sexta-feira, 19 de abril de 2024
Nosso tempo
A
Osvaldo Alves
I
Este
é tempo de partido,
tempo
de homens partidos.
Em
vão percorremos volumes,
viajamos
e nos colorimos.
A
hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os
homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As
leis não bastam. Os lírios não nascem
da
lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na
pedra.
Visito
os fatos, não te encontro.
Onde
te ocultas, precária síntese,
penhor
de meu sono, luz
dormindo
acesa na varanda?
Miúdas
certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe
ao ombro para contar-me
a
cidade dos homens completos.
Calo-me,
espero, decifro.
As
coisas talvez melhorem.
São
tão fortes as coisas!
Mas
eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho
palavras em mim buscando canal,
são
roucas e duras,
irritadas,
enérgicas,
comprimidas
há tanto tempo,
perderam
o sentido, apenas querem explodir.
II
Este
é tempo de divisas,
tempo
de gente cortada.
De
mãos viajando sem braços,
obscenos
gestos avulsos.
Mudou-se
a rua da infância.
E
o vestido vermelho
vermelho
cobre
a nudez do amor,
ao
relento, no vale.
Símbolos
obscuros se multiplicam.
Guerra,
verdade, flores?
Dos
laboratórios platônicos mobilizados
vem
um sopro que cresta as faces
e
dissipa, na praia, as palavras.
A
escuridão estende-se mas não elimina
o
sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas
partes de nós como brilham! São unhas,
anéis,
pérolas, cigarros, lanternas,
são
partes mais íntimas,
a
pulsação, o ofego,
e
o ar da noite é o estritamente necessário
para
continuar, e continuamos.
III
E
continuamos. É tempo de muletas.
Tempo
de mortos faladores
e
velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas
ainda é tempo de viver e contar.
Certas
histórias não se perderam.
Conheço
bem esta casa,
pela
direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a
sala grande conduz a quartos terríveis,
como
o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz
à copa de frutas ácidas,
ao
claro jardim central, à água
que
goteja e segreda
o
incesto, a bênção, a partida,
conduz
às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
Ó
conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó
surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça
presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas
rangentes, solidão e asco,
pessoas
e coisas enigmáticas, contai;
capa
de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos
selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos
na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto
no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo
tão difícil depois que vos calastes…
E
muitos de vós nunca se abriram.
IV
É
tempo de meio silêncio,
de
boca gelada e murmúrio,
palavra
indireta, aviso
na
esquina. Tempo de cinco sentidos
num
só. O espião janta conosco.
É
tempo de cortinas pardas,
de
céu neutro, política
na
maçã, no santo, no gozo,
amor
e desamor, cólera
branda,
gim com água tônica,
olhos
pintados,
dentes
de vidro,
grotesca
língua torcida.
A
isso chamamos: balanço.
No
beco,
apenas
um muro,
sobre
ele a polícia.
No
céu da propaganda
aves
anunciam
a
glória.
No
quarto,
irrisão
e três colarinhos sujos.
V
Escuta
a hora formidável do almoço
na
cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As
bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta
depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os
subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos
líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come,
braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais
tarde será o de amor.
Lentamente
os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa,
evoluem.
O
esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões
que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro.
Está
dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem
na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma
conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta
a hora espandongada da volta.
Homem
depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa,
cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem,
homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem
imaginam
esperar qualquer coisa,
e
se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos
servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já
noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta
a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino,
passeio na praia,
o
corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com
as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta
o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar
em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se
ao que bem me importa
do
sono.
Escuta
o horrível emprego do dia
em
todos os países de fala humana,
a
falsificação das palavras pingando nos jornais,
o
mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os
bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a
constelação das formigas e usurários,
a
má poesia, o mau romance,
os
frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o
homem feio, de mortal feiura,
passeando
de bote
num
sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos
porões da família,
orquídeas
e opções
de
compra e desquite.
A
gravidez elétrica
já
não traz delíquios.
Crianças
alérgicas
trocam-se;
reformam-se.
Há
uma implacável
guerra
às baratas.
Contam-se
histórias
por
correspondência.
A
mesa reúne
um
copo, uma faca,
e
a cama devora
tua
solidão.
