segunda-feira, 24 de março de 2025

B. F. e eu

  

 

Gostei dele de cara, só de falar com ele pelo telefone. Voz rouca, relaxada, com um sorriso e sexo nela, você sabe o que eu quero dizer. Como é que a gente lê as pessoas pela voz, afinal? A moça do serviço de informações da companhia telefônica é autoritária e condescendente e nem é uma pessoa de verdade. E aquele sujeito da empresa de TV a cabo que diz que a nossa ligação é muito importante para eles e que eles querem nos agradar, dá para ouvir o sarcasmo na voz dele.

Eu já trabalhei como telefonista num hospital. Passava o dia inteiro falando com vários médicos que eu nunca via. Todas nós tínhamos os nossos favoritos e aqueles que não suportávamos. Nenhuma jamais tinha visto o dr. Wright, mas a voz dele era tão macia e tranquila que todas nós éramos apaixonadas por ele. Se tínhamos que passar um bipe para ele, cada uma botava um dólar em cima da mesa telefônica, corria para atender ligações para ser aquela que ia falar com ele, ficar com o dinheiro e dizer: “Ooolááá, dr. Wright. A UTI está chamando o senhor, doutor”. Nunca cheguei a conhecer o dr. Wright pessoalmente, mas quando fui trabalhar na emergência acabei conhecendo todos os outros médicos com quem tinha falado pelo telefone. Logo descobri que eles eram exatamente como imaginávamos. Os melhores médicos eram aqueles que atendiam as ligações prontamente, eram claros e educados; os piores eram os que costumavam berrar com a gente e dizer coisas como “Será possível que estejam contratando retardadas como telefonistas?”. Eram esses que deixavam o setor de emergência atender os pacientes deles, que mandavam encaminhar os pacientes do Medicaid para o hospital do condado. Era impressionante como os que tinham voz sexy eram igualmente sexy na vida real. Mas, não, eu não sei descrever o que na voz das pessoas passa a impressão de que elas acabaram de acordar ou estão loucas para ir para a cama. Pense na voz de Tom Hanks. Esqueça. Está bem, agora pense na de Harvey Keitel. E se você não acha que Harvey é sexy basta fechar os olhos.

Pois bem, eu tenho uma voz muito agradável. Sou uma mulher forte, durona até, mas todo mundo acha que eu sou muito gentil por causa da minha voz. Soo jovem apesar de ter setenta anos. Caras da Pottery Barn flertam comigo. “Ei, aposto que você vai adorar rolar nesse tapete.” Coisas desse tipo.

Tenho tentado arranjar alguém para ladrilhar o chão do meu banheiro. As pessoas que botam anúncios em jornais se oferecendo para fazer serviços avulsos, pintura etc. não parecem realmente querer trabalhar. Todas elas estão muito ocupadas no momento ou uma secretária eletrônica atende com uma música do Metallica ao fundo e ninguém liga de volta quando você deixa recado. Depois de seis tentativas, B. F. foi o único que disse que viria até a minha casa. Ele atendeu o telefone: É, aqui é o B. F. Então eu disse: Oi, aqui é a L. B. E ele riu, bem devagar. Eu disse que estava procurando alguém para ladrilhar o chão do meu banheiro e ele disse que ele era o homem que eu estava procurando. Podia vir a qualquer hora. Imaginei que ele fosse um garotão de uns vinte e poucos anos, boa-pinta, com tatuagens e cabelo espetado, uma picape e um cachorro.

Ele não apareceu no dia combinado, mas ligou no dia seguinte, disse que tivera um imprevisto e perguntou se poderia vir naquela tarde. Eu disse claro, pode vir. Mais tarde naquele dia eu vi a picape, ouvi batidas na minha porta, mas levei um tempo para chegar até lá. Tenho uma artrite braba e também costumo me enrolar na mangueira do meu tanque de oxigênio. Já vai!, gritei.

B. F. estava apoiado na parede e no corrimão, arfando e tossindo depois de ter subido os três degraus. Era um homem enorme, alto, muito gordo e muito velho. Mesmo enquanto ele ainda estava do lado de fora, tentando recuperar o fôlego, eu já estava sentindo o cheiro dele. Tabaco e lã suja, suor fedorento de alcoólatra. Ele tinha olhos azul-bebê injetados que sorriam. Gostei dele de cara.

