sexta-feira, 19 de abril de 2024

Nossa Senhora das Fêmeas | Wando

Nosso tempo

A Osvaldo Alves

I

Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.

As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.

Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiura,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família,
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

Carlos Drummond de Andrade, in A rosa do povo

Um homem sem cabeça (conto argelino)

Esta é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então, Ben Sakrane. Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na realidade, trata-se de Till Eulenspiegel ou de Jean le Sot; o louco que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para ser ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.
Um dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham escudos, lanças, arcos e aljavas cheias de setas.
Onde vão nesses preparos? — perguntou-lhes.
Não sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa batalha, que promete ser dura!
Ótimo, eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que ouvi falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir convosco, só desta vez!
Está bem! És bem-vindo!
E lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de batalha.
A primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!
Depressa! Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça e declarou:
A ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a mais ínfima parte de cérebro agarrada, está perdido!
O ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua “profunda gratidão para com o Mestre”, e declarou:
Doutor, pode remover a seta sem medo; não vai encontrar nela a mais ínfima parte de cérebro.
Esteja calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de si! Como sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?
Sei-o bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula de cérebro, nunca teria vindo com os meus amigos.

Margaret Read MacDonald, in Peace Tales

Perguntas e respostas

Itaparica by Night

Em matéria de gente da noite, nunca fomos assim um grande celeiro. Aqui na ilha, todo mundo é orador, escritor e poeta; produzimos elevado número de patriotas; herói, nem se fala; jogador de futebol, só para ficar num exemplo recente, temos Toninho, que foi lateral do Flamengo e da Seleção e que é aqui da Gameleira; cantores, desculpem, mas contamos com Natércio Bastos, que não nasceu aqui mas é como se tivesse, cujo gogó eu só dou ousadia de comparar com o de Orlando Silva; senhoras prendadas, é uma fartura; mulher bonita, de todas as cores, pergunte a quem já passou aqui e espere a baba; até artistas de cinema temos inúmeros, todo mundo que vem aqui filma a gente.
Mas em matéria de noite, forçoso é reconhecer que não brilhamos como nos outros setores. Damas da noite não temos, só a variedade botânica. Meu amigo Zé de Honorina considera isso uma vergonha, sinal de atraso mesmo, se queixa muito. Ele é do tempo em que os bregas eram casas de cultura. A freguesia ia lá com a finalidade habitual, mas tudo num clima de muito respeito, cordialidade e refinamento. As raparigas recitavam versos, a dona da casa oferecia docinhos, era uma coisa fina mesmo, e Zé sente falta. São os tempos.
Grandes boêmios também nos faltam. Abundam vocações, dolorosamente perdidas pela deficiência do meio ambiente. No tempo em que funcionava o Iate Clube, a orquestra era altamente boêmia, mas padecia da ausência de incentivo. Tínhamos Pititinga e seu trompete, hoje abrilhantando cabarés de Salvador. Nascimento do saxofone e da clarineta morreu. Almerindo do trombone também morreu. Carlito da bateria abandonou a arte, hoje é alto funcionário, ganhando rios e rios de dinheiro. E assim por diante.
