quinta-feira, 5 de março de 2020

Escrituras sagradas

Será verdade que, quando texto e realidade colidem entre si, a realidade às vezes tem de ceder? Não seria isso apenas uma falácia, comum porém exagerada, dos sistemas burocráticos? Os burocratas, em geral — a serviço quer do faraó, quer de Mao Tsé-tung —, são pessoas racionais e certamente teriam feito a seguinte alegação: “Empregamos a escrita para descrever a realidade de campos, canais e celeiros. Se a descrição é acurada, tomamos decisões realistas. Se a descrição não é acurada, ela causa fome e rebeliões. Então nós, ou os administradores de algum regime futuro, aprendemos com esse erro e nos empenhamos em produzir descrições mais fidedignas. E assim, com o tempo, nossos documentos tendem a se tornar cada vez mais precisos”.
Em certa medida isso é verdade, mas deixa de lado uma dinâmica histórica oposta. À medida que acumulam poder, as burocracias se tornam imunes aos próprios erros. Em vez de mudar sua história para se adequar à realidade, elas são capazes de mudar a realidade para adequá-la a suas histórias. No fim, a realidade externa vai coincidir com suas fantasias burocráticas, mas apenas porque foi forçada a isso. Por exemplo, as fronteiras de muitos países africanos não consideram cursos de rios, cadeias de montanhas e rotas de comércio, dividem zonas históricas e econômicas desnecessariamente e ignoram identidades étnicas e religiosas locais. A mesma tribo pode se ver dividida entre vários países, enquanto um mesmo país pode incorporar segmentos de numerosos clãs rivais. Esses problemas atormentam países em todo o mundo, mas na África são particularmente acentuados porque as fronteiras modernas naquele continente não refletem as vontades e as lutas de nações locais. Foram desenhadas por burocratas europeus que nunca pisaram na África.
No final do século XIX, várias potências europeias reivindicaram territórios africanos. Temendo que reivindicações conflitantes pudessem levar a uma guerra europeia total, as partes envolvidas reuniram-se em Berlim em 1884 e dividiram o continente como se fosse uma torta. Naquela época, grande parte do interior africano era terra desconhecida para os europeus. Britânicos, franceses e alemães dispunham de mapas precisos das regiões costeiras da África e sabiam exatamente onde os rios Níger, Congo e Zambezi desaguavam no oceano. No entanto, tinham poucas informações sobre o curso desses rios no interior, sobre os reinos e tribos que viviam ao longo de suas margens e sobre a religião, a história e a geografia locais. Isso quase não interessava aos diplomatas europeus. Eles desenrolaram um mapa vazado da África, estenderam-no sobre uma mesa muito bem polida em Berlim, rabiscaram algumas linhas aqui e ali e dividiram o continente entre eles.
Quando oportunamente penetraram no interior da África, armados com seu mapa consensual, os europeus descobriram que muitas das fronteiras desenhadas em Berlim dificilmente correspondiam à realidade geográfica, econômica e étnica do continente. Contudo, para evitar divergências renovadas, os invasores mantiveram o acordo, e essas linhas imaginárias tornaram-se as fronteiras efetivas das colônias europeias. Durante a segunda metade do século XX, à medida que os impérios europeus desmoronavam e suas colônias ganhavam independência, os novos países aceitavam as fronteiras coloniais, temendo que uma alternativa levasse a guerras e conflitos sem fim. Muitas das dificuldades que os países africanos enfrentam atualmente derivam do fato de que suas fronteiras não fazem muito sentido. Quando as fantasias escritas pelas burocracias europeias depararam com a realidade africana, a realidade foi obrigada a se render.