Ele disse que provavelmente estava precisando de um pouco daquele meu oxigênio. Respondi que ele devia arranjar um tanque, mas ele disse que tinha medo de se explodir fumando. Entrou e foi andando em direção ao banheiro. Não era como se eu precisasse mostrar para ele onde ficava. Moro num trailer e não há mesmo muitos lugares onde possa haver um banheiro. Mas ele simplesmente rumou para lá pisando forte, balançando o trailer enquanto andava. Fiquei vendo B. F. medir o banheiro durante um tempo, depois fui me sentar na cozinha. Continuei sentindo o cheiro dele de lá. Aquela sua catinga era como uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô e tio John, para começar.

Cheiros ruins podem ser agradáveis. Um leve odor de cangambá na floresta. Bosta de cavalo nas pistas de corrida. Uma das melhores coisas de visitar os tigres no zoológico é sentir aquele fedor de fera. Em touradas, eu sempre gostei de sentar lá no alto, para ver tudo, como na ópera, mas se você senta perto da barrera dá para sentir o cheiro do touro.

B. F. era exótico para mim simplesmente porque estava bem sujo. Eu moro em Boulder, onde não existe sujeira. Não existem pessoas sujas. Até os praticantes de corrida daqui parecem ter acabado de sair do chuveiro. Fiquei me perguntando onde será que ele bebia, porque eu também nunca vi nenhum pé-sujo em Boulder. B. F. parecia ser do tipo que gosta de beber conversando.

Ele estava falando sozinho no banheiro, grunhindo e arfando enquanto se abaixava até o chão para medir o armário de toalhas. Quando içou o corpanzil para se pôr de pé de novo, com um PUTA MERDA, eu juro que a casa inteira oscilou para trás e para a frente. Ele saiu do banheiro e me disse que eu precisava de quatro metros quadrados de ladrilho. Dá pra acreditar?, eu disse. Eu comprei quatro e meio! Bem, você tem bom olho. Dois bons olhos. Ele sorriu com uma dentadura amarela.

Você só vai poder entrar lá depois de setenta e duas horas”, ele disse.

Isso é maluquice. Eu nunca ouvi falar numa coisa dessas.”

Bem, o certo é isso. Os ladrilhos precisam assentar.”

Nunca na minha vida eu ouvi alguém dizer: ‘Eu fui pra um hotel enquanto os ladrilhos assentavam’. Ou ‘Posso ficar na sua casa enquanto os meus ladrilhos assentam?’.

Nunca ouvi ninguém dizer nada parecido.”

Isso é porque geralmente as pessoas que revestem o chão de ladrilho têm dois banheiros.”

E o que as pessoas que só têm um banheiro fazem?”

Ficam com o tapete.”

O tapete já estava lá quando eu comprei o trailer. Era laranja e estava surrado e manchado.

Eu não suporto aquele tapete.”

Eu entendo. O que eu estou dizendo é que você só tem que evitar pisar nos ladrilhos durante setenta e duas horas.”

Eu não tenho como fazer isso. Tomo Lasix por causa do coração. Vou ao banheiro umas vinte vezes por dia.”

Bom, então você entra lá, mas se os ladrilhos saírem do lugar não venha botar a culpa em mim, porque eu assento ladrilhos muito bem.”

Combinamos um preço pelo serviço e ele disse que viria na sexta-feira de manhã. Estava na cara que ele tinha ficado dolorido depois de se abaixar. Ofegante, ele foi manquejando até lá fora, parando para se apoiar na bancada da cozinha e depois na estufa na sala. Fui andando atrás dele até a porta, fazendo as mesmas pausas para descansar. Ao pé da escada, ele acendeu um cigarro e sorriu para mim. Foi um prazer te conhecer. O cachorro dele esperava pacientemente na picape.

Ele não veio na sexta e também não telefonou. No domingo, eu liguei para o número dele. Ninguém atendeu. Encontrei a folha de jornal com todos os outros números de telefone. Ninguém atendeu em nenhum deles também. Imaginei um bar de filme de faroeste repleto de assentadores de ladrilho, todos segurando garrafas, cartas ou copos, cabeça adormecida em cima da mesa.

Ele ligou ontem. Eu disse alô e ele, “Oi, L. B., tudo bem?”.

Tudo, B. F. Eu estava aqui pensando se algum dia ia voltar a te ver.”

Que tal se eu passar aí amanhã?”

Por mim, tá ótimo.”

Por volta das dez, pode ser?”

Pode, claro”, eu disse. “A qualquer hora.”

Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos

domingo, 23 de março de 2025

Calvin

 

Aventura

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d’água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever.