É bem verdade que hoje em dia temos o Chega-Mais, que é uma espécie de Hippopotamus montado num curral de jegue. Mas tem luz estroboscópica e som incrementado. Quando o aplaudido cineasta Neville d’Almeida nos visitou, tive a oportunidade de levá-lo ao Chega-Mais, eis que ele é homem da noite e eu queria mostrar que Itaparica não curva a cabeça para ninguém. Chegamos lá, gostamos bastante, vimos as moças dançando lambada e tudo mais. Entretanto, descobrimos rapidamente que, se beliscássemos as moças ou tomássemos outras ousadias sofisticadas, tão comuns nos grandes centros urbanos, elas reagiriam desfavoravelmente. Elas só vão lá para dançar lambada mesmo.
Assim, qual não foi minha surpresa quando, ao desfilar solitário pela beira do cais, lá pelas dez e meia da noite, tudo deserto (“o movimento da lanchonete hoje foram quatro cervejas”, me havia informado Zé de Honorina rancorosamente), topo com Isaías Português que, muito lépido, vai na direção da ponte nova.
Isaías, você por aqui a esta hora? Alguma festa?
Pois!
Festa mesmo?
É como se fosse. Vou ao novo bar.
Ao novo bar? Tem um novo bar na cidade?
Ah, não sabia? Pois! É, é! Um novo bar, coisa porreira mesmo!
Ai, que estás a dizer-me? Antão vais aos copos?
Aos copos e às miúdas!
Às miúdas? Como “às miúdas”? Que miúdas? Miúdas do tipo daquelas que ficam a passar acima e abaixo na avenida da Liberdade?
Pois! Desse mesmíssimo tipo. Só que novinhas, bonitinhas, todas com dentes, bestiais mesmo.
Antão já estiveste lá antes?
Não, esta é a primeira vez. Mas disse-me o italiano...
O italiano? Que italiano?
Um italiano novo que chegou aí, foge-me o apelido, é um nome italiano desses. Esse italiano montou o bar naquela barcaça imensa que vive atracada à ponte nova, diz-me que está catita, tudo muito moderno e com camarotes.
Com o quê? O quê?
Ca-ma-ro-tes, é o que estou a dizer-te!
Troças, Isaías, fazes piada.
Não, senhor, não faço piada, não senhor! Bar, miúdas e camarotes, é o que te digo! Se não acreditas, por que não me fazes companhia?
Mas, Isaías, tu achas...
Anda lá!
Mas não achas que, se as nossas santas esposas vierem a saber desta proeza, não será uma grande estopada? Olha que vão ficar mesmo nas tintas, se souberem!
Disse lá à minha que ia até a Fonte da Bica para fazer o quilo, pois a caldeirada que comi à ceia bateu-me na fraqueza.
Bem pensado, caríssimo Isaías. Aos copos e às miúdas!
Bomba, bomba, bomba — Itaparica com barzinho e motel flutuante! Imaginei meu avô rodopiando na sepultura (não por indignação, mas por não terem inventado essas coisas ainda no tempo dele, meu avô era danado). Fazia-se indispensável uma imediata visita.
O italiano foi muito efusivo, levou-nos ao main lounge, onde havia um barzinho bem-arrumado e moças dançando. Novinhas, bonitinhas, todas com dentes. Isaías e eu sentamos, o italiano soube que eu era escritor, levantou-se maravilhado, bateu no peito e, quase às lágrimas, recitou Dante. Tivemos um papo literário e, subsequentemente, observamos a falta de outros frequentadores. Além de nós três, só havia as moças.
Questo è il problema — disse o italiano. — Qui non tem homi.
Não tem homem? Bem, eu e o Isaías somos homens, hein Isaías, ha-ha!
E muito homens!
Ma vocês... No me refiro in questo sentido.
Ah, em outro sentido, ah, sim.
Incômodo silêncio. No outro sentido, ele tinha razão. Isaías e eu nos entreolhamos, olhamos as mocinhas, fomos nos levantando um tantinho sem graça. Estava ficando tarde, outro dia voltaríamos com mais calma etc. etc. Quando já íamos na ponte, o italiano acenou afavelmente.
Io non disse? — gritou ele.
Ah, vai pastaire — resmungou Isaías.
Sim, claro, outro dia voltaríamos, assim a primeira vez era para um reconhecimento, uma avaliação, todo mundo sabe como são essas coisas. Despedimo-nos à porta de minha casa, ele prosseguiu até a dele. Entrei e, como marido honesto, achei que devia comunicar o sucedido à minha mulher, para evitar qualquer problema.
Mulher — disse eu, cutucando-lhe as costelas para ela acordar —, acabo de chegar de um motel.
E eu do Moulin Rouge — disse ela. — Se as crianças acordarem com esse barulho, quem vai cuidar é você.
Ela é quem sabe da vida dela, pensei eu, adormecendo com um riso cínico nos lábios.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

