava-se. Eu não podia resignar-me. As almas do
outro mundo e os lobisomens adquiriam muito valor, faziam-me falta.
Estas
letras me pareceriam naquele tempo confusas e pedantes. Mas o
artifício da composição não exclui a substância do fato.
Esforcei-me por destrinçar as coisas inomináveis existentes no meu
espírito infantil, numa balbúrdia. É por terem sido inomináveis
que agora se apresentam duvidosas.
Afinal
não me surgiam dificuldades. Haviam-me exposto várias lendas.
Vencida a resistência inicial, pusera-me a confirmá-las. Negava-as
de repente em globo, sem análises. Não me embaraçava em dúvidas.
Tinha dito sim; entrava a dizer não: uma caveira
motivava o desmoronamento.
Não
pretendo insinuar, porém, que me haja encerrado no ateísmo,
diferençando-me dos meninos vulgares. Nem sequer pensei em Deus.
O
que me inquietava eram as almas. E a minha não morreu de todo.
Aquele enorme desengano passou. Os fantasmas voltaram, abrandaram-me
a solidão.
Sumiram-se
pouco a pouco e foram substituídos por outros fantasmas.
Graciliano
Ramos, in Infância
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