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

João Fênix Feat.Virgínia Rodrigues | Alfonsina Y El Mar

Traumas Carnavalescos

Tenho uma amiga que diz que todos os nossos problemas são por causa de traumas de infância. Estou inclinado a acreditar que é verdade, porque meus problemas com o carnaval só podem ser causados pelo trauma que passei em meu primeiro baile infantil, enfrentado quando eu morava em Aracaju. Fui fantasiado de pierrô: roupa de cetim azul, borlas cor-de-rosa no lugar dos botões, um chapéu cônico com uma outra borla no topo, duas rodelas de ruge na cara, batom e pó-de-arroz. Cheguei a suspeitar que minha mãe preferia que eu tivesse nascido menina e, se pudesse, me fantasiaria de colombina. O fato é que eu não queria entrar no baile e me transformei, para o resto da vida, num carnavalesco singular, pois gosto do carnaval na teoria e sou contra na prática.

Para não falar que, além disso, sofri diversos outros traumas, alguns dos quais já na adolescência ou mesmo depois de adulto, reforçando meu sentimento de anormalidade por não entrar na folia. Fiz de tudo para entrar, mas não deu certo. Já frangote, por exemplo, combinei um truque com um amigo que também padecia do mesmo mal, companheiro de infortúnio momesco e mulheresco. Naquele tempo dos bailes, quando o sujeito ia sem companhia feminina, entrava no salão e saía pulando, às vezes com uma toalhinha pendurada no pescoço para cheirar lança-perfume. De repente, via uma moça também sozinha, estendia os braços para a frente e para o alto na direção dela e a moça vinha brincar com ele.

Moleza, decidimos nós dois, depois de passarmos umas duas horas observando o panorama da festa. Dava certo com todo mundo. Eu só não tinha a toalhinha, mas diversos destoalhados também apanhavam as moças, de maneira que não podíamos dizer que nos faltava equipamento essencial. Acompanhamos as manobras de vários apanhadores de moças e chegamos à conclusão de que a técnica não tinha segredos. Braços estendidos, sorriso nos lábios, pulinhos no ritmo da marchinha sendo tocada, ar confiante e moça no papo. E aí, depois de rondarmos o salão fazendo força para afetar familiaridade e mesmo indiferença diante do fuzuê geral, decidimos entrar na luta.

Ah, meus amigos, botem trauma de adolescente nisso. De meu posto de observação junto ao salão, podia ver algumas moças bem aproveitáveis, apesar de as melhores já estarem tomadas, que deveriam ser presas fáceis para foliões dando sopa. Fui realista e escolhi uma dentucinha de óculos. Era bem capaz de ela também ter trauma e aceitar solidariedade em meus braços estendidos. Respirei fundo, andei para lá e para cá alguns minutos, para finalmente adentrar o salão. Ela estava do outro lado, o que me dava tempo para deixar de me sentir ridículo, pulando sozinho com um sorriso que, creio eu agora, devia parecer esculpido a faca. Não envergonhei a pátria, fui em frente com decisão e coragem. Eis que finalmente, a uma distância de dois metros, encarei a dentucinha, levantei os braços e esperei estar com a mão no ombro dela em poucos instantes. Mas, assim que ela me viu em pose de combate, me lançou um olhar de que até hoje não gosto de lembrar e deu uma meia-volta fulminante. Claro, ninguém mais reparou em nada, mas eu me achei desmoralizado permanentemente, o que se confirmou com várias outras, até que desisti. Até hoje não estendo os braços para ninguém, há um limite para a rejeição, mesmo depois dos sessenta.

Mas o pior trauma foi o que acho que já contei aqui, faz algum tempo. Muita gente, contudo, não leu ou não lembra, de maneira que acho que posso contar de novo. Foi quando, depois de diversas outras tentativas, de blocos a batucadas, cedi a pressões e resolvi sair em Itaparica, na companhia de um primo meu, ambos vestidos de mulher. Era tanta minha vontade de ser carnavalesco que achei que, se me desse bem daquele jeito, ia entrar para um bloco de bonecas qualquer, destino é destino. E aí nos preparamos nós, envergando cada um uma máscara daquelas de pano e nariz vermelho que se usavam muito antigamente.

Devo confessar que, pouco tempo depois de zanzar pela ilha, pulando aqui e ali daquele jeito, achei que não tinha muita graça. Meu primo também, mas, tratando-se de um jovem com espírito prático e empreendedor, ele resolveu que, se assim não nos divertíamos, pelo menos podíamos tirar algum proveito da situação. E, claro, o primeiro que nos veio à mente foi faturar uma graninha, coisa muito comum entre os mascarados daquela época, lá na ilha. E nosso alvo era garantido: o avô de meu primo e meu tio-avô, que era rico, apesar de não muito reputado pela mão aberta, ou talvez por causa disso mesmo. De qualquer forma, o máximo de nossa ambição eram uns trocados que pelo menos recompensassem em parte nosso sacrifício em prol das tradições nacionais, nada que lhe arranhasse a fortuna.