Alguma coisa urgentemente


Os primeiros anos de vida suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos perigosos: — Quando é que você vai morrer? — Não vou te deixar sozinho, filho!
Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava.
Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo.
No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe?
Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz.
Eu não gosto daqui.
Você vai se acostumar e até gostar.
Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração.
Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem. — Ele vai bem.
Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim: — Ele vai bem.
O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros.
Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias. — Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula. — Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono.
Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou:
Você quer ir?
Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever. — Então você saberá de tudo um dia — ele falou.
O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado. Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal.
Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas.
Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas.
No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos, ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio.
Eu quero saber — eu disse para o meu pai.
Pode ser perigoso — ele respondeu.
E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar.
Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista. Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio.
Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse. Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui. — Quer entrar? — o homem me disse. Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro. — Trezentas pratas — falei.
Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo. — Vamos — disse o homem ligando o carro. Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga.
No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar:
Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas.
Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo: — Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que é verdade. — E se me torturarem? — perguntei.
Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos.
Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso. O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puro centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem?
Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou: — Você tem quantos irmãos? Eu respondi sete. — O teu pai manda brasa, hein?
Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora.
Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele. — O que você está sentindo? — perguntei.
Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo.
Dói?
Já não sinto dor nenhuma.
De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da
Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho.
A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou.
Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada.
Quando ele sentou no sofá é que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas? roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, á como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo? a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém.
Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não aguentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.

João Gilberto Noll, in Os cem melhores contos brasileiros do século

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Djavan | Limão / Avião / Flor de Lis

Balada do festival

Na verdade apareceu
vindo de terras distantes
um homem quase poeta
que me amou e que se deu
a mim e a outras também.
E dizia ao telefone
coisas tão ternas, tão tudo,
que só de ouvi-lo e esperá-lo
muita mulher se perdeu.
Muita mulher... também eu.
Amei-o naquela pressa
de horas marcadas e hotéis...
dentro de mim a promessa
de amá-lo ainda que fosse
na velha China, nos mares,
dentro de algum avião.
E quando ele me chamava
eu toda vagotonia
ia e vinha e pressentia
o homem que me fugia
de passaporte na mão.

Agora estou tão cansada
perdi-me na confusão
de ser amante e amada.
Se ainda vou procurá-lo
em Paris ou em Viena
não me perguntem, amigos,
que eu faço um olhar tão triste
tão triste de fazer pena...
Na verdade apareceu
vindo de terras distantes
um homem asas e Orfeu.

Hilda Hilst, in Baladas

Criatividade

Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida — esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.

Mário Quintana, in Porta giratória

Calvin e Haroldo

Missa do cadáver

Nos meus anos de professor na Unicamp, conheci uma professora de quem me tornei um grande amigo: Vilma Clóris de Carvalho. Sua especialidade e prazer era a neuroanatomia. E até frequentei um dos seus cursos como aluno igual aos outros, pra valer. O que eu mais admirava na Vilma é uma virtude que está ficando cada vez mais rara: ela era apaixonada por ensinar. Gostava dos seus alunos. Digo que a paixão por ensinar está ficando cada vez mais rara porque, nos relatórios de avaliação que os professores têm de preencher para os órgãos oficiais de controle burocrático, as atividades de ensino nem mesmo são mencionadas. O que vale são as pesquisas publicadas em revistas internacionais. Os professores, assim, deixam de ser professores. Transformam-se em pesquisadores. Os alunos não importam. Na realidade, atrapalham... Eu, pessoalmente, acho que ensinar é muito mais importante que pesquisar. Porque é no ensino que se aprende a pensar. E é da capacidade de pensar que surgem os pesquisadores. Se a pesquisa é um fruto, o ensino são as sementes que foram plantadas. Sem sementes não há árvores, sem árvores não há frutos. Pois a Vilma vivia para plantar, vivia a ensinar a pensar. Era uma verdadeira educadora. Uma das práticas mais comoventes de suas atividades como professora de anatomia era a “Missa do Cadáver”. Lidando com peças anatômicas diariamente, o aluno pode se tornar insensível e embrutecido, esquecido de que aquelas peças um dia foram um corpo que sonhou, sofreu, amou – alguém como nós. A “Missa do Cadáver” era para que os alunos se lembrassem das pessoas... Lembro-me de que, numa das missas, sobre a mesa eucarística, dentro de um recipiente de vidro, havia um coração vermelho. Houve tempo em que aquele coração batia... O caráter da Vilma marcou os seus alunos. Aposentou-se. Mudou-se para Recife. Escreveu um lindo livro em que aparecem combinadas as suas memórias de vida – fascinantes! – e o seu trabalho como professora e pesquisadora: Vivendo sem calendário.

Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

As ilhas da corrente | 2

O inverno acabou e a primavera estava quase no fim quando os filhos de Thomas Hudson chegaram à ilha naquele ano. Os três haviam combinado encontrar-se em Nova York para viajar juntos de trem e depois tomar o avião em Miami. Como de costume, não faltaram dificuldades com a mãe dos dois menores. Ela planejara uma excursão à Europa sem dizer nada, naturalmente, ao pai dos garotos sobre quando pretendia realizá-la, e queria os filhos durante o verão. Hudson poderia ficar com eles para as festas de fim de ano; depois do Natal, lógico. Porque o Natal seria passado com ela.
Thomas Hudson a essa altura já conhecia bem a manobra e afinal houve as concessões mútuas de sempre. Os dois filhos menores vinham à ilha visitar o pai por cinco semanas e depois iriam embora para Nova York, de onde partiriam na classe de estudante de um vapor da Linha Francesa ao encontro da mãe em Paris, onde ela já teria comprado algumas roupas necessárias. Estariam sob a tutela do irmão mais velho, Tom Jr., que depois iria reunir-se à mãe dele, que andava fazendo um filme no sul da França.
A mãe de Tom Jr. não exigira que ele fosse para lá e teria gostado que permanecesse na ilha com o pai. Mas adoraria vê-lo e era um acordo razoável em vista da decisão inabalável da mãe dos outros meninos, mulher deliciosa e de raro encanto, que jamais alterava qualquer plano que fizesse na vida. Sempre os conservava em segredo, feito um autêntico general, e os punha em prática com idêntico rigor. Uma concessão podia ser cabível. Mas nunca a modificação radical de um plano concebido em noite em claro, manhã de contrariedade ou festa regada a gim.
Um plano era um plano, e uma decisão, indubitavelmente, uma decisão. Sabendo disso, e bem adestrado nos costumes do divórcio, Thomas Hudson se deu por satisfeito por terem chegado a um acordo e que os filhos estivessem vindo por cinco semanas. Se é esse o prazo que conseguimos, pensou, contentemo-nos com ele. Cinco semanas é tempo suficientemente longo para se passar junto das pessoas que amamos e ao lado de quem gostaríamos de ficar para sempre. Mas, em primeiro lugar, por que se havia separado da mãe de Tom? Melhor não pensar nisso, aconselhou a si mesmo. Eis aí uma coisa sobre a qual convém pôr uma pedra em cima. E os filhos que você teve com a outra são ótimos. Muito estranhos, complicados, mas você bem sabe quantas boas qualidades herdaram da mãe. Mulher ótima, de quem você também nunca deveria ter se separado. E então disse consigo mesmo: Não, eu tinha que me separar.
Mas não se deixou impressionar por nada disso. Fazia muito tempo que não se impressionava por coisa alguma. Sufocava os remorsos com o máximo de trabalho possível e agora só se preocupava com a chegada dos garotos, que precisavam ter um bom veraneio. Depois retornaria à pintura.
Tinha conseguido substituir quase tudo, menos os filhos, pelo trabalho e a vida regular, normal, operosa, que observava na ilha. Acreditava ter criado ali algo que haveria de perdurar e retê-lo. Agora, quando sentia saudade de Paris, recorria às recordações em vez de viajar para lá. Fazia o mesmo com toda a Europa e grande parte da Ásia e da África.
Ainda se lembrava do comentário de Renoir ao saber que Gauguin havia abandonado tudo para ir pintar em Taiti: — Pra que ele precisa gastar tanto dinheiro pra ir pra tão longe quando a gente pode pintar tão bem aqui em Batignolles? — Em francês ficava melhor: quand on peint si bien aux Batignolles, e Thomas Hudson imaginava a ilha como o seu quartier, onde se havia radicado, conhecia os vizinhos e o trabalho rendia tanto como em Paris, quando Tom Jr. ainda era criança.
