Ele
disse: “O teu sorriso é como o primeiro suave susto de Julieta
quando, das sombras perfumadas do jardim sob a janela insone, Romeu
deu voz ao sublime Bardo e a própria noite aguçou seus ouvidos.”
E
ela disse: “Corta essa.”
E
ele disse: “A tua modéstia é como o rubor que assoma à face de
rústicas campônias acossadas num quadro de Bruegel, pai,
enaltecendo seu rubicundo encanto e derrotando o próprio simular de
recato que a natureza, ao deflagrá-lo, quis.”
E
ela disse: “Cumé que é?”
E
ele: “Eu te amo como jamais um homem amou, como o Amor mesmo, em
seu auto-amor, jamais se considerou capaz de amar.”
E
ela: “Tô sabendo...”
“Tu
és a chuva e eu sou a terra; tu és ar e eu sou fogo; tu és
estrume, eu sou raiz.”
“Pô!”
“Desculpe.
Esquece este último símile. Minha amada, minha vida. A inspiração
é tanta que transborda e me foge, eu estou bêbado de paixão, o
estilo tropeça no meio-fio, as frases caem do bolso...”
“Sei...”
“Os
teus olhos são dois poços de águas claras onde brinca a luz da
manhã, minha amada. A tua fronte é como o muro de alabastro do
tempo de Zamaz-al-Kaad, onde os sábios iam roçar o nariz e pensar
na Eternidade. A tua boca é uma tamara partida... Não, a tua boca é
como um... um... Pera só um pouquinho...”
“A
tua boca, a tua boca, a tua boca... (Uma imagem, meu Deus!)”
“Que
qui tem a minha boca?”
“A
tua boca, a tua boca... Bom, vamos pular a boca. O teu pescoço é
como o pescoço de Greta Garbo na famosa cena da nuca em Madame
Walewska, com Charles Boyer, dirigido por Clawrence Brown, iluminado
por...”
“Escuta
aqui...”
“Eu
tremo! Eu desfaleço! Ela quer que eu a escute! Como se todo o meu
ser não fosse uma membrana que espera a sua voz para reverberar de
amor, como se o céu não fosse a campana e o Sol o badalo desta
sinfonia espacial: uma palavra dela...”
“Tá
ficando tarde.”
“Sim,
envelhecemos. O Tempo, soturno cocheiro deste carro fúnebre que é a
Vida. Como disse Eliot, aliás, Yeats - ou foi Lampedusa? -, o Tempo,
esse surdo-mudo que nos leva às costas...”
“Vamos
logo que hoje eu não posso ficar toda a noite.”
“Vamos!
Para o Congresso Carnal. O monstro de duas costas do Bardo, acima
citado. Que nossos espíritos entrelaçados alcem voo e fujam, e os
sentidos libertos ergam o timão e insuflem as velas para a
tormentosa viagem ao vórtice da existência humana, onde, que, a, e,
o, um, como, quando, por que, sei lá...”
“Vem
logo.”
“Palavras,
palavras...”
“Depressa!”
“Já
vou. Ah, se com estas roupas eu pudesse despir tudo, civilização,
educação, passado, história, nome, CPF, derme, epiderme... Uma
união visceral, pâncreas e pâncreas, os dois corações se
beijando através das grades das caixas torácicas como Glenn Ford e
Diana Lynn em...”
“Vem.
Assim. Isso. Acho que hoje vamos conseguir. Agora fica quieto e...”
“Já
sei!”
“O
quê? Volta aqui, p...”
“Como
um punhado de amoras na neve das estepes. A tua boca é como um
punhado de amoras na neve das estepes!”
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
Nenhum comentário:
Postar um comentário