Chegamos lá à casa dele, entramos falando com aquela vozinha fina de careta dos velhos tempos e fizemos uma porção de brincadeiras com todo mundo em casa, até chegarmos ao velho. Estava na hora de mexer com ele e, no fim, pedir um dinheirinho mixo qualquer. Ficamos junto a ele, dizendo não recordo que bobagens, até que ele me piscou um olho safado e, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, enfiou a mão por baixo de minha saia. Pulei fora rapidamente.

Que é isso, vô, sou eu! — exclamei, tirando a máscara.

He-he-he — fez ele, sem sinal de arrependimento. — Quem não quer ser não tenta parecer!

E, mesmo depois de tudo esclarecido, recusou-se, alegando no momento se encontrar desprevenido, a nos dar um tostão. Carnaval, desengano.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Balada / XIX

Nada de novo tenho a dizer-vos.

E se tivesse também não vos diria.

Os versos são prodígios escondidos

da minha fantasia.

Hão de ficar assim. Solenes. Mudos.

E por que não?


Quem alguma vez os leu

com o mesmo amor

com que os escrevi

 

e na mesma solidão…

Hilda Hilst, em Baladas

O Curioso Caso de Benjamin Button

 

V

Em 1880 Benjamin Button tinha vinte anos e assinalou o seu aniversário indo trabalhar para o pai na Roger Button & Co., Grossista de Ferragens. Nesse mesmo ano começou a “sair socialmente” — ou seja, o pai insistiu em levá-lo a vários bailes em voga. Roger Button tinha, então, cinquenta anos e ele e o filho faziam cada vez mais companhia um ao outro — na verdade, desde que Benjamin deixara de pintar o cabelo (que ainda estava grisalho) pareciam ter mais ou menos a mesma idade e poderiam passar por irmãos.

Uma noite, em Agosto, meteram-se na carruagem, ambos vestidos a rigor, e seguiram para um baile na casa de campo de Shevlin, que ficava logo à saída de Baltimore. Estava uma noite maravilhosa.

A lua cheia cobria a estrada com a cor baça da platina e flores de colheita tardia exalavam para o ar parado aromas semelhantes a risadas baixas, que mal se ouviam. O campo aberto, atapetado dezenas de metros em redor por trigo luminoso, estava tão transluzente como durante o dia. Era quase impossível não ser afetado pela pura beleza do céu — quase. — Há um grande futuro no negócio dos tecidos — dizia Roger Button. Não era um homem espiritual e o seu sentido de estética não ia além do rudimentar.

Tipos velhos como eu não aprendem novos truques — observou, em tom profundo. — São vocês, jovens com energia e vitalidade, que têm um grande futuro pela frente.

Muito acima, na estrada, as luzes da casa de campo dos Shevlin surgiram à vista e, pouco depois, ouviu-se um ruído suspirante que dir-se-ia rastejar persistentemente direito a eles — poderia ter sido o belo lamento de violinos ou o roçar do trigo prateado debaixo da Lua.

Pararam atrás de um belo carro puxado por um cavalo e cujos passageiros estavam apeando à porta. Saiu uma senhora, depois um cavalheiro idoso e depois uma jovem senhora bela como o pecado. Benjamin estremeceu.

Uma mudança quase química pareceu dissolver e recompor os próprios elementos do seu corpo. Percorreu-o um calafrio, subiu-lhe o sangue às faces e à testa e sentiu um latejar constante nos ouvidos. Era o primeiro amor.

A jovem era esbelta e frágil, com cabelo cor de cinza ao luar e cor de mel sob os crepitantes candeeiros a gás do alpendre. Cobria-lhe os ombros uma mantilha espanhola de um suavíssimo amarelo salpicado de borboletas pretas, e os seus pés eram botões cintilantes na fímbria do vestido com anquinhas. — Aquela — disse Roger Button, inclinando-se para o filho — é Hildegarde Moncrief, filha do general Moncrief.

Benjamin acenou friamente com a cabeça.

Bonita criaturinha — comentou, com indiferença. Mas, quando o criado negro se afastou com a carruagem, acrescentou: — Podia apresentar-me, pai.

Aproximaram-se de um grupo do qual Miss Moncrief era o centro. Educada segundo a antiga tradição, fez uma mesura acentuada. Sim, concedia-lhe uma dança. Ele agradeceu e afastou-se — estonteado. O compasso de espera, até que chegasse a sua vez, prolongou-se interminavelmente.

