sábado, 21 de maio de 2016

Excelentíssimo

Ando pesquisando coisas antigas da terra onde nasci, Dores da Boa Esperança, à procura de vestígios da minha infância. Pois ontem, fuçando umas pastas velhas, encontrei lá uns jornais de antigamente, muito antes de eu nascer. Acho que os médicos de hoje fariam bem em se informar sobre os remédios daquele tempo que eram muito mais maravilhosos que os remédios de agora. Hoje, quando se toma um remédio, não se sabe quem o fez. Não há, portanto, um jeito de fazer a reclamação à pessoa responsável, caso o remédio não funcione. Naqueles tempos, os remédios traziam no rótulo o retrato do inventor da poção curativa. Tal é o caso do miraculoso remédio Elixir de Nogueira, um “santo remédio”, eficaz no tratamento de “escrófulas, darthros, boubas, inflamações do útero, corrimento dos ouvidos, gonorrhéas, fístulas, espinhas, cancros venéreos, rachitismo, flores brancas, úlceras, tumores, sarnas, rheumatismo em geral, manchas da pelle, affecções do fígado, dores no peito, tumores nos ossos, latejamento das artérias” (jornal A Esperança , Dores da Boa Esperança, 23 de outubro de 1927, p. 4). Agora me digam: que remédio moderno pode se comparar ao poder curativo do Elixir de Nogueira, atestado pela foto do dr. Nogueira, grande bigode retorcido nas pontas, óculos, colarinho e gravata? Os óculos sempre foram marca dos cientistas. Cientista sem óculos não é digno de crédito... Mas, examinando as notícias no miúdo nota-se que todas as pessoas eram “excelentíssimas” e “ilustríssimas”. Os que viajavam eram sempre o ilustríssimo senhor Fulano de Tal com sua excelentíssima esposa... Os juízes eram “meritíssimos”, isto é, portadores de méritos incontáveis. Contou-me um juiz amigo que numa audiência numa cidade do interior o advogado insistia em chamá-lo de “meretríssimo”, tratamento insólito que lhe causou sério problema facial: ele não sabia se o advogado estava a ofendê-lo, chamando-o de “filho da puta”, caso em que ele deveria fechar a cara, ou se o advogado era apenas um pobre-diabo que não sabia o sentido das palavras, caso em que o seu rosto se abriria numa risada... Incapaz de concluir, ele optou pela postura indiferente, clássica no rosto dos juízes. Mas o que me levou a esta excursão foi o fato de um “meretríssimo”, convencido da sua grande importância, haver entrado na Justiça com uma ação contra os funcionários do edifício em que mora, posto que eles, ignorantes da sua excelência, não o tratavam com os devidos “doutor”, “excelentíssimo”, “ilustríssimo”. Esse juiz, ao que me parece, coloca paletó e gravata para defecar e usa fraque e cartola para perpetuar os coitos exigidos pelas obrigações conjugais, se é que o faz. Imagino que ele seja juiz por competência, isto é, passou nos exames. O que é prova cabal de que o conhecimento das leis não é garantia da sabedoria do juiz. Como dizia um homem sábio, na cidade onde nasci, “duas são as coisas em que não se pode confiar: bunda de criança e cabeça de juiz...”. Se ele deu entrada nessa ação, imagino, é que deve haver dispositivos legais para obrigar as pessoas ao tratamento devido, meritíssimo, magnífico, reverendíssimo, ilustríssimo, excelentíssimo, doutor. Pergunto aos conhecedores da lei se não haverá dispositivos legais que punam pessoas que usam títulos sem possuí-los. Um bacharel pode colocar placa de doutor? Engenheiro é doutor? Lembro-me de um homem, também lá em Minas, que queria ser doutor a qualquer preço. Para ele, ser doutor era ter diploma de engenheiro agrônomo. Tirou o diploma. Mas o tiro saiu pela culatra. De caçoada, deram-lhe o apelido de Zé Doutor. Quando vejo escrito na capa de um livro, como autor, Doutor Fulano de Tal, não consigo esconder o riso. É uma pena que a lei não tenha provisões para punir a estupidez e a presunção.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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