segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Filosofia não é truque

A filosofia não é um truque para atrair o público; não foi concebida para exibição. É uma questão, não de palavras, mas de fatos. Não é exercida para que o dia possa ter alguma diversão antes de acabar, ou para que nosso ócio possa ser aliviado de um tédio que nos aborrece. A filosofia molda e constrói a alma; ordena a nossa vida, orienta a nossa conduta, mostra-nos o que devemos fazer e o que devemos deixar por fazer; ela se senta ao leme e dirige nosso curso enquanto vacilamos em meio às incertezas.

Sêneca, em Epístolas sobre a Virtude

Rápidos e vão embora

Dizem nada como um dia após
o outro

como se o dia seguinte viesse
inevitável um remédio

um diamante mas há dias em que
o dia após o outro não é nada

mais que um dia idêntico
ao de ontem

um dado
com todos os lados o mesmo relógio

magro desses que nos devoram
rápidos e vão embora o diabo o dá

o diabo o leva
o dia seguinte

pode ser só a res-
saca ou aquele em que desaba

a catástrofe um dia após o outro dizem
como se nos ensinassem a nadar:

os braços assim, à frente, o outro
agora o outro, isso,

e lá vamos nós adiante braçadas
contra o calendário

até que – às vezes é assim
morremos hoje – um após

o outro virão dias
e dias sem nós

sem que nunca venha
o dia do juízo.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental

Foi Só Porque Você Não Quis | Alaíde Costa

O “verdadeiro” romance

Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo.
Ir me obedecendo — é na verdade o que faço quando escrevo, e agora mesmo está sendo assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. Às vezes ir me seguindo é tão difícil — por estar seguindo em mim o que ainda não passa de uma nebulosa — que termino desistindo.
E os romances que escrevo que não passam do título? Porque seria muito difícil escrevê-los ou porque, já tendo uma ideia precisa do desenrolar-se da história, perco a curiosidade de escrevê-la. Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá. Agora mesmo, neste próprio instante, ou melhor, há alguns instantes em que interrompi para atender ao telefone, nasceu-me um título do que seria um conto ou um romance: O montanhês. O título é sem graça, bem sei. E sei o que seria: não se trataria de um homem das montanhas, mas da subida gradual de um homem através da vida até chegar a um cume simbólico, ou não simbólico de uma montanha, de onde ele veria o seu passado e também o que lhe restava ainda a subir, isto é, um pouco mais de futuro.
E o que ele via não era bonito, nem bom, nem ruim, nem feio, era o que fatalmente a vida fizera dele e sobretudo o que fatalmente ele fizera da vida. E aí vem o problema: até que ponto fora fatal o que ele fizera na vida e esta dele? Até que ponto houvera escolha? Estou me confundindo toda com esta história que jamais escreverei.
E eu, que já viajei bastante e não quero mais viajar, como é que nunca me ocorreu nem ocorrerá jamais escrever um livro de viagens? Com perdão da palavra, sou um mistério para mim. E, ainda fazendo parte deste mistério, por que leio tão pouco? O que era de se esperar é que eu tivesse verdadeira fome de leituras. Também para ver o que os outros fazem. No entanto só consigo ler coisas que, se possível, caminhem direto ao que querem dizer. Não, positivamente, não me entendo. Bem, mas o fato é que mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando — e também para o quê, não sei. De um modo geral, para mais amor por tudo. É vago “mais amor por tudo”? Inclusive mais amor inclui uma alerteza maior para achar bonito o que nem mesmo bonito é. E, embora a palavra humano me arrepie um pouco, de tão carregada de sentidos variados e vazios essa palavra foi ficando, sinto que me encaminho para o mais humano. Ao mesmo tempo as coisas do mundo — os objetos — estão se tornando cada vez mais importantes para mim. Vejo os objetos sem quase me misturar com eles, vendo-os por eles mesmos. Então às vezes se tornam fantásticos e livres, como se fossem coisa nascida e não feita por pessoas. Se eu for me encaminhando para o mais humano não quer dizer que eu precise perder essa qualidade que tenho às vezes de enxergar a coisa pela coisa. Porque — e aí vou eu entrando com sofisma só para me defender — se sendo gente eu consigo ir, por que haveria de perder essa capacidade ao me tornar mais gente? Ah, Deus, sinto que é puro sofisma. Aliás o sofisma como forma de raciocínio sempre me atraiu um pouco, passou a ser um de meus defeitos. Explicável porque sempre tive que me defender muito, e com sofismas se consegue. Talvez, quem sabe, eu que agora me defendo menos, largue pelo caminho o raciocínio-sofisma. Talvez eu não precise mais ganhar para me defender. O sofisma faz ganhar muito em discussões — há anos que não discuto — e em explicação para si mesma das próprias ações inexplicáveis etc. De agora em diante eu gostaria de me defender assim: é porque eu quero. E que isso bastasse.
Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver com o que escrevi. Paciência.