Benjamin manteve-se junto da parede, silencioso e impenetrável, observando com olhos mortíferos os jovens de Baltimore que se moviam ao redor de Hildegarde Moncrief e cujos rostos revelavam uma admiração apaixonada. Como lhe pareciam detestáveis e insuportavelmente rosados! As su-as costeletas castanhas encaracoladas despertavam nele um sentimento equivalente a indigestão.

Mas quando chegou a sua vez e deslizou com ela pelo chão mutável ao ritmo da música da mais recente valsa parisiense, os seus ciúmes e ansiedades dissolveram-se e escorreram dele como um manto de neve. Cego pelo arrebatamento, sentiu que a vida estava apenas começando.

O senhor e o seu irmão chegaram aqui ao mesmo tempo que nós, não chegaram? — perguntou Hildegarde, olhando-o com olhos que pareciam brilhante esmalte azul.

Benjamin hesitou. Se ela o tomava pelo irmão do seu pai seria adequado esclarecê-la? Recordou-se da sua experiência em Yale e decidiu não fazê-lo. Seria indelicado contradizer uma dama; seria criminoso macular aquela requintada ocasião com a história grotesca de sua origem. Mais tarde, talvez. Por isso, acenou com a cabeça, sorriu, escutou e sentiu-se feliz.

Gosto de homens da sua idade — disse-lhe Hildegarde. — Os rapazes novos são tão patetas! Dizem-me quanto champanhe beberam na faculdade e quanto dinheiro perderam em jogos de cartas. Os homens da sua idade sabem apreciar as mulheres.

Benjamin sentiu-se à beira de uma declaração, mas, com um esforço, sufocou o impulso.

Tem, precisamente, a idade romântica — continuou ela —, cinquenta anos. Os vinte e cinco são experientes demais; os trinta têm tendência para a palidez devido ao excesso de trabalho; quarenta é a idade das longas histórias que demoram um charuto inteiro a serem contadas; os sessenta são... oh, os sessenta estão perto demais dos setenta, mas os cinquenta são a idade madura. Adoro os cinquenta.

Cinquenta anos pareceram a Benjamin uma idade gloriosa. Ansiou apaixonadamente por ter cinquenta anos.

Eu sempre disse — continuou Hildegarde — que preferiria casar com um homem de cinquenta anos que cuidasse de mim a casar com um homem de trinta e ter que cuidar dele.

O resto da noite pareceu a Benjamin banhado por uma bruma cor de mel. Hildegarde concedeu-lhe mais duas danças e descobriram que estavam maravilhosamente de acordo em todas as questões atuais. Ela iria passear de carro com ele no domingo seguinte e, então, aprofundariam essas questões.

De regresso para casa na carruagem, pouco antes do romper da alvorada, quando as primeiras abelhas zumbiam e a desfalecente Lua bruxuleava no orvalho fresco, Benjamin teve a vaga noção de que o seu pai estava falando de ferragens por atacado. —

E o que pensa que deveria merecer a nossa maior atenção, depois dos martelos e dos pregos? — perguntava o Button sênior.

O amor — respondeu Benjamin, distraidamente.

Tambores? — admirou-se Roger Button.

Mas eu já resolvi a questão dos tambores.

Benjamin fitou-o com olhos pasmos no preciso momento em que uma réstia de luz se abria subitamente no céu, do lado oriental, e um papa-figos piava agudamente nas árvores trêmulas.

F. Scott Fritzgerald, em O Curioso Caso de Benjamin Button

sábado, 22 de março de 2025

O impagável Quino

 

O recurso

Sempre que o Poeta vai falar, Nosso Senhor desliga o telefone. Alô? Impossível comunicação direta.

E bum catibum e bum bumbum

E toca o pandeiro mulata meu bem

E bum catibum…

Oh! não há nada como a irresistível marchinha do nosso bloco invicto e soberano, para entulhar este horrível silêncio!

Mário Quintana, em Sapato Florido

Totonha

Capim sabe Ler? Escrever? Já viu cachorro Letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?

O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-Linguiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais uma bosta do que eu. A química.

Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?

Morrer já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?

No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e a minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber Ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a minha cabeça para escrever.

Ah, não vou.

Marcelino Freire, em Contos Negreiros

O pontilhismo de Jacquette

  Lincolnville Beach (1920), de Yvonne Jacquette

RBTD

Há ocasiões em que não consegues nada, nem um sorriso, outras em que consegues tudo, até cartas de recomendação. Não te queixes, nem te gabes. Era que os anjos estavam brincando de rapa-bo­ta-tira-deixa…

E a tua história quotidiana é tecida ao acaso dos lances.