O sistema educacional moderno oferece numerosos exemplos da realidade se curvando diante de relatos escritos. Quando eu meço a largura de minha escrivaninha, pouco importam os padrões de medida que estou usando. A largura de minha escrivaninha continua a ser a mesma, independentemente de eu afirmar que ela tem duzentos centímetros ou 78,74 polegadas. Contudo, quando a burocracia começa a medir pessoas, os padrões de medida escolhidos fazem toda a diferença. Quando escolas começam a avaliar pessoas segundo marcas numéricas, ou notas, a vida de milhões de estudantes e professores muda dramaticamente. Notas são uma invenção relativamente nova. Caçadores-coletores nunca receberam nota por suas façanhas, e mesmo milhares de anos após a Revolução Agrícola poucos estabelecimentos educacionais empregavam um sistema preciso de notas. No fim do ano um aprendiz de sapateiro medieval não recebia um pedaço de papel informando-o de que tirara A em laços de sapato, mas C menos em fivelas. Um estudante na época de Shakespeare saía de Oxford com um entre dois resultados possíveis — com uma graduação ou sem nenhuma. Ninguém pensava em dar a um estudante a nota final 74 e a outro um 88.
Foram os sistemas educacionais em massa da era industrial que implementaram as notas exatas numa base regular. Depois que tanto as fábricas como os ministérios governamentais se acostumaram a pensar na linguagem dos números, as escolas logo os acompanharam. Começaram a graduar o valor de cada estudante segundo sua nota média, enquanto o valor de cada professor e diretor era julgado de acordo com a média total da escola. Quando burocratas adotaram esse parâmetro, a realidade foi transformada.
Originalmente, supunha-se que o foco das escolas fosse instruir e educar estudantes, e as notas eram apenas meios para medir seu sucesso. Mas de modo muito natural logo essas instituições começaram a se concentrar na obtenção de notas altas. Como sabe cada criança, professor e inspetor escolar, as aptidões necessárias para obter notas altas em um exame não correspondem a um entendimento real da literatura, da biologia ou da matemática. Cada criança, cada professor e cada inspetor escolar sabem que, se obrigadas a escolher entre um e outro, as escolas em geral ficariam com as notas.
O poder dos registros escritos atingiu seu apogeu com o surgimento de escrituras sagradas. Nas civilizações antigas, sacerdotes e escribas acostumaram-se a considerar documentos como guias para a realidade. No início, os textos versavam sobre a realidade dos impostos, dos campos e dos celeiros. Mas, assim como a burocracia ganhou poder, os textos ganharam autoridade. Sacerdotes anotavam não somente as listas das propriedades de um deus, mas também seus feitos, mandamentos e segredos. As escrituras resultantes tinham o propósito de descrever a realidade em sua inteireza, e gerações de estudiosos se habituaram a procurar todas as respostas nas páginas da Bíblia, do Corão ou dos Vedas.
Em teoria, se algum livro sagrado descrevesse equivocadamente a realidade, seus discípulos cedo ou tarde descobririam, e a autoridade do texto estaria comprometida. Abraham Lincoln disse que não se pode enganar todo mundo o tempo todo. Bem, isso é uma ilusão. Na prática, o poder das redes de cooperação humana depende de um equilíbrio delicado entre a verdade e a ficção. Se você distorce demasiadamente a realidade, isso vai enfraquecê-lo, e você não será capaz de competir com rivais que tenham uma visão mais clara. Por outro lado, você não vai conseguir organizar massas de pessoas sem se apoiar efetivamente em alguns mitos ficcionais. Se ficar agarrado à realidade pura, sem misturar nela alguma ficção, poucos o seguirão.
Se você usasse uma máquina do tempo para enviar uma cientista moderna ao Egito antigo, ela não seria capaz de conquistar poder expondo as ficções dos sacerdotes locais e ministrando palestras aos camponeses sobre evolução, relatividade e física quântica. Evidentemente, se sua cientista conseguisse usar o conhecimento que possui para produzir alguns fuzis e algumas peças de artilharia, ela poderia obter enorme vantagem sobre o faraó e sobre o deus crocodilo Sobek. Mas, para poder extrair minério de ferro, construir fornalhas e fabricar pólvora, seria necessário o trabalho duro de muitos camponeses. Você realmente acha que ela poderia inspirá-los explicando que energia dividida pela massa é igual ao quadrado da velocidade da luz? Se você pensa assim, está convidado a viajar para o Afeganistão ou para a Síria contemporâneos e tentar a sorte.