Salva-se
a honra
e
a herança do gado.
VII
Ou
não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para
cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores
de classe, de sangrenta fúria
e
plácido rosto. E há mínimos
bálsamos,
recalcadas dores ignóbeis,
lesões
que nenhum governo autoriza,
não
obstante doem,
melancolias
insubornáveis,
ira,
reprovação, desgosto
desse
chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há
o pranto no teatro,
no
palco? no público? nas poltronas?
há
sobretudo o pranto no teatro,
já
tarde, já confuso,
ele
embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai
minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos
noturnos,
vai
molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e
secar ao sol, em poça amarga.
E
dentro do pranto minha face trocista,
meu
olho que ri e despreza,
minha
repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que
polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O
poeta
declina
de toda responsabilidade
na
marcha do mundo capitalista
e
com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete
ajudar
a
destruí-lo
como
uma pedreira, uma floresta,
um
verme.
Carlos Drummond de Andrade, in A rosa do povo
Um homem sem cabeça (conto argelino)
Esta
é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então,
Ben Sakrane. Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na
realidade, trata-se de Till Eulenspiegel ou de Jean le Sot; o louco
que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para ser
ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.
Um
dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham
escudos, lanças, arcos e aljavas cheias de setas.
— Onde
vão nesses preparos? — perguntou-lhes.
— Não
sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa
batalha, que promete ser dura!
— Ótimo,
eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que
ouvi falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir
convosco, só desta vez!
— Está
bem! És bem-vindo!
E
lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de
batalha.
A
primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!
Depressa!
Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça
e declarou:
— A
ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a
mais ínfima parte de cérebro agarrada, está perdido!
O
ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua
“profunda gratidão para com o Mestre”, e declarou:
— Doutor,
pode remover a seta sem medo; não vai encontrar nela a mais ínfima
parte de cérebro.
— Esteja
calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de
si! Como sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?
— Sei-o
bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula
de cérebro, nunca teria vindo com os meus amigos.
Margaret Read MacDonald, in Peace Tales
Itaparica by Night
Em
matéria de gente da noite, nunca fomos assim um grande celeiro. Aqui
na ilha, todo mundo é orador, escritor e poeta; produzimos elevado
número de patriotas; herói, nem se fala; jogador de futebol, só
para ficar num exemplo recente, temos Toninho, que foi lateral do
Flamengo e da Seleção e que é aqui da Gameleira; cantores,
desculpem, mas contamos com Natércio Bastos, que não nasceu aqui
mas é como se tivesse, cujo gogó eu só dou ousadia de comparar com
o de Orlando Silva; senhoras prendadas, é uma fartura; mulher
bonita, de todas as cores, pergunte a quem já passou aqui e espere a
baba; até artistas de cinema temos inúmeros, todo mundo que vem
aqui filma a gente.
Mas
em matéria de noite, forçoso é reconhecer que não brilhamos como
nos outros setores. Damas da noite não temos, só a variedade
botânica. Meu amigo Zé de Honorina considera isso uma vergonha,
sinal de atraso mesmo, se queixa muito. Ele é do tempo em que os
bregas eram casas de cultura. A freguesia ia lá com a finalidade
habitual, mas tudo num clima de muito respeito, cordialidade e
refinamento. As raparigas recitavam versos, a dona da casa oferecia
docinhos, era uma coisa fina mesmo, e Zé sente falta. São os
tempos.
Grandes
boêmios também nos faltam. Abundam vocações, dolorosamente
perdidas pela deficiência do meio ambiente. No tempo em que
funcionava o Iate Clube, a orquestra era altamente boêmia, mas
padecia da ausência de incentivo. Tínhamos Pititinga e seu
trompete, hoje abrilhantando cabarés de Salvador. Nascimento do
saxofone e da clarineta morreu. Almerindo do trombone também morreu.
Carlito da bateria abandonou a arte, hoje é alto funcionário,
ganhando rios e rios de dinheiro. E assim por diante.