Até que sobrevenha o R do rapa-tudo.

(Aí então os anjos te recolherão.)

Mário Quintana, em Sapato Florido

Campo de sucatas

saudade do futuro que não houve

aquele que ia ser nobre e pobre

como é que tudo aquilo pôde

virar esse presente poder

e esse desespero em lata?

pôde sim pôde como pode

tudo aquilo que a gente sempre deixou poder

tanta surpresa pressentida

morrer presa na garganta ferida

raciocínio que acabou em reza

festa que hoje a gente enterra

pode sim pode sempre como toda coisa nossa

que a gente apenas deixa poder que possa.

Paulo Leminski, em Toda Poesia

Seu Pereira e Coletivo 401 / Otário

Recado de Primavera

Meu caro Vinicius de Moraes:

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera — acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris.

O sinal mais humilde da chegada da Primavera vi aqui junto de minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um pássaro-preto, desses que chamam de chopim. Não trazia nada no bico; vinha apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus ovos.

Isto é uma história tão antiga que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império. Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta.

Acontecendo como a Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaléias e manacás em flor; e em cada mocinha loira, uma esperança de Vera Fischer. Agora vou ao Maranhão, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta.

Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.

Adeus.

Setembro, 1980

Rubem Braga, em Recado de primavera

sexta-feira, 21 de março de 2025

Dominação

Bicudinho, de Caco Galhardo

Meu coração desnudo – I

Meu coração desnudo

1.

Da evaporação e da centralização do Eu. Nisso está tudo. De um certo deleite sensual na companhia dos extravagantes.

(Posso começar Meu coração desnudo não importa onde, não importa como, e dar­-lhe continuidade dia a dia, segundo a inspiração do dia e da circunstância, desde que seja viva a inspiração.)

2.

O primeiro a chegar, desde que consiga ser divertido, tem o direito de falar de si.

Meu coração desnudo

3.

Compreendo que se abandone uma causa para saber o que se experimentará ao servir a outra.

Talvez fosse agradável ser alternadamente vítima e carrasco.

Charles Baudelaire, em Prosa – Diários

Capítulo X. Graciosas práticas entre D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança

  

 

Já então se havia levantado Sancho Pança, algum tanto maltratado pelos moços dos frades, e tinha assistido atento à batalha de seu amo D. Quixote, rogando no coração a Deus fosse servido de lhe dar vitória, e com ela o ganho de alguma ilha, e que o fizesse governador, segundo o prometido.

Vendo pois concluída já a pendência, e que seu amo tornava a encavalgar-se no Rocinante, chegou-se a pegar-lhe no estribo, e, antes que ele subisse, se pôs de joelhos diante dele, pegou-lhe na mão, beijou-a, e disse-lhe:

Seja Vossa Mercê servido, meu senhor D. Quixote da minha alma, de me dar o governo da ilha que nesta rigorosa pendência ganhou, que, por grande que ela seja, sinto-me com forças de a saber governar, tal e tão bem como qualquer que tenha governado ilhas neste mundo.

Adverti, Sancho amigo — respondeu D. Quixote — que esta aventura, e outras semelhantes a esta, não são aventuras de ilhas, senão só encruzilhadas, em que se não ganha outra coisa senão cabeça quebrada, ou orelha de menos. Tende paciência; não vos hão-de faltar aventuras, em que não somente eu vos possa fazer governador, mas alguma coisa mais.

Agradeceu-lhe muito Sancho; e, beijando-lhe outra vez a mão e a orla da cota de armas, o ajudou a subir para o Rocinante. Escarranchou-se no seu asno, e começou a apajear o fidalgo, que, a passo largo, sem se despedir das do coche, nem lhes dizer mais nada, se meteu por um bosque perto dali.

Seguia-o Sancho a todo o trote do burro; mas tão levado na carreira ia Rocinante, que, vendo-se ir ficando para trás, não teve remédio senão gritar ao amo que esperasse por ele. Assim o fez D. Quixote, colhendo as rédeas a Rocinante, até que se acercasse o seu cansado escudeiro que, apenas chegou, lhe disse:

Parece-me, senhor, que seria acertado refugiarmo-nos em alguma igreja, porque, à vista do estado em que pusestes aquele inimigo, não admirará que, chegando a coisa ao conhecimento da Santa Irmandade, nos mandem prender; e à fé que se o fazem, não sairemos da cadeia sem primeiro nos suar o topete.