Organizações humanas realmente poderosas — como o Egito dos faraós, os impérios europeus e o sistema escolar moderno — não são necessariamente perspicazes. Muito de seu poder reside na capacidade que possuem de forçar suas crenças ficcionais a uma realidade submissa. Essa é toda a ideia do dinheiro, por exemplo. O governo emite pedaços de papel sem valor, declara que eles têm valor e depois os usa para computar o valor de todas as outras coisas. O governo tem o poder de obrigar os cidadãos a pagar impostos usando esses pedaços de papel, e os cidadãos não têm escolha a não ser fazer uso de pelo menos alguns deles. Consequentemente, essas cédulas tornam-se valiosas, os funcionários do governo têm suas crenças justificadas, e, como o governo controla a emissão de papel-moeda, seu poder cresce. Se alguém disser em protesto que “são apenas pedaços de papel sem valor!” e agir como se fossem somente isso, não chegará muito longe na vida.
O mesmo acontece quando o sistema educacional declara que os exames de admissão constituem o melhor método para avaliar estudantes. O sistema tem autoridade bastante para influenciar tanto nos padrões de admissão em faculdades como naqueles para contratação em repartições públicas e no setor privado. Os estudantes, portanto, investem todos os seus esforços em conseguir boas notas. Posições cobiçadas são ocupadas por pessoas com notas altas, que naturalmente apoiam o sistema que as levou até lá. O fato de que o sistema educacional controla os exames mais críticos lhe confere mais poder e aumenta sua influência nas faculdades, nas repartições públicas e no mercado de trabalho. Se alguém protestar que “o diploma de graduação é apenas um pedaço de papel!” e agir de acordo com isso, é pouco provável que chegue muito longe na vida.
Escrituras sagradas funcionam da mesma maneira. O estamento religioso proclama que o livro sagrado contém as respostas a todas as nossas perguntas. Ele pressiona simultaneamente tribunais, governos e negócios a se comportarem de acordo com o que prega o livro sagrado. Quando uma pessoa sábia lê as escrituras e depois olha para o mundo, ela constata que existe realmente uma boa coincidência. “As escrituras dizem que você tem de pagar dízimos a Deus — e, veja, todos estão pagando. As escrituras dizem que as mulheres são inferiores aos homens e não podem servir como juízas ou prestar testemunho no tribunal — e, veja, realmente não há mulheres juízas e os tribunais rejeitam seu testemunho. As escrituras dizem que todo aquele que estudar a palavra de Deus terá sucesso na vida — e, veja, todos os bons postos de trabalho são ocupados por pessoas que conhecem o livro sagrado de cor.”
Alguém tão sábio naturalmente começará a estudar o livro sagrado e, por ser sábio, se tornará um especialista e será nomeado juiz. Quando se tornar um juiz, não permitirá que mulheres testemunhem em sua corte e, quando escolher seu sucessor, obviamente será alguém que também conhece bem o livro sagrado. Se alguém protestar que “Este livro é apenas papel!” e se comportar de acordo com isso, tal herege não chegará muito longe na vida.
Mesmo quando as escrituras iludem as pessoas quanto à verdadeira natureza da realidade, elas são capazes de manter sua autoridade durante milhares de anos. Por exemplo, a percepção da história pela Bíblia é fundamentalmente falha, mas conseguiu se disseminar pelo mundo, pois bilhões ainda acreditam nela. A Bíblia propaga uma teoria monoteística da história, alegando que o mundo é governado por uma única e todo-poderosa divindade, que se preocupa acima de tudo comigo e com minhas ações. Se algo de bom acontece, deve ser uma recompensa por minhas boas ações. Qualquer catástrofe deve ser um castigo por meus pecados.