Às vezes deixava a ilha para pescar em águas cubanas ou para ir às montanhas no outono. Mas alugara a fazenda que possuía em Montana porque a melhor época por lá era no verão e no outono, e agora os meninos sempre tinham colégio no outono.
De vez em quando precisava dar um pulo a Nova York para falar com seu marchand de tableaux. Mas já se tornara mais frequente suceder o oposto, e o marchand levava as telas consigo para o norte. Estava muito cotado como pintor, sendo respeitado tanto na Europa quanto em seu próprio país. Recebia a renda sistemática do arrendamento petrolífero de terras que haviam sido propriedade do avô. Antigamente pastoris, ao serem vendidas alguém teve a boa ideia de conservar os direitos de mineração do solo. Cerca da metade dos rendimentos que usufruía era absorvida em pensões alimentares, mas o saldo proporcionava-lhe a segurança necessária para pintar unicamente o que queria, livre de coações comerciais. Permitia-lhe também viver onde bem entendesse e viajar quando lhe desse vontade.
Vencera praticamente em todos os setores da vida, exceto no casamento, apesar de nunca ter ligado realmente para o sucesso. O que lhe interessava eram a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher de quem se enamorara. Depois dela havia amado várias outras, e às vezes uma vinha fazer-lhe companhia na ilha. Sentia falta da presença feminina e durante certo tempo eram bem-vindas. Gostava de tê-las ali, frequentemente por períodos bastante longos. Mas no fim sempre sentia alívio quando partiam, mesmo aquelas por quem se afeiçoava. Aprendera a não discutir mais com mulheres e agora sabia como se esquivar do casamento. Duas coisas quase tão difíceis de aprender quanto se radicar e pintar de maneira constante, metódica. Mas tinha aprendido — e esperava que fosse em caráter permanente. Há muito tempo que sabia pintar e acreditava estar aprendendo cada vez mais com o correr dos anos. Aprender, porém, a ficar sempre no mesmo lugar e pintar com disciplina lhe fora bastante penoso, porque houve uma época em sua vida em que se mostrara indisciplinado, egoísta e impiedoso. Agora o sabia, não só porque muitas mulheres lhe tinham feito ver isso, mas porque descobrira finalmente, por si mesmo. Decidiu-se então a ser egoísta apenas com a pintura, implacável só com o trabalho — e a se autodisciplinar, aceitando a disciplina.
Ia aproveitar a vida dentro dos limites que se havia imposto e trabalhar com afinco. E hoje sentia-se felicíssimo porque os filhos iam chegar na manhã seguinte.
seu Tom, o senhor não quer nada? — perguntou-lhe Joseph, o criado. — Tirou o dia de folga, né?
Joseph era alto, a cara espichada, pretíssima, com mãos e pés enormes. Usava paletó e calças brancos e andava descalço.
Obrigado, Joseph. Acho que não quero nada.
Nem um pouco de gim-tônica?
Não. Acho que vou lá embaixo tomar um no bar do seu Bobby.
Tome um aqui. Sai mais barato. Seu Bobby tava de cara feia quando passei por lá. Misturou muita bebida, diz ele. Teve uma moça, de um iate aí, que pediu um troço chamado White Lady, e ele serviu pra ela uma garrafa daquela mineral americana que tem uma dona com uma espécie de vestido de mosquiteiro branco sentada junto de uma fonte.
É melhor eu ir até lá.