Cala-te aí — respondeu D. Quixote — onde viste ou leste jamais que algum cavaleiro andante fosse posto em juízo, por mais homicídios que fizesse?

De homicídios nada entendo — respondeu Sancho — nem me intrometi em nenhum em dias de vida; o que sei é que a Santa Irmandade tem lá suas contas que ajustar com os que pelejam em campo; no mais não me meto.

Não tenhas cuidado, amigo — respondeu D. Quixote; — das mãos dos Caldeus te livraria eu, quanto mais da Irmandade. Mas dize-me, por vida tua: viste nunca mais valoroso cavaleiro que eu em todo o mundo descoberto? lê-se em histórias algum que tenha ou haja tido mais brio em acometer, mais alento no perseverar, mais destreza no ferir, nem mais arte em dar com o inimigo em terra?

Valha a verdade — respondeu Sancho — eu nunca li histórias, porque não sei ler nem escrever; mas o que me atrevo a apostar é, que mais atrevido amo do que é Vossa Mercê, nunca o eu servi em dias de minha vida; e queira Deus que estes atrevimentos se não venham a pagar onde já disse. O que a Vossa Mercê peço é que se cure dessa orelha, que se lhe vai esvaindo em sangue; eu aqui trago nos alforjes fios, e um pouco de unguento branco.

Bem escusado fora tudo isso — respondeu D. Quixote — se eu me tivesse lembrado de preparar uma redoma de bálsamo de Ferrabrás, que uma só gota dele nos pouparia mais tempo e curativos.

Que redoma e que bálsamo vem a ser esse? — disse Sancho Pança.

É um bálsamo — respondeu D. Quixote — de que eu tenho a receita na memória, com o qual ninguém pode ter medo da morte, nem se morre de ferida alguma; e assim, quando eu o tiver feito e to entregar, não tens mais nada que fazer: em vendo que nalguma batalha me partem por meio corpo, como muitas vezes acontece, a parte do corpo que tiver caído no chão tomá-la-ás com muito jeito e com muita sutileza, e, antes que o sangue se gele, a porás sobre a outra metade que tiver ficado na sela, por modo que acerte bem à justa; e dar-me-ás a beber basta dois tragos do dito bálsamo, e ver-me-ás ficar mais são que um perro.

Sendo isso verdadeiro — disse Pança — já daqui dispenso o governo da prometida ilha, e nada mais quero em paga dos meus muitos e bons serviços, senão que Sua Mercê me dê a receita dessa milagrosa bebida, que tenho para mim se poderá vender a olhos fechados cada onça dela por mais de quatro vinténs. Não preciso mais para passar o resto da vida honradamente e com todo o descanso. O que falta saber é se não será muito custoso arranjá-la.

Com menos de três reales se pode fazer canada e meia — respondeu D. Quixote.

Valha-me Deus! — replicou Sancho — por que tarda Vossa Mercê em fazer isso, e em ensinar-me a receita?

Cala-te, amigo — respondeu o cavaleiro — que maiores segredos tenciono eu ensinar-te, e fazer-te mercês ainda maiores; e por agora curemo-nos, porque a orelha me está doendo mais do que eu quisera.

Tirou Sancho dos alforjes os fios e o unguento; mas, quando D. Quixote reparou no estrago da celada, pensou endoidecer; e, posta a mão na espada, e levantando os olhos ao céu, disse:

Faço juramento ao Criador de todas as coisas, e aos quatro Santos Evangelhos, onde mais por extenso eles estejam escritos, de fazer a vida que fez o grande Marquês de Mântua, quando jurou de vingar a morte de seu sobrinho Baldovinos, que foi de não comer pão em toalha, nem com sua mulher folgar, e outras coisas, que, ainda que me não lembram, as dou aqui por expressadas, enquanto não tomar inteira vingança de quem tal descortesia me fez.

Ouvindo aquilo Sancho, lhe respondeu:

Advirta Vossa Mercê, senhor D. Quixote, que, se o cavaleiro cumpriu o que lhe foi ordenado, de ir-se apresentar à minha senhora Dulcinéia del Toboso, já terá cumprido com o que devia, e não merece mais castigo, se não cometer novo delito.

Falaste e recordaste mui bem — respondeu D. Quixote — e portanto anulo o juramento na parte que toca a tomar dele nova vingança; mas reitero e confirmo o voto de levar a vida que já disse, até que tire a algum cavaleiro outra celada tal e tão boa como esta era; e não cuides tu, Sancho, que faço isto assim a lume de palhas, pois não me faltam bons exemplos a quem imite neste particular, que outro tanto ao pé da letra se passou sobre o elmo de Mambrino, que tão caro custou a Sacripante.