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

Praticidade

Bicudinho, de Caco Galhardo

O chamado Brasil brasileiro

Comecemos por opiniões antigas, como esta de uma carta de Capistrano de Abreu a João d'Azevedo: O jaburu... a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste...
Paulo Prado abre seu livro Retrato do Brasil com esta afirmação: Numa terra radiosa vive um povo triste.
Tão triste que em 1925, em Petrópolis, Manuel Bandeira, que tinha “todos os motivos menos um de ser triste”, resolveu “tomar alegria”.
Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. Ninguém se lembra de política... Nem dos oito mil quilômetros de costa... O algodão do Seridó é o melhor do mundo?...
Que me importa?
Não há malária nem moléstia-de-chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria!
E Sérgio Buarque de Holanda, na primeira página de suas Raízes do Brasil: ... Somos ainda hoje desterrados em nossa terra.
O consolo é lembrar aquela coisa de Euclides da Cunha em Os Sertões: O sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Enchemos o peito de orgulho. Mas Euclides prossegue dizendo: Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
Viram? Para falar bem do homem do sertão ele desmerece o homem da praia. Mas o próprio sertanejo, embora possa se transformar em "um titã acobreado e potente", não é figura muito boa: ... É desgracioso, desengonçado, torto... reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos...
E mais adiante Euclides proclama: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma...
Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.
Este dilema me faz lembrar um outro que me assustava quando eu era menino. Não sei se era frase de homem célebre ou propaganda de algum formicida: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil.
Isto me dava aflição; eu me perguntava por que é que nós todos não íamos urgentemente matar saúvas.
Não matamos. Não morremos. Convivemos. Oswald de Andrade exclama, no seu “Manifesto Antropofágico”, de 1928: Tupi or not tupi that is the question.
E é outro paulista Andrade, Mário, que faz uma comovente confissão brasileira.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu...
Essa fundamental solidariedade me impressionou quando uma lavadeira que eu tinha aqui no Rio, Sebastiana, me disse que não tinha podido dormir aquela noite: uma chuva com vento invadira o seu barraco no morro do Cantagalo. Seu menino amanhecera doente, e ela também sentia uma dor no peito.
Mas enfim”, disse, “isso é bom para a lavoura.”
A velha Sebastiana viera de Carangola e não tinha mais lavoura nenhuma; e até a casinha que ela fizera lá em Minas, “perto do comércio”, fora registrada em nome do seu marido, que não era seu marido porque era casado com outra. E ela descia os caminhos perigosos, escorregadios, do morro, com a trouxa de roupa na cabeça, e me dizia: “É bom para a lavoura.”
É uma maneira de dizer na roça. Pode ser maneira de pensar. O Brasil é, principalmente, uma certa maneira de sentir.

Rubem Braga, em Recado de primavera

sábado, 18 de janeiro de 2025

Oscar Niemeyer



Poucos depoimentos eu tenho lido mais emocionantes que o artigo-reportagem de Oscar Niemeyer sobre sua experiência em Brasília. Para quem conhece apenas o arquiteto, o artigo poderá passar por uma defesa em causa própria – o revide normal de um pai que sai de sua mansidão costumeira para ir brigar por um filho em quem querem bater. Mas para quem conhece o homem, o artigo assume proporções dramáticas. Pois Oscar é não só o avesso do causídico, como um dos seres mais antiautopromocionais que já conheci em minha vida.
Sua modéstia não é, como de comum, uma forma infame de vaidade. Ela não tem nada a ver com o conhecimento realista – que Oscar tem de seu valor profissional e de suas possibilidades. É a modéstia dos criadores verdadeiramente integrados com a vida, dos que sabem que não há tempo a perder, é preciso construir a beleza e a felicidade no mundo, por isso mesmo que no indivíduo é tudo tão frágil e precário. Esse pungente sentimento do frágil e precário das coisas, que toca em Oscar as notas mais altas da pauta, como que serve para realçar ainda mais a sua dignidade de homem e de artista; pois nunca há nele o sentimento de estar servindo a si próprio, ou mesmo aos seus, mas aos homens em geral, num futuro que ele espera melhor.
Oscar não acredita em Papai do Céu, nem que estará um dia construindo basílicas angélicas nas verdes pastagens do Paraíso. Põe ele, como um verdadeiro homem, a felicidade do seu semelhante no aproveitamento das verdes pastagens da Terra; no exemplo do Trabalho para o bem-comum e na criação de condições urbanas e rurais, em estreita interdecorrência, que estimulem e desenvolvam este nobre fim: fazer o homem feliz dentro do curto prazo que lhe foi dado para viver.
Eu acredito também nisso, e quando vejo aquilo em que creio refletido num depoimento como o de Oscar Niemeyer, velho e querido amigo, como não me emocionar? É bom ver-se entre os amigos, um cujos pontos de vista coincidem com os nossos; um a quem os anos, em vez de esclerosar ou enclausurar politicamente, pelo contrário remoçam, renovam, revigoram; um cuja visão prática do mundo e dos homens não despreza nunca a dimensão da poesia. Pois a verdade é que a maioria, quando fala de política, quase só abre a boca para dizer bobagem, e se defende cada vez mais dos árduos problemas da responsabilidade humana com a armadura do reacionarismo mais egoísta.
E o pior é que nem por isso a gente pode deixar de gostar deles...
Dizia o grande Ésquilo que “tudo o que existe é justo e injusto, e nos dois casos igualmente justificável”. Dialeticamente, perfeito, se se analisar a frase do ponto de vista da história, da extraordinária luta do homem para chegar aonde chegou. Mas, humanamente, vamos mais devagar... Hitler, que é historicamente justificável, não deixa por isso de ser um monstro hediondo.
Fulgêncio Batista, que é historicamente um Judas das nas mãos dos Supremos Sacerdotes e dos Filisteus do açúcar, nem por isso deixa de ser um infame traidor de sua pátria e um dos mais nojentos réprobos dentro da comunidade latinoamericana.
Por isso, meu caro Oscar, não ligue demais aos seus detratores. A maioria deles são pintas ultramanjadas. Há, como você muito bem diz, aqueles “a quem falta uma concepção mais realista da vida, que os situe dentro da fragilidade das coisas, tornando-os mais simples, humanos e desprendidos”. E a esses, como você muito bem faz, cabe “compreendê-los sem ressentimentos”. Mas há também, e infelizmente, os velhacos, os, trapaceiros, os provocadores, os policiais. Com esses, é preciso ter mais cuidado. Pois eles estão aí, e partidos para a ignorância.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

