Fotograma do filme Cinema Paradiso
A
porteira ouve a primeira música. Abre as cortinas vermelhas e se
coloca de pé, à frente da porta. Às sete horas, pontual, o casal
Andreato entrega os ingressos, cumprimentando a porteira
delicadamente. O bastante para se mostrarem educados, mas suficiente
para ela saber que não passa de cumprimento, sem intimidade maior.
Nos dias normais, há uma distância de tempo entre o casal Andreato
e os outros espectadores. Aos domingos, não. A fila se estende.
Todos ansiosos, olhando a bilheteira que funciona lenta, com medo de
errar o troco. No domingo, não há tempo para cumprimentos e
sorrisos. As pessoas jogam o dinheiro, apanham os ingressos, saem
apressadas para garantir lugar. Sentam-se sempre nas mesmas
poltronas. Irritam-se quando encontram alguma pessoa já sentada e
olham. Para ver se é da cidade ou se se trata de algum estranho não
informado dos hábitos locais.
Os
casais velhos chegam cedo. Geralmente são pessoas sozinhas, os
filhos já deixaram a casa, formados ou casados. Jantam cedo, a louça
a ser lavada é pouca, logo a mulher está pronta. A vantagem é
comprar rapidamente o ingresso, evitando a aglomeração que se forma
minutos antes da fila começar. Estes casais chegam vestidos
corretamente, o homem de terno e gravata, a mulher em tailleur
preto ou cinza, joias discretas, colar de pérolas, brincos.
Constituem a maior parte da plateia. Estão acostumados com o cinema
há dezenas de anos. Não apenas com o cinema, mas com a sala,
reformada de tempos em tempos. O cheiro dos perfumes, usados por
elas, impregnou o ar, de tal modo que todos se sentem seguros dentro
do clima familiar e conhecido.
A
sala se enche. Homens com jornal debaixo do braço; casais de
namorados; noivos de braços; moços sozinhos sobem e descem em busca
de moças sozinhas com lugar vago ao lado; moças com os pais,
ansiosas pelos flertes; solteironas em grupos; velhos resmungando
porque a agitação é grande. Pessoas entram, pessoas sentam,
pessoas perguntam: esse lugar está vago? Pessoas vão ao banheiro,
pessoas entram pelas filas batendo nos joelhos dos outros e
desmanchando cabelos que custaram horas, à tarde.
O
baleiro sobe e desce. Faltam cinco minutos para o filme começar, há
expectativa, os lugares tomados, muita gente vai ficar em pé. As
mulheres se perguntam: terão visto meu vestido novo? O sapato, o
colar, a blusa, a saia, a bota? As meninas indagam se terão sido
vistas ao lado do namorado novo, do mais bonito da cidade, o mais
elegante, e rico, e até o inteligente, o mais promissor, o político.
Agora,
as pessoas olham o relógio para se certificar que se passaram cinco
minutos além do horário e imaginam que a gerência talvez esteja
esperando o povo se acomodar, para começar. Outros lembram que o
povo se aquieta com os acordes da Suíte Quebra-Nozes, de
Tchaikovsky. Todos que estão em pé se precipitam, porque sabem que
as luzes se apagarão no meio da música. O gongo toca em seguida, as
cortinas se abrem lentamente, as luzes em volta da tela mudam de cor
e se apagam no instante exato em que a Suíte termina e o foco
azulado surge da cabine, enchendo a tela de imagens, mas a Suíte não
toca, o baleiro sobe para encher a cesta, uma nova consulta aos
relógios mostra que se passaram quinze minutos, os mais velhos ficam
olhando para trás, para a janela da cabine, como se o olhar de
reprovação pudesse por si levar o operador a começar a sessão.
Uns
se levantam e vão perguntar à porteira, e ela se limita a responder
que nada pode fazer, a sua função é recolher ingressos. Que
consultem o gerente. E onde está o gerente? O gerente está no
escritório, mas o escritório é inacessível ao público, para se
chegar a ele é preciso sair, dar a volta pela escada do balcão. Mas
quem sai não pode entrar de novo, a bilheteira não tem senhas para
entregar. Então, como fica? Tem que esperar.
Às
oito, passada meia hora, mesmo os mais jovens se entreolham: vai ver
quebrou a máquina, ou não receberam o filme. Como se isso fosse
piada, riem. Riem alto, porque sabem que incomodam os velhos. Os
velhos pedem silêncio, a sessão está atrasada e ainda tem baderna.
Oito e dez, há insatisfação geral, assim não pode, daqui a pouco
a sessão começa com uma hora de atraso, vamos chegar tarde ao
clube. Batem palmas na frente, gritam no fundo, o banheiro está
repleto de fumantes.
Os
radicais se levantam, dispostos a atitude extremada. Surpresa: a
porteira deixou seu posto. Desapareceu, a porta está fechada.
