quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Apontamentos

http://acpc.bnportugal.pt/imagens/depositos/d02_bradao_raul.jpg 
Google Imagens

 
Já me manifestei a respeito destes no prefácio à minha coletânea de Apontamentos: 1942-1948. Mas é necessário, para fazer-me entender, que eu me repita pelo menos quanto ao seu sentido mais amplo. “Apontamentos” são espontâneos e contraditórios. Contêm pensamentos que por vezes resultam de uma tensão insuportável, mas, com frequência, também de uma grande leveza. Não se pode evitar que um trabalho que se prolonga dia a dia durante anos pareça-nos algumas vezes maçante, despropositado ou tardio. Nós o odiamos, sentimo-nos cercados por ele, como se nos tirasse o ar que respiramos. De repente, tudo no mundo parece-nos mais importante que ele, e, confinados, vemos a nós mesmos como incompetentes. Como pode ser bom algo que conscientemente exclui tantas coisas? Cada som estranho soa como se viesse de um paraíso proibido, enquanto cada palavra acrescentada àquilo a que se vem dando continuidade naquele lugar onde já há tempos adquire, em sua dócil adequação, em seu servilismo, a coloração de um inferno lícito e banal. O aspecto insuportável do trabalho imposto pode tornar-se muito perigoso. Um ser humano (e esta é a sua maior felicidade) possui muitas facetas, milhares delas, e só por algum tempo pode viver como se não as possuísse. Nesses momentos, em que se vê como escravo de seu intento, só uma coisa lhe ampara: ele tem de ceder à diversidade de suas aptidões e registrar ao acaso o que lhe passa pela cabeça. Tudo tem de emergir como se viesse do nada e não conduzisse a lugar algum; será geralmente breve, rápido, veloz como um relâmpago, irrefletido, indomado, sem vaidade e sem a menor intenção. O próprio escritor que, nas demais ocasiões, é rigorosamente senhor de si torna-se por alguns instantes o joguete dócil de seus pensamentos. Escreve coisas que jamais suporia em si, que contradizem sua história, suas convicções, sua própria forma, sua vergonha, seu orgulho e sua verdade, outras vezes defendida com tanta obstinação. A pressão, que deu início a tudo, deixa-o afinal, e pode acontecer que ele subitamente se sinta leve e anote as coisas mais espontâneas, como numa espécie de felicidade. Todavia, aquilo que daí resulta, e será muito, é melhor que ele deixe de lado, sem prestar-lhe maior atenção. Se realmente o conseguir, durante muitos anos, terá preservado a confiança na espontaneidade, que é o sopro de vida de tais apontamentos. Uma vez perdida essa confiança, tais apontamentos já não servem para mais nada, e ele pode limitar-se ao seu trabalho propriamente dito. Bem mais tarde, quando tudo parecer ter sido escrito por uma outra pessoa, poderão ser encontradas nos apontamentos coisas que, ainda que no passado talvez lhe parecessem sem sentido, subitamente adquirem um sentido para os outros. Uma vez que agora ele próprio já pertence a esses “outros”, poderá então escolher, sem maiores esforços, aquilo que considera aproveitável dentre seus apontamentos.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

Nenhum comentário:

Postar um comentário