The Beauty Of David Lynch

Pedra de pedra

pedra de pedra de pedra
o que a faz tão concreta
senão a falta de regra
de sua forma assimétrica
incapaz de linha reta?

talvez a sua dureza
que mão alguma atravessa
tateia mas não penetra
o amálgama dos átomos
no íntimo da molécula?

será por estar parada
com sua presença discreta
sobre o chão mimetizada
obstáculo na pressa
onde o cego pé tropeça?

pedra de pedra de pedra
impenetrabilidade
íntegra ilesa completa
igual na luz ou na treva
do Cáucaso ou da Sibéria.
o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?

casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
repleta apenas de pedra?

de pedra pedra de pedra
pousada em cima da terra
alheia à atmosfera
que a faz repousar pesada
no berço de sua inércia.

com sua massa compacta
onde planta não prospera
e nem bactéria medra
sobre a crosta que o sol cresta
até o seu nome empedra.
penha de penha de penha
fraga rocha roca brenha
por que se faz tão concreta?
por sua idade avançada
ou por rolar pela estrada?

talvez por estar inteira
entre uma e outra beira
de sua forma coesa
que se transforma em areia
quando o tempo a desintegra?

ou só porque não anseia
ser outra coisa e não esta?
nem pessoa nem floresta
nem mesmo a mera matéria
que a ideia não alcança?

Arnaldo Antunes, em Agora aqui ninguém precisa de si

A mulher selvagem e a pedante


Minha cara, você na verdade me cansa sem medida e sem piedade; dir-se-ia, ao ouvi-la suspirar, que você sofre mais do que as respigadoras sexagenárias e do que as velhas mendigas que recolhem restos de pão na porta das tabernas.
Se ao menos os seus suspiros exprimissem remorso, teriam algo de honroso; mas só traduzem a saciedade do bem-estar e a sobrecarga do repouso. E, depois, você não para de se alastrar em palavras inúteis: ‘Amem-me bem! tenho tanta necessidade disso! Consolem-me aqui, acariciem-me ali!’. Veja, vou tentar curá-la; encontraremos talvez o método para tal, por uma ninharia, no meio de uma festa, e sem ir muito longe.
Consideremos bem, eu lhe peço, esta sólida jaula de ferro por trás da qual se agita, urrando como um condenado, sacudindo as barras como um orangotango exasperado pelo exílio, imitando, à perfeição, ora os saltos circulares do tigre, ora os bamboleios estúpidos do urso-branco, esse monstro peludo cuja forma imita bastante vagamente a sua.
Esse monstro é um desses animais que em geral são chamados de ‘meu anjo!’, ou seja, uma mulher. O outro monstro, o que grita a toda, com um bastão na mão, é um marido. Acorrentou sua mulher legítima, como se fosse um animal, e a exibe pelos arrabaldes, nos dias de feira, com permissão dos magistrados, nem é preciso dizer.
Preste bem atenção! Veja com que voracidade (não simulada talvez!) ela lacera coelhos vivos e aves a piar que seu condutor lhe joga. ‘Vamos’, diz ele, ‘não é preciso comer num só dia tudo o que se tem’, e com esse sábio comentário ele lhe arranca cruelmente a presa, cujas tripas esvaziadas ficam por um instante agarradas nos dentes do animal feroz, da mulher, quero dizer.
Vamos! Uma boa bordoada para acalmá-la! pois os terríveis olhos de avidez dardejam em direção ao alimento retirado. Meu Deus! o bastão não é um bastão de comédia, você ouviu ressoar a carne dela, apesar do pelame postiço? Também os olhos agora lhe saem da cabeça, ela urra mais naturalmente. Em sua fúria, ela faísca por inteiro, como o ferro quando é batido.
Esses são os costumes conjugais desses dois descendentes de Eva e Adão, essas obras de vossas mãos, ó meu Deus! Essa mulher é incontestavelmente infeliz, embora talvez não lhe sejam desconhecidos, afinal, os titilantes prazeres da glória. Há desditas mais irremediáveis, e sem compensação. Todavia, no mundo em que foi jogada, nunca pôde acreditar que a mulher merecesse outro destino.
Agora, é conosco, querida pedante! Quando vemos os infernos de que o mundo está povoado, que quer você que eu pense de seu bonito inferno, você que só descansa sobre tecidos tão suaves quanto sua pele, que só come carne cozida e para quem um hábil empregado cuida de cortar os pedaços?
E que podem significar para mim todos esses pequenos suspiros que incham seu peito perfumado, minha robusta coquete? E todas essas afetações aprendidas nos livros, e essa incansável melancolia, destinada a inspirar ao espectador um sentimento muito diferente da piedade? Na verdade, às vezes tenho vontade de lhe ensinar o que é a verdadeira infelicidade.
Ao vê-la assim, minha bela delicada, os pés na lama e os olhos voltados vaporosamente para o céu, como que para lhe pedir um rei, dir-se-ia verossimilmente que se trataria de uma jovem rã a invocar o ideal. Se você despreza o tíbio (o que sou agora, como você sabe muito bem), preste atenção no grou que a mastigará, a devorará e a matará a seu bel-prazer!
Por mais poeta que eu seja, não sou tão tolo como você gostaria de me considerar, e se você me cansa, muito frequentemente, com suas lamúrias preciosas, eu a tratarei como mulher selvagem, ou a jogarei pela janela, como uma garrafa vazia.”

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

Estampa

Linda moça, com sua cara de louça, na moldura da janela. Passa, a cavalo, o oficial — reto, correto, linear —, como um valete de cartas. Enquanto, lento, anoitece, flores suspiram olores, no jardinzinho sincero. E lá no fim da rua a estrela Vésper, como se fora pirotécnica, irradia-se em trinta e sete cores.