Trancada por fora. Indignação. Vamos quebrar tudo. “Quebrar o
quê?”, pergunta um homem. Quebrar portas, poltronas, o que estiver
pela frente. O homem que tinha perguntado agarrou o braço do homem
que pretendia quebrar. “Me acompanhe, por favor.” Saíram por uma
porta lateral, os outros nem perceberam. O pequeno hall de
entrada está cheio, os corredores lotados, as pessoas continuam a se
levantar e a se empurrar. Querem sair, se comprimem, xingam, não se
entendem. E não compreendem. As mulheres estão sentadas, “este é
um assunto para homens”.
Então,
sem que se saiba como entraram, desconfia-se até que estavam na
sala, misturados ao povo, os vigilantes da segurança começaram a
gritar “Voltem aos seus lugares”. A princípio, as pessoas não
escutam, tão aturdidas estão. Os vigilantes passaram a empurrar,
sem violência, mas agressivamente, com decisão, os homens de volta
às poltronas. São muitos os vigilantes e parecem dispostos a uma
ação maior. De modo que os pacíficos espectadores,
espantadíssimos, se atropelam, ansiosos para dizer às suas
companheiras que não conseguem saber o que está acontecendo.
Aproveitam para protestar contra a violência. Afinal, esta é uma
tranquila sessão de domingo e os vigilantes deviam estar é contra o
dono do cinema que não inicia a sessão. E não agredir
espectadores, estes pagaram para ver o filme na hora certa.
São
nove e quinze e o murmúrio cresce: não vai ter sessão, o melhor é
devolver o dinheiro. Alguns ameaçam levantar, os vigilantes surgem,
gritando para que sentem. Ninguém pode transitar pelos corredores,
nem ir ao banheiro. O baleiro foi convidado a se encostar num canto.
Protestou, disse que estava trabalhando, não era espectador. Não
adiantou. Como é, vai começar ou não vai?
Nove
e meia, hora da segunda sessão. Passam a gritar, até que um
vigilante vai à frente e pede silêncio, a sessão vai começar, que
todos tenham paciência, colaborem. “Não quero mais ficar”, diz
um velho, “estou com sono e vou-me embora”. “Lamento muito”,
diz o vigilante. “Ninguém vai deixar os lugares. Se todos se
forem, o cinema fica vazio; e se vai fazer a sessão para quem?
Sentem e aguardem, que vai iniciar”.
Dez
horas e a Suíte Quebra-Nozes não toca. Isto é, começou, tocou
alguns acordes, foi retirada. E às dez e meia, já com gente
cochilando, as luzes foram diminuídas, veio um murmúrio de
contentamento. Mas ficou nisso, a sala na semipenumbra, as pessoas
continuando a querer ir embora, sendo desaconselhadas.
Às
onze, a plateia fervia quietamente de irritação. “Como é”,
“não é possível”, “precisamos reclamar a alguém”, “onde
está o gerente”, “o dono do cinema, o prefeito, o chefe de
polícia?”. “Olhem lá, tem mulher passando mal, o ar é viciado,
sufoca”. “Vamos nos organizar, e tirar as mulheres e os velhos.”
Um grupo de homens se levantou, decidido, e se formou no meio do
corredor, disposto a percorrer as filas, vendo se tudo estava bem.
Três vigilantes se aproximaram. “Que sessão é esta que não
começa nunca”, indagaram os homens organizadores. “Estamos nos
preparando com cuidado a fim de que vocês tenham uma bela sessão,
com um bonito filme, ao agrado de todos. Se vocês se precipitam
assim, a sessão demora mais, ou pode não começar nunca. Vão se
sentar, senão temos que tomar providências desagradáveis.” Os
homens se sentaram, menos um, que gritou: “Pois que tomem
providências.” Foi retirado pela porta lateral, discretamente,
como alguém que vai fazer xixi.
Às
onze e trinta e cinco, todos bateram os pés e de nada adiantava
pedir silêncio. Tocaram a Suíte Quebra-Nozes e houve alívio geral,
por pouco tempo, porque todos entenderam que era um truque. A fim de
que eles pensassem que o filme ia começar.
Passaram
dez minutos e a plateia voltou a gritar, a bater pés e palmas, a
assobiar.
E
então, apagaram-se todas as luzes. Houve um momento de hesitação,
e fósforos e isqueiros começaram a ser acesos, uma tênue
iluminação dominou a sala.
As
pessoas se agitaram, se levantaram, sentavam ante os gritos dos
vigilantes, prometiam que nunca mais viriam ao cinema, iriam
apedrejar os vidros, rasgar os cartazes, roubar a bilheteria.
Amontoaram-se todas no corredor, querendo sair, mas as portas
continuavam fechadas.
A
Suíte Quebra-Nozes tocou outra vez, o gongo bateu, a Suíte
continuou tocando, o gongo batendo, as luzes em volta da tela mudavam
de cor, só o foco azulado não saía da cabine de projeção,
enchendo a tela com as imagens tão esperadas.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas
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