Ando
pesquisando coisas antigas da terra onde nasci, Dores da Boa
Esperança, à procura de vestígios da minha infância. Pois ontem,
fuçando umas pastas velhas, encontrei lá uns jornais de
antigamente, muito antes de eu nascer. Acho que os médicos de hoje
fariam bem em se informar sobre os remédios daquele tempo que eram
muito mais maravilhosos que os remédios de agora. Hoje, quando se
toma um remédio, não se sabe quem o fez. Não há, portanto, um
jeito de fazer a reclamação à pessoa responsável, caso o remédio
não funcione. Naqueles tempos, os remédios traziam no rótulo o
retrato do inventor da poção curativa. Tal é o caso do miraculoso
remédio Elixir de Nogueira, um “santo remédio”, eficaz no
tratamento de “escrófulas, darthros, boubas, inflamações do
útero, corrimento dos ouvidos, gonorrhéas, fístulas, espinhas,
cancros venéreos, rachitismo, flores brancas, úlceras, tumores,
sarnas, rheumatismo em geral, manchas da pelle, affecções do
fígado, dores no peito, tumores nos ossos, latejamento das artérias”
(jornal A Esperança , Dores da Boa Esperança, 23 de outubro de
1927, p. 4). Agora me digam: que remédio moderno pode se comparar ao
poder curativo do Elixir de Nogueira, atestado pela foto do dr.
Nogueira, grande bigode retorcido nas pontas, óculos, colarinho e
gravata? Os óculos sempre foram marca dos cientistas. Cientista sem
óculos não é digno de crédito... Mas, examinando as notícias no
miúdo nota-se que todas as pessoas eram “excelentíssimas” e
“ilustríssimas”. Os que viajavam eram sempre o ilustríssimo
senhor Fulano de Tal com sua excelentíssima esposa... Os juízes
eram “meritíssimos”, isto é, portadores de méritos
incontáveis. Contou-me um juiz amigo que numa audiência numa cidade
do interior o advogado insistia em chamá-lo de “meretríssimo”,
tratamento insólito que lhe causou sério problema facial: ele não
sabia se o advogado estava a ofendê-lo, chamando-o de “filho da
puta”, caso em que ele deveria fechar a cara, ou se o advogado era
apenas um pobre-diabo que não sabia o sentido das palavras, caso em
que o seu rosto se abriria numa risada... Incapaz de concluir, ele
optou pela postura indiferente, clássica no rosto dos juízes. Mas o
que me levou a esta excursão foi o fato de um “meretríssimo”,
convencido da sua grande importância, haver entrado na Justiça com
uma ação contra os funcionários do edifício em que mora, posto
que eles, ignorantes da sua excelência, não o tratavam com os
devidos “doutor”, “excelentíssimo”, “ilustríssimo”.
Esse juiz, ao que me parece, coloca paletó e gravata para defecar e
usa fraque e cartola para perpetuar os coitos exigidos pelas
obrigações conjugais, se é que o faz. Imagino que ele seja juiz
por competência, isto é, passou nos exames. O que é prova cabal de
que o conhecimento das leis não é garantia da sabedoria do juiz.
Como dizia um homem sábio, na cidade onde nasci, “duas são as
coisas em que não se pode confiar: bunda de criança e cabeça de
juiz...”. Se ele deu entrada nessa ação, imagino, é que deve
haver dispositivos legais para obrigar as pessoas ao tratamento
devido, meritíssimo, magnífico, reverendíssimo, ilustríssimo,
excelentíssimo, doutor. Pergunto aos conhecedores da lei se não
haverá dispositivos legais que punam pessoas que usam títulos sem
possuí-los. Um bacharel pode colocar placa de doutor? Engenheiro é
doutor? Lembro-me de um homem, também lá em Minas, que queria ser
doutor a qualquer preço. Para ele, ser doutor era ter diploma de
engenheiro agrônomo. Tirou o diploma. Mas o tiro saiu pela culatra.
De caçoada, deram-lhe o apelido de Zé Doutor. Quando vejo escrito
na capa de um livro, como autor, Doutor Fulano de Tal, não consigo
esconder o riso. É uma pena que a lei não tenha provisões para
punir a estupidez e a presunção.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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