Mário Quintana, em Sapato Florido

CAPÍTULO IV. Do que sucedeu ao nosso cavaleiro saindo da venda.



Queria já amanhecer, quando D. Quixote saiu da venda, tão contente e bizarro, e com tanto alvoroço por se ver armado cavaleiro, que a alegria lhe rebentava até pelas silhas do cavalo.
Mas, recordando-se do conselho do hospedeiro acerca das prevenções tão necessárias que devia levar consigo, especialmente no artigo dinheiro e camisas, determinou voltar a casa, para se prover de tudo aquilo, e de um escudeiro, deitando logo o sentido à pessoa de um lavrador seu vizinho, que era pobre e com filhos, mas de molde para o ofício de escudeiro de cavalaria.
Com este pensamento, dirigiu o Rocinante para a sua aldeia. O animal, como se adivinhara a vontade do dono, começou a caminhar com tamanha ânsia, que nem quase assentava os pés no chão.
Pouco tinham andado, quando ao cavaleiro se figurou que, à mão direita do caminho, e de dentro de um bosque, saíam umas vozes delicadas, como de pessoa que se lastimava; e, apenas as ouviu, disse:
Graças rendo ao céu pela mercê que me faz, pois tão depressa me põe diante ocasião de eu cumprir o que devo à minha profissão, e realizar os meus bons desejos. — Estas vozes solta-as (sem dúvida) algum ou alguma, que está carecendo do meu favor e ajuda.
E torcendo as rédeas, encaminhou o Rocinante para donde vinham os gritos.
Aos primeiros passos que deu no bosque, viu uma égua presa a uma azinheira, e atado a outra um rapazito nu da cinta para cima, é de seus quinze anos; era o que se lastimava, e não sem causa, porque o estava com uma correia açoitando um lavrador de estatura alentada, acompanhando cada açoite com uma repreensão e conselho, dizendo:
Boca fechada, e olho vivo!
Ao que o rapaz respondia:
Não tornarei mais, meu amo, pelas Chagas de Cristo, prometo não tornar! prometo daqui em diante tomar mais sentido no gado!
Vendo D. Quixote aquilo, exclamava furioso:
Descortês cavaleiro, mal parece haverdes-vos com quem vos não pode resistir; subi ao vosso cavalo, e tomai a vossa lança — (que arrumada à azinheira estava de feito uma); — eu vos farei conhecer que isso que estais praticando é de covarde.
O lavrador, que viu iminente aquela figura carregada de armas, brandindo-lhe a lança ao rosto, deu-se por morto, e com reverentes palavras lhe respondeu:
Senhor cavaleiro, este rapaz que estou castigando é meu criado; serve-me de guardar um bando de ovelhas, que trago por estes contornos; mas é tão descuidado, que de dia a dia me falta uma; e, por eu castigar o seu descuido ou velhacaria, diz que o faço por forreta, para lhe não pagar por inteiro a soldada; por Deus, e em minha consciência, que mente.
Mente na minha presença, vilão ruim?! — disse D. Quixote — Voto ao sol que nos alumia, que estou, vai não vai, para atravessar-vos com esta lança; pagai-lhe logo sem mais réplica; quando não, por Deus que nos governa, como neste próprio instante dou cabo de vós; desatai-o de repente.
O lavrador abaixou a cabeça, e sem dizer mais palavra desatou o ovelheiro.
Perguntou-lhe D. Quixote quanto seu amo lhe devia; respondeu ele que nove meses, à razão de sete reales cada mês.
Fez D. Quixote a conta, e viu que somava sessenta e três reales, e disse ao lavrador que lhos contasse logo logo, se não queria pagar com a vida.
Respondeu o camponês, aterrado em tão estreito lance, que já lhe havia jurado (e não tinha ainda jurado coisa alguma) que não eram tantos, porque havia para abater três pares de sapatos que lhe havia mercado, e mais um real de duas sangrias que lhe tinham dado estando enfermo.
Tudo isso está muito bem — respondeu D. Quixote; — mas os sapatos e as sangrias fiquem em desconto dos açoites que sem culpa lhe destes; porquanto, se ele rompeu o couro dos sapatos que vós pagastes, vós rompestes-lhe o do seu corpo; e se o barbeiro lhe tirou sangue, estando doente, também vós lho tirastes estando ele são; portanto nesse particular não há mais que ver, estamos com as contas justas.
Pior é, senhor cavaleiro, que não tenho aqui dinheiro comigo; acompanha-me tu a casa, André, que eu lá te pagarei de contado.
Eu ir com ele? — disse o rapaz outra vez — Mau pesar viesse por mim! não senhor; nem pensar em tal. Se se tornasse a ver comigo a sós, esfolava-me que nem um S. Bartolomeu.
Tal não fará — respondeu D. Quixote; — basta que eu mande, para ele me catar respeito. Jure-mo ele pela lei da cavalaria que recebeu, deixá-lo-ei ir livre, e dou-te o pagamento por seguro.
Veja Vossa Mercê, senhor, o que diz — replicou o rapazito; — que este meu amo não é cavaleiro, nem recebeu ordem nenhuma de cavalarias; é João Haldudo, o rico, vizinho de Quintanar.
Pouco importa isso, — obtemperou D. Quixote — que em Haldudos também pode haver cavaleiros; e demais, cada um é filho das suas obras.
Isso é verdade — acudiu André; — mas este meu amo, de que obras há-de ser filho, pois me nega a paga do meu suor e trabalhos?
Não nego tal, meu rico André — respondeu o lavrador; — dá-me o gosto de vir comigo, que eu juro por quantas castas de cavalarias haja no mundo, de pagar, como tenho dito, até à última, e em moedinha defumada.
Dos defumados vos dispenso eu — disse D. Quixote; — dai-lhe os reales, sejam como forem, e sou contente; e olhai lá se o cumpris, segundo jurastes; quando não, pelo mesmo juramento vos rejuro eu que voltarei a buscar-vos e castigar-vos, e que de força vos hei-de achar, ainda que vos escondais mais fundo que uma lagartixa; e se quereis saber quem isto vos intima, para ficardes mais deveras obrigado a cumprir, sabei que sou o valoroso D. Quixote de la Mancha, o desfazedor de agravos e sem-razões. Ficai-vos com Deus, e não esqueçais o prometido e jurado, sob pena do que já vos disse.
Com o que, meteu esporas ao Rocinante, e em breve espaço se apartou deles.
Seguiu-o com os olhos o lavrador, e, quando o viu já fora do bosque, e do alcance, voltou-se para o seu criado André, e lhe disse:
Vinde cá, meu filho, que vos quero pagar o que vos devo, como aquele desfazedor de agravos me ordenou.
Juro — respondeu André — que muito bem fará Vossa Mercê em cumprir o mandamento daquele bom cavaleiro, que mil anos viva, que, segundo é valoroso e bom juiz, assim Deus me dê saúde, como se me não paga, voltará, e há-de executar o que disse.
Também eu o juro — disse o lavrador; — mas, pelo muito que te quero, vou primeiramente acrescentar a dívida, para ficar sendo maior a paga.
E travando-lhe do braço, o tornou a atar na azinheira, onde lhe deu tantos açoites, que o deixou por morto.