Dê Vossa Mercê ao diabo tais juramentos, senhor meu — replicou Sancho — que redundam em grave dano para a saúde, e prejuízo para a consciência. Quando não, que me diga: se por acaso em muitos dias não encontrarmos homem armado com celada, que havemos de fazer? há-se de cumprir o juramento a despeito de tantas desconveniências e incomodidades, como são o dormir vestido e sempre fora de povoado, e outras mil penitências, como continha o voto daquele doido velho Marquês de Mântua, a quem Vossa Mercê agora pretende imitar? Olhe Vossa Mercê bem, que por todos estes caminhos não andam homens armados, senão só arrieiros e carreiros, que não só não trazem celadas, mas talvez nunca em dias de vida ouvissem falar delas.

Enganas-te nisso — disse D. Quixote; — nem duas horas se nos hão-de passar por estas encruzilhadas, sem vermos mais homens armados, que os que foram sobre Albraca para a conquista de Angélica, a formosa.

Basta, seja assim — disse Sancho — e a Deus praza que nos suceda bem, e que chegue já o tempo de se ganhar essa ilha que tão cara me custa, e embora eu morra logo.

Já te disse, Sancho, que te não dê isso cuidado algum; quando falte ilha, aí estão o reino de Dinamarca ou o de Sobradisa. que te servirão como anel em dedo; e mais deves tu folgar com estes, por serem em terra firme. Mas deixemos isto para quando for tempo; e vê se trazes aí nos alforjes coisa que se coma, para irmos logo em busca de algum castelo, em que nos alojemos esta noite, e onde faça o bálsamo que te disse, porque te juro que a orelha me vai já doendo, que não posso parar.

O que nos alforjes trago — respondeu Sancho — é uma cebola, um pedaço de queijo, e não sei quantos motrecos de pão; mas isto não são manjares próprios para tão valente cavaleiro como é Vossa Mercê.

Como pensas mal! — respondeu D. Quixote. — Faço-te saber, Sancho, que é timbre dos cavaleiros andantes não comerem um mês a fio, ou comerem só do que se acha mais à mão; o que tu já saberias, se tiveras lido tantas histórias como eu; li muitíssimas, e em nenhuma achei terem cavaleiros andantes comido nem migalha, salvo por casualidade, ou em alguns suntuosos banquetes que lhes davam; e os mais dias os passavam com o cheiro das flores. E posto se deva entender que não podiam passar sem comer, e satisfazer a outras necessidades corporais, porque realmente eram gente como nós somos, deve-se entender também que, andando o mais de sua vida pelas florestas e despovoados, e sem cozinheiro, a sua comida mais usual seriam alimentos rústicos, tais como esses que aí me trazes. Portanto, amigo Sancho, não te mortifiques com o que a mim me dá gosto, nem queiras fazer mundo novo, nem tirar a cavalaria andante dos seus eixos.

Desculpe-me Vossa Mercê — lhe disse Sancho — como eu não sei ler nem escrever, segundo já lhe disse, não sei nem ando visto nas regras da profissão cavaleiresca; e daqui em diante eu proverei os alforjes de toda a casta de frutas secas, para Vossa Mercê, que é cavaleiro; e para mim, que o não sou, petrechá-los-ei de outras coisas que voam, e de mais substâncias.

Eu não te digo, Sancho — replicou D. Quixote — que seja forçoso aos cavaleiros andantes não comer outra coisa senão essas frutas secas que dizes; afirmo só que o seu passadio mais ordinário devia ser delas, e de algumas ervas que achavam pelo campo, que eles conheciam, e que eu também conheço.

Bom é — respondeu Sancho — conhecer essas ervas, que, segundo eu vou examinando, algum dia será necessário usar desse conhecimento.

Nisto, desenfardelando o que tinha dito que trazia, comeram ambos juntos em boa paz.

Desejosos de buscar onde pernoitassem, acabaram à pressa a sua pobre e seca refeição, montaram imediatamente a cavalo, e se deram pressa para chegar a povoado antes de anoitecer; mas junto a umas choças de cabreiros pôs-se-lhes o sol, e perderam a esperança de realizar o seu desejo; pelo que determinaram passar ali a noite.

A Sancho pesou-lhe ter de dormir fora de povoação; mas para o amo foi regalo o ter de levar aquelas horas ao ar livre, por lhe parecer que, sempre que assim lhe sucedia, fazia um ato possessivo, que facilitava a prova da sua cavalaria.

Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha

Diário de Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

10.

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o rosto muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego