[…]
Numa outra ocasião, eu acompanhava uma delegação presidencial de
visita a uma província do Norte de Moçambique. O presidente da
República apresentava os membros da sua comitiva ministerial. Quando
chegou a vez do ministro da Cultura, o tradutor fez uma pausa e
depois se decidiu e anunciou: “Este é o ministro das
brincadeiras”.
Em
algumas línguas de Moçambique não existe a palavra “pobre”. Um
pobre é designado como sendo chisiwana, expressão que quer
dizer órfão. Nessas culturas, o pobre não é apenas o que não tem
bens, mas é sobretudo o que perdeu a rede das relações familiares
que, na sociedade rural, serve de apoio à sobrevivência. O
indivíduo é pobre quando não tem parentes. A pobreza é a solidão,
a ruptura com a família. Os consultores internacionais,
especialistas em elaborar relatórios sobre a miséria, talvez não
tenham em conta o impacto dramático da destruição dos laços
familiares e das relações sociais de entreajuda. Nações inteiras
se estão tornando “órfãs”, e a mendicidade parece ser a única
via de uma agonizante sobrevivência.
Estes
episódios pretendem sublinhar aquilo que já sabemos: os sistemas de
pensamento da ruralidade africana não são facilmente redutíveis às
lógicas dominantes da Europa. Alguns pretendem entender África e
mergulham em análises dos fenômenos políticos, sociais e
culturais. Para entender a diversidade africana, porém, é preciso
conhecer os sistemas de pensamento e os universos religiosos, que
frequentemente nem sequer têm nomes. Esses sistemas são curiosos
porque, muitas vezes, eles se fundamentam na própria negação dos
deuses que invocam. Para a maior parte dos camponeses do meu país, a
questão da origem do mundo não se coloca: o universo simplesmente
sempre existiu. Qual é o serviço de Deus num mundo que não teve
começo? E, por isso, em algumas religiões de Moçambique, as
divindades são ditas no plural e têm os mesmos nomes dos homens
vivos. O assunto de Deus, diz o provérbio makwa, é como o ovo: “se
não seguramos cai no chão, se seguramos demasiado parte-se”.
Do
mesmo modo, a ideia de “meio ambiente” pressupõe que nós,
humanos, estamos no centro e as coisas moram à nossa volta. Na
realidade, as coisas não nos rodeiam, nós formamos com elas um
mesmo mundo, somos coisas e gente habitando um indivisível corpo.
Esta diversidade de pensamento sugere que talvez seja necessário
assaltar um último reduto de racismo que é a arrogância de um
único saber e a incapacidade de estar disponível para filosofias
que chegam das nações empobrecidas.
Falei
das cosmogonias diversas e peculiares de zonas rurais de Moçambique.
Mas não gostaria que olhassem para elas como essências, resistindo
ao tempo e às dinâmicas de troca. Hoje, quando revisito a Ilha da
Inhaca, verifico que já se organizam campanhas para matar os porcos
selvagens que assaltam as machambas. E os chefes locais preparam por
telemóvel visitas de cientistas estrangeiros. Em todo o país,
milhões de moçambicanos já se apropriaram das palavras “cultura”
e “natureza” e trouxeram-nas para dentro dos seus universos
culturais. Essas palavras novas estão trabalhando sobre as culturas
de origem, do mesmo modo que certas árvores inventam o chão de onde
parecem emergir.
Em
suma, os fenômenos culturais não estão parados no tempo à espera
que um antropólogo os venha registar, como prova de um mundo exótico
e exterior à modernidade.
África
tem sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e
folclorização, e muito daquilo que se proclama como autenticamente
africano resulta de invenções feitas fora do continente. Os
escritores africanos sofreram durante décadas a chamada prova de
autenticidade: pedia-se que os seus textos traduzissem aquilo que se
entendia como sua verdadeira etnicidade. Os jovens autores africanos
estão-se libertando da “africanidade”. Eles são o que são sem
que necessitem de proclamação. Os escritores africanos desejam ser
tão universais como qualquer outro escritor do mundo. É verdade que
muitos escritores em África enfrentam problemáticas específicas,
mas eu prefiro não tomar de empréstimo essa ideia de África como
um lugar único, singular e homogêneo. Há tantas Áfricas quantos
escritores, e todos eles estão reinventando continentes dentro de si
mesmos.
É
verdade que grande parte dos escritores africanos enfrenta desafios
para ajustar línguas e culturas diversas. Mas esse problema não é
exclusivo nosso, os de África. Não existe escritor no mundo que não
tenha de procurar uma identidade própria entre identidades múltiplas
e fugidias. Em todos os continentes, cada homem é uma nação feita
de diversas nações. Uma dessas nações vive submersa e
secundarizada pelo universo da escrita. Essa nação oculta chama-se
oralidade.
Uma
vez mais, a oralidade não é apenas um facto tipicamente africano,
nem é uma característica exclusiva daquilo que se chama erradamente
de “povos indígenas”. A oralidade é um território universal,
um tesouro rico de lógicas e sensibilidades que são resgatadas pela
poesia.
Subsiste
a ideia de que apenas os escritores africanos sofrem aquilo que se
chama o “drama linguístico”. É certo que a colonização trouxe
traumas de identidade e alienação. Mas a verdade, meus amigos, é
que nenhum escritor tem ao seu dispor uma língua já feita. Todos
nós temos de encontrar uma língua própria que nos revele como
seres únicos e irrepetíveis.
O
sociólogo indiano André Béteille escreveu: “Conhecer uma língua
nos torna humanos; sentir-mo-nos à vontade em mais que uma língua
nos torna civilizados”. Se isto é verdade, os africanos —
secularmente apontados como os não-civilizados — poderão estar
mais disponíveis para a modernidade do que eles próprios pensam.
Grande parte dos africanos domina mais do que uma língua africana e,
além disso, falam uma língua europeia. Aquilo que é geralmente
tido como problemático pode ser, afinal, uma potencialidade para o
futuro. Porque a nossa habilidade de poliglotas nos pode conferir, a
nós africanos, um passaporte para algo que hoje se tornou
perigosamente raro: a viagem entre identidades diversas e a
possibilidade de visitar a intimidade dos outros.
De
qualquer modo, um futuro civilizado passa por grandes e radicais
mudanças neste mundo que poderia ser mais nosso. Implica acabar com
a fome, a guerra, a miséria. Mas implica também estar disponível
para lidar com os materiais do sonho. E isso tem a ver com a língua
que fez adormecer a mulher doente no início desta minha intervenção.
Esse homem futuro deveria ser, sim, uma espécie de nação bilíngue.
Falando um idioma arrumado, capaz de lidar com o quotidiano visível.
Mas dominando também uma outra língua que dê conta daquilo que é
da ordem do invisível e do onírico.
O
que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de
uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos
faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar.
Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem.
Ao
lado de uma língua que nos faça ser humanidade, deve existir uma
outra que nos eleve à condição de divindade.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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