Assim, os antigos judeus acreditavam que, se estavam sofrendo por causa da seca, ou se o rei Nabucodonosor da Babilônia tinha invadido a Judeia e exilado seu povo, certamente eram castigos divinos decorrentes de seus pecados. E se Ciro da Pérsia derrotou os babilônios e permitiu que os exilados judeus retornassem para casa e reconstruíssem Jerusalém, Deus, em sua misericórdia, ouviu suas preces de arrependimento. A Bíblia não admite a possibilidade de que a seca talvez tenha resultado da erupção de um vulcão nas Filipinas; que Nabucodonosor invadiu a Judeia por conta dos interesses comerciais da Babilônia; e que o rei Ciro tinha motivações políticas quando favoreceu os judeus. A Bíblia, da mesma forma, não demonstra nenhum interesse em compreender a ecologia global, a economia babilônica ou o sistema político persa.
Essa autoabsorção caracteriza todos os humanos na infância. Crianças de todas as religiões e culturas pensam que são o centro do mundo e demonstram pouco ou nenhum interesse genuíno nas condições e nos sentimentos de outras pessoas. É por isso que o divórcio é tão traumático para as crianças. Uma criança de cinco anos não tem a compreensão de que algo importante esteja acontecendo por motivos que nada têm a ver com ela. Não importa quantas vezes mamãe e papai lhe digam que são pessoas independentes com seus próprios problemas e desejos e que não estão se divorciando por causa dela — a criança não consegue absorver isso. Está convencida de que tudo é culpa dela. A maioria das pessoas, ao crescer, supera essa ilusão infantil. Monoteístas agarram-se a ela até o dia de sua morte. Como uma criança que pensa que seus pais estão brigando por causa dela, os monoteístas se convencem de que os persas combateram os babilônios por causa deles.
Já nos tempos bíblicos algumas culturas tinham uma percepção bem mais acurada da história. Religiões animistas e politeístas descreviam o mundo como o parque de diversões de forças numerosas e diferentes, e não de um único deus. Consequentemente, para animistas e politeístas era fácil aceitar que muitos eventos não têm relação comigo ou com minha deidade favorita e que não são nem punição por meus pecados nem recompensa por minhas boas ações. Historiadores gregos como Heródoto e Tucídides, e historiadores chineses como Sima Qian, desenvolveram teorias sofisticadas da história que são muito semelhantes a nossas visões modernas. Eles explicaram que guerras e revoluções irrompem devido a uma variedade de fatores políticos, sociais e econômicos. Pessoas podem ser vítimas de uma guerra sem que isso tenha sido provocado por elas. Correspondentemente, Heródoto desenvolveu intenso interesse em compreender a política persa, enquanto Sima Qian estava muito interessado na cultura e na religião dos povos bárbaros da estepe.
Estudiosos da atualidade concordam com Heródoto e com Sima Qian e não com a Bíblia. É por isso que todos os Estados modernos investem muito em coletar informação sobre outros países e em analisar as tendências ecológicas, políticas e econômicas globais. Quando a economia dos Estados Unidos vacila, até evangélicos republicanos apontam um dedo acusador para a China, e não para os próprios pecados.
Mesmo assim, embora Heródoto e Tucídides tenham compreendido a realidade com mais clareza do que os autores da Bíblia, quando essas duas concepções do mundo colidem, a Bíblia vence por nocaute. Os gregos adotaram a visão judaica da história, e não vice-versa. Mil anos depois de Tucídides, os gregos se convenceram de que, se algumas hordas bárbaras estão invadindo, certamente se trata de um castigo divino pelos pecados cometidos. Não importa quão equivocada esteja a visão bíblica do mundo, ela provê uma base melhor para uma cooperação humana em grande escala.
Realmente, mesmo hoje em dia, quando presidentes dos Estados Unidos fazem seu juramento na posse, ele põem a mão sobre a Bíblia. Da mesma forma, em muitos países por todo o mundo, inclusive os Estados Unidos e o Reino Unido, testemunhas nos tribunais põem a mão sobre a Bíblia quando juram dizer a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade. É irônico que eles jurem dizer a verdade sobre um livro repleto de tantas ficções, tantos mitos e tantos erros.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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