Achei
apropriado informar os meus leitores sobre aquilo que sinto e penso
acerca da vida após a morte. Meu coração está tranquilo e não há
dúvidas que o perturbem porque são duas, apenas duas, as
possibilidades à minha frente. Primeira possibilidade: há vida após
a morte. Nesse caso, estou tranquilo porque, se há vida após a
morte, é porque há um Poder Misterioso que a garante, poder esse a
que alguns dão o nome de Deus, sem saber o que ele seja. No caso de
haver esse Poder Misterioso, é minha tola convicção (todas as
convicções são tolas) de que ele é só amor. Não estou sozinho
nessa crença, tendo a meu favor o testemunho de profetas, místicos
e poetas. Sendo só amor, é claro que a vida após a morte será uma
realização do amor. A ideia de que o Poder Misterioso é um
torturador que mantém, para prazer próprio, uma câmara de torturas
sem fim chamada Inferno, é uma calúnia espalhada pelos seus
inimigos, na esperança de que os homens deixem de amá-lo e passem a
odiá-lo. Mas, quando é que o amor se realiza? O amor se realiza
quando recebemos de volta as coisas que amamos e perdemos. É por
isso que sentimos saudade. A saudade é a nossa alma dizendo para
onde ela quer voltar. Assim, em havendo uma vida após a morte, estou
certo de que voltarei a subir em jabuticabeiras, a brincar em
riachinhos, a balançar no balanço amarrado no galho da mangueira, a
comer ora-pro-nóbis refogado com carne de porco, angu, feijão e
pimenta, a fazer virar a locomotiva maria-fumaça no virador, a
empinar papagaios em tardes de céu azul, a catar flores de paineira
para com elas fazer soldadinhos... Que mais posso desejar? Como disse
a Maria Alice, deve haver tantos céus quantas pessoas há. Meu céu
não é igual ao seu. Nem poderia ser. Nossas saudades são
diferentes. Em torno de cada pessoa gira um universo que é só dela.
Dizem os astrônomos que há muitos bilhões de anos (para mim não
faz a menor diferença se são bilhões ou milhões, porque esses
números são impensáveis) houve um estouro gigantesco, o Big Bang,
a partir do qual foram projetados no espaço sem fim os astros
celestes que hoje formam o universo que conhecemos. Nada impede que
haja infinitos outros, além dos nossos telescópios. Pois eu acho
que não foi só isso: todos nós fomos também projetados no espaço
sem fim, cada um de nós é uma estrela em volta da qual se forma uma
nebulosa espiralada... Essa é a primeira e deliciosa possibilidade.
Segunda possibilidade: não há vida após a morte. Nesse caso, a
morte significa que vou voltar ao lugar onde estive por todo o tempo
infinito passado, inclusive no Big Bang. Esse período de bilhões de
anos não me foi doloroso, não me fez sofrer, nem demorou a passar.
E poderei, então, imaginar que o evento maravilhoso do meu
nascimento a partir desse caos indefinido poderá se repetir daqui a
um bilhão de anos, mas não sofrerei nem ficarei impaciente, porque
estarei mergulhado no sono profundo da não existência. Assim, por
que ter medo? Medo eu não tenho. Tenho é tristeza porque este mundo
é muito bom e quereria continuar a fazer minhas coisas por aqui.
Pelo menos por agora é isso que sinto. Pode ser que eu venha a mudar
de ideia. Fernando Pessoa escreveu um poema que vai assim: “Tenho
dó das estrelas, luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho
dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas,
um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste brilhar, ou
sorrir... Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte,
mas sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão – qualquer
coisa assim como um perdão?”. Pode ser que eu venha a sentir esse
cansaço e venha a desejar um fim. Mas ainda não me sinto cansado,
agora.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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