É
bem verdade que hoje em dia temos o Chega-Mais, que é uma espécie
de Hippopotamus montado num curral de jegue. Mas tem luz
estroboscópica e som incrementado. Quando o aplaudido cineasta
Neville d’Almeida nos visitou, tive a oportunidade de levá-lo ao
Chega-Mais, eis que ele é homem da noite e eu queria mostrar que
Itaparica não curva a cabeça para ninguém. Chegamos lá, gostamos
bastante, vimos as moças dançando lambada e tudo mais. Entretanto,
descobrimos rapidamente que, se beliscássemos as moças ou
tomássemos outras ousadias sofisticadas, tão comuns nos grandes
centros urbanos, elas reagiriam desfavoravelmente. Elas só vão lá
para dançar lambada mesmo.
Assim,
qual não foi minha surpresa quando, ao desfilar solitário pela
beira do cais, lá pelas dez e meia da noite, tudo deserto (“o
movimento da lanchonete hoje foram quatro cervejas”, me havia
informado Zé de Honorina rancorosamente), topo com Isaías Português
que, muito lépido, vai na direção da ponte nova.
— Isaías,
você por aqui a esta hora? Alguma festa?
— Pois!
— Festa
mesmo?
— É
como se fosse. Vou ao novo bar.
— Ao
novo bar? Tem um novo bar na cidade?
— Ah,
não sabia? Pois! É, é! Um novo bar, coisa porreira mesmo!
— Ai,
que estás a dizer-me? Antão vais aos copos?
— Aos
copos e às miúdas!
— Às
miúdas? Como “às miúdas”? Que miúdas? Miúdas do tipo
daquelas que ficam a passar acima e abaixo na avenida da Liberdade?
— Pois!
Desse mesmíssimo tipo. Só que novinhas, bonitinhas, todas com
dentes, bestiais mesmo.
— Antão
já estiveste lá antes?
— Não,
esta é a primeira vez. Mas disse-me o italiano...
— O
italiano? Que italiano?
— Um
italiano novo que chegou aí, foge-me o apelido, é um nome italiano
desses. Esse italiano montou o bar naquela barcaça imensa que vive
atracada à ponte nova, diz-me que está catita, tudo muito moderno e
com camarotes.
— Com
o quê? O quê?
— Ca-ma-ro-tes,
é o que estou a dizer-te!
— Troças,
Isaías, fazes piada.
— Não,
senhor, não faço piada, não senhor! Bar, miúdas e camarotes, é o
que te digo! Se não acreditas, por que não me fazes companhia?
— Mas,
Isaías, tu achas...
— Anda
lá!
— Mas
não achas que, se as nossas santas esposas vierem a saber desta
proeza, não será uma grande estopada? Olha que vão ficar mesmo nas
tintas, se souberem!
— Disse
lá à minha que ia até a Fonte da Bica para fazer o quilo, pois a
caldeirada que comi à ceia bateu-me na fraqueza.
— Bem
pensado, caríssimo Isaías. Aos copos e às miúdas!
Bomba,
bomba, bomba — Itaparica com barzinho e motel flutuante! Imaginei
meu avô rodopiando na sepultura (não por indignação, mas por não
terem inventado essas coisas ainda no tempo dele, meu avô era
danado). Fazia-se indispensável uma imediata visita.
O
italiano foi muito efusivo, levou-nos ao main lounge, onde
havia um barzinho bem-arrumado e moças dançando. Novinhas,
bonitinhas, todas com dentes. Isaías e eu sentamos, o italiano soube
que eu era escritor, levantou-se maravilhado, bateu no peito e, quase
às lágrimas, recitou Dante. Tivemos um papo literário e,
subsequentemente, observamos a falta de outros frequentadores. Além
de nós três, só havia as moças.
— Questo
è il problema — disse o italiano. — Qui non tem homi.
— Não
tem homem? Bem, eu e o Isaías somos homens, hein Isaías, ha-ha!
— E
muito homens!
— Ma
vocês... No me refiro in questo sentido.
— Ah,
em outro sentido, ah, sim.
Incômodo
silêncio. No outro sentido, ele tinha razão. Isaías e eu nos
entreolhamos, olhamos as mocinhas, fomos nos levantando um tantinho
sem graça. Estava ficando tarde, outro dia voltaríamos com mais
calma etc. etc. Quando já íamos na ponte, o italiano acenou
afavelmente.
— Io
non disse? — gritou ele.