Deixe eu lhe preparar um antes. Veio correspondência pro senhor na lancha do piloto. O senhor pode ler enquanto toma seu drinque e depois vai lá no seu Bobby.
Tá certo.
Que bom — disse Joseph. — Porque já tá preparado. Parece que não tem nada importante nas cartas, seu Tom.
Onde estão?
Lá na cozinha. Já vou buscar. Tem duas com letra de mulher. Uma de Nova York. Uma de Palm Beach. Letra bonita. Uma daquele moço que vende os quadros do senhor em Nova York. E mais duas que eu nunca vi.
Não quer respondê-las pra mim?
Quero, sim senhor. É só o senhor deixar. Senão nem sei o que vou fazer com toda a instrução que eu tive.
É melhor ir buscá-las.
Sim, senhor, seu Tom. Chegou jornal também.
Por favor, Joseph, deixe pra hora do café.
Thomas Hudson sentou, leu a correspondência e tomou a bebida gelada. Releu uma carta e depois guardou todas numa gaveta da escrivaninha.
Joseph — chamou. — Você arrumou tudo para os meninos?
Arrumei, sim, seu Tom. E duas caixas extras de Coca-Cola. O Tom Jr. deve estar maior do que eu, né?
Ainda não.
Acha que ele já pode me derrubar?
Acho que não.
Eu lutei tantas vezes com aquele menino por motivos pessoais — disse Joseph. — Vai ser muito gozado chamar ele de seu. Seu Tom, seu David e seu Andrew. Três dos meninos mais danados que conheço. E o mais safado é o Andy.
Ele já nasceu safado — disse Thomas Hudson.
E, puxa vida, nunca mais parou — disse Joseph, cheio de admiração.
Vê se lhes dá um bom exemplo este verão.
Seu Tom, o senhor não vai querer que eu dê bom exemplo pra esses meninos este verão. Há três ou quatro anos, quando eu não sabia nada, podia ser. Eu vou é copiar o jeitão do Tom. Ele teve em colégio granfa e aprendeu boas maneiras de gente rica. Não vou poder ficar igualzinho a ele, mas posso comportar-me que nem ele. Sem cerimônia, mas educado. Depois vou ser tão sabido como o Dave. Essa é a parte mais difícil. Aí então vou aprender como é que o Andy faz pra ser tão safado.
Não comece com safadezas por aqui.
Não, seu Tom, o senhor entendeu mal o que eu quis dizer. Essa safadeza não é pra aplicar aqui em casa. Eu quero ela pra minha vida privada.
Vai ser bom com eles aqui, não é?
Seu Tom, não vai haver nada que se compare com aquela vez que eles fizeram aquele fogaréu todo. Pra mim, aquilo só pode ser comparado com a Segunda Vinda do Messias. Vai ser bom?, o senhor me pergunta. Vai, sim, senhor.
Temos que pensar numa porção de divertimentos pra eles.
Não, seu Tom — disse Joseph. — A gente devia era pensar num modo de proteger esses meninos dos próprios planos terríveis que eles têm. O Eddy podia ajudar-nos. Ele conhece os três melhor do que eu. Eu sou amigo deles, o que torna a coisa mais difícil.
Como vai o Eddy?
Já anda bebendo por aí pra festejar antecipadamente o aniversário da rainha. Tá em plena forma.
É melhor eu dar um pulo lá no seu Bobby enquanto ele ainda tá de cara feia.
Ele perguntou pelo senhor, seu Tom. O seu Bobby é um moço educado como poucos, e às vezes esse lixo que chega de iate por aqui deixa ele fubeca. Ele tava fubeca pra burro quando vim de lá.
Que é que você foi fazer lá?
Fui tomar Coca-Cola e fiquei pra uma rodadinha de bilhar.
Como vai a mesa?
Pior.
Eu vou até lá — disse Thomas Hudson. — Mas antes preciso de um banho e quero trocar de roupa.
Já deixei estendida em cima da cama pro senhor — avisou Joseph. — Quer outro gim-tônica?
Não, obrigado.
O seu Roger tá lá na lancha.
Ótimo. Depois eu falo com ele.
Ele vai ficar hospedado aqui?
Talvez.
Então, por via das dúvidas, vou arrumar a cama pra ele.
Isso.

Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente