quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Impostores

Pegamos o vídeo da primeira versão de O talentoso Ripley, da Patricia Highsmith, para comparar com o atual. O filme do René Clement, O sol por testemunha, com o Alain Delon e o Maurice Ronet, envelheceu bem, ou não envelheceu nada, ao contrário de tantos da mesma época que a gente se arrepende de rever. (Tema para uma conversa mole: que clássicos do cinema resistiram ao tempo e podem ser revistos sem perigo de desilusão? Quase todos os Hitchcocks, nem todos os Orson Welles, alguns Fords e Capras, e olhe lá. Como os seus vinhos, os diretores da França e da Itália também envelhecem de forma desigual: Truffaut resistiu mais do que Godard e Resnais, os Fellinis são hoje mais tragáveis do que os Antonionis, embora na época parecessem mais ralos, e nenhum bate um bom Monicelli guardado na temperatura adequada. Mas este, claro, é um palpite puramente pessoal, baseado em poucas provas.)
O filme de Clement, com seu final moral e literalmente bem amarrado, é até mais jeitoso, mais redondo, do que a nova versão, do Anthony Minghella, que fica meio desconjuntada no final. Minghella foi mais fiel ao Ripley criado por Highsmith, que tinha uma certa afeição pelo seu anti-herói, tanto que o usou em outras histórias e nunca, que eu saiba, lhe deu o devido castigo. O novo Ripley é mais complexo do que o interpretado por Alain Delon, e sua relação com Dickie mais ambígua, e não apenas porque desta vez o homossexualismo é explícito. Há um constante jogo com espelhos, no filme. O superficial Dickie é uma criatura de espelhos. Ripley ao mesmo tempo o inveja e acha que pode melhorá-lo sob a superfície. Assumir a sua personalidade é uma forma de recheá-lo. O “Dickie” na pessoa do Ripley, ou o Ripley na pessoa do Dickie, é mais sensível e refinado, gosta de ópera em vez de jazz, é o filho que o pai do Dickie gostaria de ter. Mas, por mais talento que tenha, o impostor nunca será completamente o outro. Você pode fazer uma imitação perfeita de Chet Baker cantando “My Funny Valentine”, mas jamais será o Chet Baker. Jamais deixará de ser o que você vê no espelho.
O filme Meninos não choram não tem nada a ver com O talentoso Ripley, mas também trata da vontade de ser outro, e do desejo tragicamente punido. Todos os casos reais (como o do/da hermafrodita de Meninos não choram) de simulação sexual só ficaram conhecidos porque foram revelados, o que sugere a hipótese de que muitas figuras históricas enganaram com sucesso até o fim (por favor, não mande sugestões de nomes) e só seriam desmascaradas com uma autópsia. O tema da impostura é fascinante — não é outro o prazer da literatura de espionagem, onde a vida dupla assumida é um constante desafio à morte — e tem dado boas histórias, verdadeiras e fictícias.
O impostor bem-sucedido conta com a predisposição dos outros de acreditar na sua mentira. A suposta princesa Anastásia conseguiu convencer muita gente por muito tempo de que era uma Romanov e sobrevivera ao massacre da família do czar, embora não falasse uma palavra de russo. Fizeram um bom filme, Seis graus de separação, sobre o jovem negro que se apresentou em Nova York como filho do ator Sidney Poitier e viveu meses da generosidade de uma rica família nova-iorquina, encantada com a possibilidade de mostrar sua liberalidade e ainda conviver com celebridades. Depois o impostor acionou o autor da peça que originou o filme, John Guare. Queria uma parte dos direitos autorais, no que não deixava de ter razão. Era co-autor da sua própria história.
Tootsie, em que o Dustin Hoffman descobre que é melhor mulher do que era homem, também foi bom. Mas o melhor e mais injustamente desprezado filme sobre a impostura sexual é o Yentl, em que a Barbra Streisand, que o escreveu, dirigiu e estrelou, se redime de todos os seus outros exercícios de megalomania. Barbra quase sucumbindo à feminilidade doméstica de Amy Irving, com quem se casou para manter seu disfarce de homem, é um delicado estudo de ambiguidade sexual e confusão de sentimentos como o cinema nunca fez igual. E, ainda por cima, tem a música do Michel Legrand.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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