— Ah,
vai pastaire — resmungou Isaías.
Sim,
claro, outro dia voltaríamos, assim a primeira vez era para um
reconhecimento, uma avaliação, todo mundo sabe como são essas
coisas. Despedimo-nos à porta de minha casa, ele prosseguiu até a
dele. Entrei e, como marido honesto, achei que devia comunicar o
sucedido à minha mulher, para evitar qualquer problema.
— Mulher
— disse eu, cutucando-lhe as costelas para ela acordar —, acabo
de chegar de um motel.
— E
eu do Moulin Rouge — disse ela. — Se as crianças
acordarem com esse barulho, quem vai cuidar é você.
Ela
é quem sabe da vida dela, pensei eu, adormecendo com um riso cínico
nos lábios.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
Alguma coisa urgentemente
Os
primeiros anos de vida suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu
pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de
trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do
meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com
uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai
tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe
quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro
Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs
na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu
não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as
características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia
que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que
passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia
colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser
a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos
perigosos: — Quando é que você vai morrer? — Não vou te deixar
sozinho, filho!
Falava-me
com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria
a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo
o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra
descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado
com minha pergunta. Mas logo se apaziguava.
— Quando
você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas,
inclusive você mesmo.
No
final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que
passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época
uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a
passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da
loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria
uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em
nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que
aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como
lidar com uma criança que sabe?
Puseram-me
num colégio interno no interior de São Paulo. O padre diretor me
olhou e afirmou que lá eu seria feliz.
— Eu
não gosto daqui.
— Você
vai se acostumar e até gostar.
Os
colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a
comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas.
Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles
me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos
olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.
Eu
me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu
não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou
lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem. —
Ele vai bem.
Eu
agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o
padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim: — Ele vai
bem.
O
menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado
dezessete tiros.
Nas
aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a
repetir jaculatórias. — Salve Maria! — ele exclamava a cada
início de aula. — Salve Maria! — os meninos respondiam em
uníssono.
Quando
cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O
padre-diretor me perguntou:
— Você
quer ir?
Olhei
para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever. — Então você
saberá de tudo um dia — ele falou.
O
menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa
partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado. Na
estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque
e meu pai não se espantou. Lia um jornal.
Em
São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos
visitas.
— Vamos
para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que
lhe restava sobre as pernas.
No
Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos, ele
comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia
vazio.
— Eu
quero saber — eu disse para o meu pai.
— Pode
ser perigoso — ele respondeu.
E
desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não.
Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar.
Eu
procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e
comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada
do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às
vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de
alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum
surfista. Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas
coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no
apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse
conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele
apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia
vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse
silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai
tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente
para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que
aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o
único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado
dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem
remorsos a cada exigência do colégio.
Eu
não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo.
Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à
sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio,
duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde
eu bem entendesse. Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava
caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite,
quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de
Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei,
eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha
ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi
um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro.
Vai lá, eles me empurraram. E eu fui. — Quer entrar? — o homem
me disse. Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro. —
Trezentas pratas — falei.
Ele
abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia
ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma
música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me
ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi
antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas.
E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar
marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e
isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só
se ouvia um grilo. — Vamos — disse o homem ligando o carro. Eu
tinha gozado e precisei me limpar com a sunga.
No
dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois
dentes. Resolvi contar:
— Eu
ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas.
Meu
pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra
história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo: — Eu
vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos
jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir
mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O
que é verdade. — E se me torturarem? — perguntei.
— Você
é menor e eles estão precisando evitar escândalos.
Eu
fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar
olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente.
Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o
que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar
o seu único pulso. O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma
coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha
gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e
eu não tinha um puro centavo. De onde sairia a minha sobrevivência?
Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido
pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de
alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai
e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família,
e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão
fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava
acontecendo. Mas quem?
Comecei
a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer
com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não
tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo
vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com
um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem
esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu
não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu
apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa
barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha
ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era
cesariana. Um dia ele me perguntou: — Você tem quantos irmãos? Eu
respondi sete. — O teu pai manda brasa, hein?
Fiquei
pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra
ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da
Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me
calei e fui embora.
Quando
cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já
não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu
assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa
estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar
o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e
tentei conversar com ele. — O que você está sentindo? —
perguntei.
— Já
não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo.
— Dói?
— Já
não sinto dor nenhuma.
De
vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da
Geneal
me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços
de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que
eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de
prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com
muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho.
— A
diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio —
ele perguntou.
Falei
pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta
inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já
estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho
certeza, mas fez questão de não demonstrar nada.
Quando
ele sentou no sofá é que eu notei como o sofá estava puído e que
Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse
despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não
notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita,
nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto
ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à
cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede,
do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que
nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de
sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que
eu consegui essas revistinhas? roubei no escritório do meu pai,
estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque
emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da
Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma
punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim
e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, á como os caras
tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo
aqui, não é de bater uma punheta mesmo? a câmera pertinho assim e
a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não
cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha
não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em
quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha
de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de
grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara,
você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de
sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém.
Aí
eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse
falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de
babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela
cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira
vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de
ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado
porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo,
da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não
voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que
fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à
porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu
vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu
converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de
agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e
eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã,
e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem
ligeiro porque não aguentava mais o Alfredinho ali na minha frente
não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o
meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado
na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa
urgentemente.
João Gilberto Noll, in Os cem melhores contos brasileiros do século
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Balada do festival
Na
verdade apareceu
vindo
de terras distantes
um
homem quase poeta
que
me amou e que se deu
a
mim e a outras também.
E
dizia ao telefone
coisas
tão ternas, tão tudo,
que
só de ouvi-lo e esperá-lo
muita
mulher se perdeu.
Muita
mulher... também eu.
Amei-o
naquela pressa
de
horas marcadas e hotéis...
dentro
de mim a promessa
de
amá-lo ainda que fosse
na
velha China, nos mares,
dentro
de algum avião.
E
quando ele me chamava
eu
toda vagotonia
ia
e vinha e pressentia
o
homem que me fugia
de
passaporte na mão.
Agora
estou tão cansada
perdi-me
na confusão
de
ser amante e amada.
Se
ainda vou procurá-lo
em
Paris ou em Viena
não
me perguntem, amigos,
que
eu faço um olhar tão triste
tão
triste de fazer pena...
Na
verdade apareceu
vindo
de terras distantes
um
homem asas e Orfeu.
Hilda Hilst, in Baladas
Criatividade
Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida — esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.
Mário Quintana, in Porta giratória
Missa do cadáver
Nos
meus anos de professor na Unicamp, conheci uma professora de quem me
tornei um grande amigo: Vilma Clóris de Carvalho. Sua especialidade
e prazer era a neuroanatomia. E até frequentei um dos seus cursos
como aluno igual aos outros, pra valer. O que eu mais admirava na
Vilma é uma virtude que está ficando cada vez mais rara: ela era
apaixonada por ensinar. Gostava dos seus alunos. Digo que a paixão
por ensinar está ficando cada vez mais rara porque, nos relatórios
de avaliação que os professores têm de preencher para os órgãos
oficiais de controle burocrático, as atividades de ensino nem mesmo
são mencionadas. O que vale são as pesquisas publicadas em revistas
internacionais. Os professores, assim, deixam de ser professores.
Transformam-se em pesquisadores. Os alunos não importam. Na
realidade, atrapalham... Eu, pessoalmente, acho que ensinar é muito
mais importante que pesquisar. Porque é no ensino que se aprende a
pensar. E é da capacidade de pensar que surgem os pesquisadores. Se
a pesquisa é um fruto, o ensino são as sementes que foram
plantadas. Sem sementes não há árvores, sem árvores não há
frutos. Pois a Vilma vivia para plantar, vivia a ensinar a pensar.
Era uma verdadeira educadora. Uma das práticas mais comoventes de
suas atividades como professora de anatomia era a “Missa do
Cadáver”. Lidando com peças anatômicas diariamente, o aluno pode
se tornar insensível e embrutecido, esquecido de que aquelas peças
um dia foram um corpo que sonhou, sofreu, amou – alguém como nós.
A “Missa do Cadáver” era para que os alunos se lembrassem das
pessoas... Lembro-me de que, numa das missas, sobre a mesa
eucarística, dentro de um recipiente de vidro, havia um coração
vermelho. Houve tempo em que aquele coração batia... O caráter da
Vilma marcou os seus alunos. Aposentou-se. Mudou-se para Recife.
Escreveu um lindo livro em que aparecem combinadas as suas memórias
de vida – fascinantes! – e o seu trabalho como professora e
pesquisadora: Vivendo sem calendário.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola
As ilhas da corrente | 2
O
inverno acabou e a primavera estava quase no fim quando os filhos de
Thomas Hudson chegaram à ilha naquele ano. Os três haviam combinado
encontrar-se em Nova York para viajar juntos de trem e depois tomar o
avião em Miami. Como de costume, não faltaram dificuldades com a
mãe dos dois menores. Ela planejara uma excursão à Europa sem
dizer nada, naturalmente, ao pai dos garotos sobre quando pretendia
realizá-la, e queria os filhos durante o verão. Hudson poderia
ficar com eles para as festas de fim de ano; depois do Natal, lógico.
Porque o Natal seria passado com ela.
Thomas
Hudson a essa altura já conhecia bem a manobra e afinal houve as
concessões mútuas de sempre. Os dois filhos menores vinham à ilha
visitar o pai por cinco semanas e depois iriam embora para Nova York,
de onde partiriam na classe de estudante de um vapor da Linha
Francesa ao encontro da mãe em Paris, onde ela já teria comprado
algumas roupas necessárias. Estariam sob a tutela do irmão mais
velho, Tom Jr., que depois iria reunir-se à mãe dele, que andava
fazendo um filme no sul da França.
A
mãe de Tom Jr. não exigira que ele fosse para lá e teria gostado
que permanecesse na ilha com o pai. Mas adoraria vê-lo e era um
acordo razoável em vista da decisão inabalável da mãe dos outros
meninos, mulher deliciosa e de raro encanto, que jamais alterava
qualquer plano que fizesse na vida. Sempre os conservava em segredo,
feito um autêntico general, e os punha em prática com idêntico
rigor. Uma concessão podia ser cabível. Mas nunca a modificação
radical de um plano concebido em noite em claro, manhã de
contrariedade ou festa regada a gim.
Um
plano era um plano, e uma decisão, indubitavelmente, uma decisão.
Sabendo disso, e bem adestrado nos costumes do divórcio, Thomas
Hudson se deu por satisfeito por terem chegado a um acordo e que os
filhos estivessem vindo por cinco semanas. Se é esse o prazo que
conseguimos, pensou, contentemo-nos com ele. Cinco semanas é tempo
suficientemente longo para se passar junto das pessoas que amamos e
ao lado de quem gostaríamos de ficar para sempre. Mas, em primeiro
lugar, por que se havia separado da mãe de Tom? Melhor não pensar
nisso, aconselhou a si mesmo. Eis aí uma coisa sobre a qual convém
pôr uma pedra em cima. E os filhos que você teve com a outra são
ótimos. Muito estranhos, complicados, mas você bem sabe quantas
boas qualidades herdaram da mãe. Mulher ótima, de quem você também
nunca deveria ter se separado. E então disse consigo mesmo: Não, eu
tinha que me separar.
Mas
não se deixou impressionar por nada disso. Fazia muito tempo que não
se impressionava por coisa alguma. Sufocava os remorsos com o máximo
de trabalho possível e agora só se preocupava com a chegada dos
garotos, que precisavam ter um bom veraneio. Depois retornaria à
pintura.
Tinha
conseguido substituir quase tudo, menos os filhos, pelo trabalho e a
vida regular, normal, operosa, que observava na ilha. Acreditava ter
criado ali algo que haveria de perdurar e retê-lo. Agora, quando
sentia saudade de Paris, recorria às recordações em vez de viajar
para lá. Fazia o mesmo com toda a Europa e grande parte da Ásia e
da África.
Ainda
se lembrava do comentário de Renoir ao saber que Gauguin havia
abandonado tudo para ir pintar em Taiti: — Pra que ele precisa
gastar tanto dinheiro pra ir pra tão longe quando a gente pode
pintar tão bem aqui em Batignolles? — Em francês ficava melhor:
quand on peint si bien aux Batignolles, e Thomas Hudson
imaginava a ilha como o seu quartier, onde se havia radicado,
conhecia os vizinhos e o trabalho rendia tanto como em Paris, quando
Tom Jr. ainda era criança.
Às
vezes deixava a ilha para pescar em águas cubanas ou para ir às
montanhas no outono. Mas alugara a fazenda que possuía em Montana
porque a melhor época por lá era no verão e no outono, e agora os
meninos sempre tinham colégio no outono.
De
vez em quando precisava dar um pulo a Nova York para falar com seu
marchand de tableaux. Mas já se tornara mais frequente
suceder o oposto, e o marchand levava as telas consigo para o
norte. Estava muito cotado como pintor, sendo respeitado tanto na
Europa quanto em seu próprio país. Recebia a renda sistemática do
arrendamento petrolífero de terras que haviam sido propriedade do
avô. Antigamente pastoris, ao serem vendidas alguém teve a boa
ideia de conservar os direitos de mineração do solo. Cerca da
metade dos rendimentos que usufruía era absorvida em pensões
alimentares, mas o saldo proporcionava-lhe a segurança necessária
para pintar unicamente o que queria, livre de coações comerciais.
Permitia-lhe também viver onde bem entendesse e viajar quando lhe
desse vontade.
Vencera
praticamente em todos os setores da vida, exceto no casamento, apesar
de nunca ter ligado realmente para o sucesso. O que lhe interessava
eram a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira
mulher de quem se enamorara. Depois dela havia amado várias outras,
e às vezes uma vinha fazer-lhe companhia na ilha. Sentia falta da
presença feminina e durante certo tempo eram bem-vindas. Gostava de
tê-las ali, frequentemente por períodos bastante longos. Mas no fim
sempre sentia alívio quando partiam, mesmo aquelas por quem se
afeiçoava. Aprendera a não discutir mais com mulheres e agora sabia
como se esquivar do casamento. Duas coisas quase tão difíceis de
aprender quanto se radicar e pintar de maneira constante, metódica.
Mas tinha aprendido — e esperava que fosse em caráter permanente.
Há muito tempo que sabia pintar e acreditava estar aprendendo cada
vez mais com o correr dos anos. Aprender, porém, a ficar sempre no
mesmo lugar e pintar com disciplina lhe fora bastante penoso, porque
houve uma época em sua vida em que se mostrara indisciplinado,
egoísta e impiedoso. Agora o sabia, não só porque muitas mulheres
lhe tinham feito ver isso, mas porque descobrira finalmente, por si
mesmo. Decidiu-se então a ser egoísta apenas com a pintura,
implacável só com o trabalho — e a se autodisciplinar, aceitando
a disciplina.
Ia
aproveitar a vida dentro dos limites que se havia imposto e trabalhar
com afinco. E hoje sentia-se felicíssimo porque os filhos iam chegar
na manhã seguinte.
— seu
Tom, o senhor não quer nada? — perguntou-lhe Joseph, o criado. —
Tirou o dia de folga, né?
Joseph
era alto, a cara espichada, pretíssima, com mãos e pés enormes.
Usava paletó e calças brancos e andava descalço.
— Obrigado,
Joseph. Acho que não quero nada.
— Nem
um pouco de gim-tônica?
— Não.
Acho que vou lá embaixo tomar um no bar do seu Bobby.
— Tome
um aqui. Sai mais barato. Seu Bobby tava de cara feia quando passei
por lá. Misturou muita bebida, diz ele. Teve uma moça, de um iate
aí, que pediu um troço chamado White Lady, e ele serviu pra
ela uma garrafa daquela mineral americana que tem uma dona com uma
espécie de vestido de mosquiteiro branco sentada junto de uma fonte.
— É
melhor eu ir até lá.
— Deixe
eu lhe preparar um antes. Veio correspondência pro senhor na lancha
do piloto. O senhor pode ler enquanto toma seu drinque e depois vai
lá no seu Bobby.
— Tá
certo.
— Que
bom — disse Joseph. — Porque já tá preparado. Parece que não
tem nada importante nas cartas, seu Tom.
— Onde
estão?
— Lá
na cozinha. Já vou buscar. Tem duas com letra de mulher. Uma de Nova
York. Uma de Palm Beach. Letra bonita. Uma daquele moço que vende os
quadros do senhor em Nova York. E mais duas que eu nunca vi.
— Não
quer respondê-las pra mim?
— Quero,
sim senhor. É só o senhor deixar. Senão nem sei o que vou fazer
com toda a instrução que eu tive.
— É
melhor ir buscá-las.
— Sim,
senhor, seu Tom. Chegou jornal também.
— Por
favor, Joseph, deixe pra hora do café.
Thomas
Hudson sentou, leu a correspondência e tomou a bebida gelada. Releu
uma carta e depois guardou todas numa gaveta da escrivaninha.
— Joseph
— chamou. — Você arrumou tudo para os meninos?
— Arrumei,
sim, seu Tom. E duas caixas extras de Coca-Cola. O Tom Jr. deve estar
maior do que eu, né?
— Ainda
não.
— Acha
que ele já pode me derrubar?
— Acho
que não.
— Eu
lutei tantas vezes com aquele menino por motivos pessoais — disse
Joseph. — Vai ser muito gozado chamar ele de seu. Seu Tom, seu
David e seu Andrew. Três dos meninos mais danados que conheço. E o
mais safado é o Andy.
— Ele
já nasceu safado — disse Thomas Hudson.
— E,
puxa vida, nunca mais parou — disse Joseph, cheio de admiração.
— Vê
se lhes dá um bom exemplo este verão.
— Seu
Tom, o senhor não vai querer que eu dê bom exemplo pra esses
meninos este verão. Há três ou quatro anos, quando eu não sabia
nada, podia ser. Eu vou é copiar o jeitão do Tom. Ele teve em
colégio granfa e aprendeu boas maneiras de gente rica. Não vou
poder ficar igualzinho a ele, mas posso comportar-me que nem ele. Sem
cerimônia, mas educado. Depois vou ser tão sabido como o Dave. Essa
é a parte mais difícil. Aí então vou aprender como é que o Andy
faz pra ser tão safado.
— Não
comece com safadezas por aqui.
— Não,
seu Tom, o senhor entendeu mal o que eu quis dizer. Essa safadeza não
é pra aplicar aqui em casa. Eu quero ela pra minha vida privada.
— Vai
ser bom com eles aqui, não é?
— Seu
Tom, não vai haver nada que se compare com aquela vez que eles
fizeram aquele fogaréu todo. Pra mim, aquilo só pode ser comparado
com a Segunda Vinda do Messias. Vai ser bom?, o senhor me pergunta.
Vai, sim, senhor.
— Temos
que pensar numa porção de divertimentos pra eles.
— Não,
seu Tom — disse Joseph. — A gente devia era pensar num modo de
proteger esses meninos dos próprios planos terríveis que eles têm.
O Eddy podia ajudar-nos. Ele conhece os três melhor do que eu. Eu
sou amigo deles, o que torna a coisa mais difícil.
— Como
vai o Eddy?
— Já
anda bebendo por aí pra festejar antecipadamente o aniversário da
rainha. Tá em plena forma.
— É
melhor eu dar um pulo lá no seu Bobby enquanto ele ainda tá de cara
feia.
— Ele
perguntou pelo senhor, seu Tom. O seu Bobby é um moço educado como
poucos, e às vezes esse lixo que chega de iate por aqui deixa ele
fubeca. Ele tava fubeca pra burro quando vim de lá.
— Que
é que você foi fazer lá?
— Fui
tomar Coca-Cola e fiquei pra uma rodadinha de bilhar.
— Como
vai a mesa?
— Pior.
— Eu
vou até lá — disse Thomas Hudson. — Mas antes preciso de um
banho e quero trocar de roupa.
— Já
deixei estendida em cima da cama pro senhor — avisou Joseph. —
Quer outro gim-tônica?
— Não,
obrigado.
— O
seu Roger tá lá na lancha.
— Ótimo.
Depois eu falo com ele.
— Ele
vai ficar hospedado aqui?
— Talvez.
— Então,
por via das dúvidas, vou arrumar a cama pra ele.
— Isso.
Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente
Assinar:
Postagens (Atom)