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Já
me manifestei a respeito destes no prefácio à minha coletânea de
Apontamentos: 1942-1948. Mas é necessário, para fazer-me
entender, que eu me repita pelo menos quanto ao seu sentido mais
amplo. “Apontamentos” são espontâneos e contraditórios. Contêm
pensamentos que por vezes resultam de uma tensão insuportável, mas,
com frequência, também de uma grande leveza. Não se pode evitar
que um trabalho que se prolonga dia a dia durante anos pareça-nos
algumas vezes maçante, despropositado ou tardio. Nós o odiamos,
sentimo-nos cercados por ele, como se nos tirasse o ar que
respiramos. De repente, tudo no mundo parece-nos mais importante que
ele, e, confinados, vemos a nós mesmos como incompetentes. Como pode
ser bom algo que conscientemente exclui tantas coisas? Cada som
estranho soa como se viesse de um paraíso proibido, enquanto cada
palavra acrescentada àquilo a que se vem dando continuidade naquele
lugar onde já há tempos adquire, em sua dócil adequação, em seu
servilismo, a coloração de um inferno lícito e banal. O aspecto
insuportável do trabalho imposto pode tornar-se muito perigoso. Um
ser humano (e esta é a sua maior felicidade) possui muitas facetas,
milhares delas, e só por algum tempo pode viver como se não as
possuísse. Nesses momentos, em que se vê como escravo de seu
intento, só uma coisa lhe ampara: ele tem de ceder à diversidade de
suas aptidões e registrar ao acaso o que lhe passa pela cabeça.
Tudo tem de emergir como se viesse do nada e não conduzisse a lugar
algum; será geralmente breve, rápido, veloz como um relâmpago,
irrefletido, indomado, sem vaidade e sem a menor intenção. O
próprio escritor que, nas demais ocasiões, é rigorosamente senhor
de si torna-se por alguns instantes o joguete dócil de seus
pensamentos. Escreve coisas que jamais suporia em si, que contradizem
sua história, suas convicções, sua própria forma, sua vergonha,
seu orgulho e sua verdade, outras vezes defendida com tanta
obstinação. A pressão, que deu início a tudo, deixa-o afinal, e
pode acontecer que ele subitamente se sinta leve e anote as coisas
mais espontâneas, como numa espécie de felicidade. Todavia, aquilo
que daí resulta, e será muito, é melhor que ele deixe de lado, sem
prestar-lhe maior atenção. Se realmente o conseguir, durante muitos
anos, terá preservado a confiança na espontaneidade, que é o sopro
de vida de tais apontamentos. Uma vez perdida essa confiança, tais
apontamentos já não servem para mais nada, e ele pode limitar-se ao
seu trabalho propriamente dito. Bem mais tarde, quando tudo parecer
ter sido escrito por uma outra pessoa, poderão ser encontradas nos
apontamentos coisas que, ainda que no passado talvez lhe parecessem
sem sentido, subitamente adquirem um sentido para os outros. Uma vez
que agora ele próprio já pertence a esses “outros”, poderá
então escolher, sem maiores esforços, aquilo que considera
aproveitável dentre seus apontamentos.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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