Chamai agora, senhor André, pelo desfazedor de agravos — dizia o lavrador; — e vereis como não desfaz este, ainda que, segundo entendo, por enquanto ainda ele não está acabado de fazer, porque me estão vindo ondas de te esfolar vivo, como tu receavas.
Mas afinal desatou-o, e lhe deu licença para ir buscar o seu juiz, que lhe executasse a sentença que dera.
Partiu André algum tanto trombudo; prometendo que se ia à busca do valoroso D. Quixote de la Mancha, para lhe contar ponto por ponto o que era passado, e dizendo que o amo desta vez lhe havia de pagar sete por um.
Assim mesmo porém foi-se a chorar, e o amo se ficou a rir.
Ora aqui está como desfez aquele agravo o valoroso D. Quixote, o qual, contentíssimo do sucedido, por lhe parecer que dera alto e felicíssimo começo às suas cavalarias, ia todo cheio de si, caminhando para a sua aldeia e dizendo a meia voz:
Bem te podes aclamar ditosa sobre quantas hoje existem na terra, ó das belas belíssima Dulcinéia del Toboso, pois te coube em sorte haveres sujeito e rendido ao teu querer tão valente e nomeado cavaleiro, qual é e será D. Quixote de la Mancha, o qual, segundo sabe todo o mundo, ontem recebeu a ordem da cavalaria, e já hoje desfez a maior violência e o pior agravo que a sem-razão formou, e a crueldade cometeu! Sim, hoje tirou das mãos o tagante àquele desapiedado inimigo, que tanto sem causa estava açoitando um melindroso infante.
Nisto chegou a um caminho em cruz, e para logo lhe vieram à lembrança as encruzilhadas em que os cavaleiros andantes se detinham a pensar por onde tomariam.
Para os imitar, se conservou quieto por algum espaço, e, depois de ter muito bem cogitado, deixou-o à escolha do Rocinante, o qual seguiu o seu primeiro intuito, que foi correr para a cavalariça.
Como houve andado obra de duas milhas descobriu D. Quixote um grande tropel de gente, que eram (como depois se veio a saber) uns mercadores de Toledo, que se iam a Múrcia à compra de seda.
Seis eram eles, e vinham com seus guarda-sóis, com mais quatro criados a cavalo, e três moços de mulas a pé.
Apenas D. Quixote avistou todo aquele gentio, teve logo para si ser coisa de aventura nova; e para imitar em tudo que lhe parecia possível os passos que lera, entendeu vir de molde para o caso uma coisa que lhe veio à ideia; e assim com gentil portamento e denodo, firmando-se bem nos estribos, apertou a lança, conchegou a adarga ao peito, e posto no meio do caminho se deteve à espera de que chegassem aqueles cavaleiros andantes que já por tais os julgava. Quando chegaram a distância de se poderem ver e ouvir, alçou a voz, e com gesto arrogante disse:
Todo o mundo se detenha, se todo o mundo não confessa, que não há no mundo todo donzela mais formosa que a Imperatriz da Mancha, a sem par Dulcinéia del Toboso.
Estacaram os mercadores, ouvindo aquelas vozes, e mais, vendo a estranha figura que as proferia; e por uma e outra causa logo entenderam estarem metidos com um orate; mas sempre quiseram ver mais devagar em que pararia aquela intimação. Um deles, que era seu tanto brincalhão, e discreto que farte, respondeu:
Senhor cavaleiro, nós outros não conhecemos quem seja essa boa senhora que dizeis; deixai-no-la ver, que, a ser ela de tanta formosura como encarecestes, de boa vontade e sem recompensa alguma confessaremos a verdade que exigis de nós.
Se a vísseis — replicou D. Quixote — que avaria fora confessardes evidência tão notória? O que importa é que sem a ver o acrediteis, confesseis, afirmeis, jureis e defendais; quando não, entrareis comigo em batalha, gente descomunal e soberba; que, ou venhais um por cada vez, como pede a ordem de cavalaria ou todos de rondão, como é costume nos da vossa ralé, aqui vos aguardo, confiado na razão que por mim tenho.
Senhor cavaleiro, — respondeu o mercador — suplico a Vossa Mercê, em nome de todos estes Príncipes que presentes somos, que, para não encarregarmos as consciências, confessando uma coisa que nunca vimos nem ouvimos, e mais, sendo tanto em menoscabo de todas as Imperatrizes e Rainhas da Alcarria e Estremadura, que seja Vossa Mercê servido de nos mostrar algum retrato dessa senhora, ainda que não seja maior do que um grão de trigo; que pelo dedo se conhece o gigante, e só com isso ficaremos satisfeitos e seguros, e Sua Mercê obedecido e contente. E até creio que já vamos estando tanto em favor dela, que, ainda que o seu retrato nos mostre ser torta de um olho, e do outro destilar vermelhão e enxofre, apesar disso, por comprazermos a Vossa Mercê, diremos em seu abono quanto se quiser.
Não destila, canalha infame, isso que dizeis — respondeu D. Quixote aceso em cólera; — destila âmbar e algália entre algodões, e não é torta nem corcovada, senão mais direita que um fuso de Guadarrama. Vós outros ides pagar a grande blasfêmia que proferistes contra tamanha beldade, como é a minha senhora.
E nisto arremeteu logo com a lança em riste contra o que lhe falara; e com tanta fúria de enojado, que, se a boa sorte não permitira que no meio do caminho esbarrasse e caísse o Rocinante, mal passaria o atrevido mercador.
Com o estender-se do cavalo, foi D. Quixote rodando um bom pedaço pelo campo, sem lograr levantar-se, por mais que fizesse, tanto era o empacho da lança, adarga, esporas, e celada, e o peso da armadura velha. Enquanto barafustava para se erguer sem o conseguir, dizia:
Não fujais, gente covarde, gente refece! reparai, que, se estou aqui estendido, não é por culpa minha, senão do meu cavalo.
Um moço de mulas, dos que ali vinham, e que não devia ser dos mais bem intencionados, ouvindo ao pobre estirado tantas arrogâncias, não o pôde levar à paciência sem lhe apresentar o troco pelas costelas; e, chegando-se a ele, tomou a lança, desfê-la em pedaços, e com um dos troços dela começou a dar ao nosso D. Quixote pancadaria tão basta, que, a despeito e pesar de suas armas, o moeu como bagaço.
Bradavam-lhe os amos que lhe não desse tanto, e o deixasse. Mas o moço, que estava já fora de si, não quis acomodar-se antes de desafogar de todo a sua ira; e, agarrando nos mais troços da lança, os acabou de desfazer sobre o miserável caído, que, debaixo daquele temporal de pancadaria, não deixava de vociferar ameaças contra céu e terra, e os que lhe pareciam malandrins.
Cansou-se o moço, e os mercadores seguiram sua jornada, levando para toda ela matéria de comentários à custa do pobre acabrunhado. Este, depois que se viu só, tornou a fazer diligências para se erguer; mas se, quando são e bom, o não tinha podido, como o poderia agora, moído e quase desfeito? E ainda se tinha por ditoso, imaginando que enfim era desgraça própria de cavaleiros andantes, e toda a atribuía a faltas do seu cavalo. Em suma, nem mover-se podia, de derreado que estava de todo o corpo.

Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Téo & O Mini Mundo

1554 – Cidade do México

Sepúlveda

O cabildo da Cidade do México, flor e nata do senhorio colonial, resolve mandar a Juan Ginés de Sepúlveda duzentos pesos de ouro, em reconhecimento por sua tarefa e para animá-lo no futuro.
Sepúlveda, o humanista, não é somente doutor e arcipreste, cronista e capelão de Carlos V. Brilha também nos negócios, segundo prova sua crescente fortuna, e nas cortes trabalha como ardoroso agente de propaganda dos donos de terras e índios da América.
Ante os alegados de Bartolomé de las Casas, assegura Sepúlveda que os índios são servos pela natureza, segundo desejo de Deus, e que sobrados exemplos brindam as Sagradas Escrituras do castigo aos injustos. Quando Las Casas pretende que os espanhóis aprendam a língua dos índios tanto como os índios a língua de Castilha, contesta Sepúlveda que a diferença entre os espanhóis e os índios é a mesma que separa machos e fêmeas e quase a que diferencia homens de macacos. O que Las Casas chama de abuso e crime, para Sepúlveda é legítimo sistema de domínio e recomenda a arte da caça contra quem, tendo nascido para obedecer, recusa a escravidão.
O rei, que publica os ataques de Las Casas, proíbe, em compensação, o tratado de Sepúlveda sobre as justas causas da guerra colonial. Sepúlveda aceita a censura sorrindo e sem protestar. Pode mais, afinal das contas, a realidade que a má consciência, e bem sabe ele o que no fundo sabem todos os que mandam: que é o desejo de ganhar ouro, e não o de ganhar almas, o que levanta impérios.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Fanatismo

O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

Renato Russo | Strani Amori

Palavras… palavras…

Tem havido muitas luas
muitas luas cheias
muitas noites
daquelas bem escuras
Muitos dias lindos
daqueles bem claros
de modos que vou ficando
por aqui, não sem antes
celebrar… Celebrar o quê
meu Deus! Celebrar o quê?!…
A natureza é tão pura
a gente planta uma semente
e ela vira árvore. Até os
grilos parece que foram
feitos por Deus. Tudo canta.
Tem havido muitas luas
muitas luas cheias

Cacaso, em Poesia Completa

Um especialista


A Bastos Tigre

Era hábito dos dois, todas as tardes, após o jantar, jogar uma partida de bilhar em cinquenta pontos, finda a qual iam, em pequenos passos, até ao largo da Carioca tomar café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências, ficarem esperando a hora dos teatros, enquanto que, dos charutos, fumaças azuladas espiralavam preguiçosamente pelo ar.
Em geral, eram as conquistas amorosas o tema da palestra; mas, às vezes, incidentemente, tratavam dos negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.
Amor e dinheiro, eles juntavam bem e sabiamente.
O comendador era português, tinha seus cinquenta anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado antes seis no Recife. O seu amigo, o coronel Carvalho, também era português, viera, porém, aos sete para o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixeiro de venda, feitor e administrador de fazenda, influência política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara com propriedades, ficando daí em diante senhor de uma boa fortuna e da patente de coronel da Guarda Nacional. Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio de brilhantes, empregando a sua mole atividade na gerência de uma fábrica de fósforos. Viúvo, sem filhos, levava a vida de moço rico. Frequentava cocottes; conhecia as escusas casas de rendez-vous, onde era assíduo e considerado; o outro, o comendador, que era casado, deixando, porém, a mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.
Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador de raridades.
À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.
A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses, desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.
O coronel era justamente o contrário: só queria às estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras ou simplesmente meretrizes eram o seu fraco.
Entretanto havia já quinze dias que não se encontravam no lugar aprazado, e a faltar era o comendador, a quem o coronel sabia bem por informações do seu guarda-livros.
Ao acabar a segunda semana dessa ausência imprevista, o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na sua loja à rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e de boa saúde. Explicaram-se; e entre eles ficou assentado que se veriam naquele dia, à tarde, na hora e lugar habituais.
Como sempre, jantaram fartamente e regiamente regaram o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a partida de bilhar e depois, como encarrilhados, seguiram para o café de costume no largo da Carioca.
No princípio, conversaram sobre a questão das minas de Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a desonestidade do governo; mas logo depois, o coronel, que “tinha a pulga atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo de tão longa ausência.
Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o comendador, depois de chupar fortemente o charuto e soltar uma volumosa baforada; um petisco que encontrei... Uma mulata deliciosa, Chico! Só vendo o que é, disse a rematar, estalando os beiços.
Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como foi? Conta lá!
Assim. A última vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte?
Disseste-me. E daí?
Ouve. Espera. Cos diabos isto não vai a matar! Pois bem, fui a bordo. O amigo não veio... Não era bem meu amigo... Relações comerciais... Em troca...
Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou em frente ao café e por ele adentro entrou uma gorda mulher, cheia de plumas e sedas, e para vê-la virou-se o comendador, que estava de costas, interrompendo a narração. Olhou-a e continuou depois:
Como te dizia: não veio o homem, mas enquanto tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma esplêndida mulata; e tu sabes que eu...
Deixou de fumar e com olhares canalhas sublinhou a frase magnificamente.
De indagação em indagação, soube que viera com um alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice (era seu nome, soube também) aproveitara a companhia, somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer a vida... Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e não perdia vaza, como tu vais ver.
Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a cabeça, e seguiu narrando:
Saltamos juntos, pois viemos juntos na mesma lancha — a que eu alugara. Compreendes? E, quando embarcamos num carro, no largo do Paço, para a pensão, já éramos conhecimentos velhos; assim pois...
E o alferes?
Que alferes?
O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste?
Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da Guerra e nunca mais o vi.
Está direito. Continua lá a coisa.
E... e... Onde é que estava? Hein?
Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.
É isto! Fomos para a pensão Baldut, no Catete; e foi, pois, assim que me apossei de um lindo primor — uma maravilha, filho, que tem feito os meus encantos nestes quinze dias — com os raros intervalos em que me aborreço em casa, ou na loja, já se vê bem.
Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra, assim foi dizendo:
É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! Nem de longe! Calcula que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem corridos: olhos pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes... Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.
O comendador falara com um ardor desusado nele; acalorara-se e se entusiasmara deveras, a ponto de haver na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia aspecto de um suíno, cheio de lascívia, inebriado de gozo. Os olhos arredondaram-se e diminuíram; os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos pra diante se juntavam ao jeito de um focinho; o rosto destilava gordura; e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era de um colossal suíno.
O que pretendes fazer dela? Dize lá.
É boa... Que pergunta! Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e “lançá-la”. E é pouco?
Não! Acho até que te excedes. Vê lá, tu!
Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco... Uma miséria!
Acendeu o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:
Vou buscá-la de carro, porquanto vamos ao cassino, e tu me esperas lá, pois tenho um camarote.
Até já.
Saindo o seu amigo, o coronel considerou um pouco, mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.
Eram oito horas da noite.
Defronte ao café, o casarão de uma ordem terceira ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores de gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas que nela terminavam, delgados filetes de gente saíam e entravam constantemente. A praça era como um tanque a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bondes da Jardim semeavam pelos lados a branca luz de seus focos e, de onde em onde, um carro, um tílburi, a atravessava célere.
O coronel esteve algum tempo olhando o largo, preparou um novo charuto, acendeu-o, foi até à porta, mirou um e outro transeunte, olhou o céu recamado de estrelas, e, finalmente, devagar, partiu em direção à Lapa.
Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não havia começado.
Sentou-se a um banco no jardim, serviu-se de cerveja e entrou a pensar.
Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele instante entrava um. Via-se pelo acanhamento que era um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no calçar, não tinha em troca o desembaraço com que se anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não fosse a estreiteza de seus movimentos. Era um visitante ocasional, recém-chegado, talvez, do interior, que procurava ali uma curiosidade, um prazer da cidade.
Em seguida, entrou um senhor barbado, de maçãs salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo ar solene, pelo olhar desdenhoso que atirava em volta, descobria-se nele um legislador da Cadeia Velha, deputado, representante de algum estado do Norte, que, com certeza, há duas legislaturas influía poderosamente nos destinos do país com o seu resignado apoio. E assim, um a um, depois aos magotes, foram entrando os espectadores. Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores assíduos — pessoas variegadas de profissão e moral que com frequência blasonavam saber os nomes das cocottes, a proveniência delas e as suas excentricidades libertinas. Entre os que entravam naquele momento, entrara também o comendador e o “achado”.
A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.
Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras convencionadas de se estar em público. Era cedo ainda.
Em meio, porém, da segunda, as atitudes mudaram. Na cena, uma delgadinha senhora (chanteuse à diction — no cartaz) berrava uma cançoneta francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida, estribilhavam-na doidamente. O espetáculo ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro — um odor azedo de orgia.
Centenas de charutos e cigarros a fumegar enevoavam todo ambiente.
Desprendimentos do tabaco, emanações alcoólicas, e, a mais, uma fortíssima exalação de sensualidade e lubricidade, davam à sala o aspecto repugnante de uma vasta bodega.
Mais ou menos embriagado, cada um dos espectadores tinha para com a mulher com quem bebia gestos livres de alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas mulheres, de dentro das rendas, surgiam espectrais, apagadas, lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o álcool ou o prestígio de peregrinas, tinham sobre aqueles homens um misterioso ascendente. À esquerda, na plateia, o majestoso deputado da entrada coçava despudoradamente a nuca da Dermalet, uma francesa; em frente o doutor Castrioto, lente de uma escola superior, babava-se todo a olhar as pernas da cantora em cena, enquanto em um camarote defronte, o juiz Siqueira apertava-se à Mercedes, uma bailarina espanhola, com o fogo de um recém-casado à noiva.
Um sopro de deboche percorria homem a homem.
Dessa forma o espetáculo desenvolvia-se no mais fervoroso entusiasmo e o coronel, no camarote, de soslaio, pusera-se a observar a mulata. Era bonita de fato e elegante também. Viera com um vestido creme de pintas pretas, que lhe assentava magnificamente.
O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico chapéu de palha preta, saía firme do pescoço roliço que a blusa decotada deixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos, voavam de um lado a outro e a tez de bronze novo cintilava à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava de volúpia...
O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo e, fora do costume, pouco conversou. O amigo pudicamente não insistiu no exame.
Quando saíram de permeio à multidão, acumulada no corredor da entrada, o coronel teve ocasião de verificar o efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais atrás, pôde ir recolhendo os ditos e as observações que a passagem deles ia sugerindo a cada um.
Um rapazola dissera:
Que “mulatão”!
Um outro refletiu:
Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro. Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:
Parecem pai e filha.
E essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu calou fundo no ânimo do coronel.
Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também; o ar, um não sei quê de ambos assemelhavam-se... Vagas semelhanças, concluiu o coronel ao sair à rua, quando uma baforada de brisa marinha lhe acariciou o rosto afogueado.
Já o carro rolava rápido pela rua quieta — quietude agora perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos e pelas falsas risadas de suas companheiras — quando o comendador, levantando-se no estrado da carruagem, ordenou ao cocheiro que parasse no hotel, antes de tocar para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha sempre por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia nela; as sedas roçagantes e os chapéus vistosos das mulheres; a profusão de luzes, o irisado das plumas, os perfumes requintados que voavam pelo ambiente transmudavam-na de sua habitual fisionomia pacata e remediada. As pequenas mesas, pejadas de pratos e garrafas, estavam todas elas ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam-se, seguidas de um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês, sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações italianas, chocavam-se, brigavam.
Do português nada se ouvia, parecia que se escondera de vergonha.
Alice, o comendador e o coronel sentaram-se a uma mesa redonda em frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante. À sobremesa, os três convivas repentinamente animados puseram-se a conversar com calor. A mulata não gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim! O céu era outro; as comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Quem não se recordaria sempre de uma frigideira de camarões com maturins ou de um bom feijão com leite de coco?
Depois, mesmo a cidade era mais bonita; as pontes, os rios, o teatro, as igrejas.
E os bairros então? A Madalena, Olinda... No Rio, ela concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife era outra coisa, era tudo...
Você tem razão, disse o comendador; Recife é bonito, e muito mais...
O senhor, já esteve lá?
Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à altura dos olhos, correu-a pela testa, contornou com ela a cabeça, descansou-a afinal na perna e acrescentou: comecei lá minha carreira comercial e tenho muitas saudades. Onde você morava?
Ultimamente à rua da Penha, mas nasci na de João de Barro, perto do hospital de Santa Águeda.
Morei lá também, disse ele distraído.
Criei-me pelas bandas de Olinda, continuou Alice, e por morte de minha mãe vim para a casa do doutor Hildebrando, colocada pelo juiz...
Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.
Há oito anos quase, respondeu ela.
Há muito tempo, refletiu o coronel; e logo perguntou: que idade tens?
Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! — só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse.
Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava só chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro — um malvado em cujas mãos não sei como fui cair — certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal!
Ah! Tem sido um tormento... Bem me dizia minha mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai comigo...
Como?... Como foi isso? interrogou admirado o coronel.
Não sei bem como foi, retrucou ela. Minha mãe me contava que ela era honesta; que vivia na Cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia fora seduzida por um caixeiro português que lá aparecera e com quem veio para o Recife. Nasci deles e dois meses ou mais depois do meu nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais.
Vindo de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela soube notícias dele, nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.
Como se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.
Não me lembro bem; era Mota ou Costa... Não sei... Mas o que é isso? disse ela de repente, olhando o comendador. Que tem o senhor?
Nada... Nada... retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não se lembra das feições desse homem? interrogou ele.
Não me lembro, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu pai? gracejou ela.
O gracejo caiu de chofre naqueles dois espíritos tensos, como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador que tinha as faces em brasa; este, àquele; por fim depois de alguns segundos o coronel querendo dar uma saída à situação, simulou rir-se e perguntou:
Você nunca mais soube alguma coisa... qualquer coisa? Hein?
Nada... Que me lembre, nada... Ah! Espere... Foi... É. Sim! Seis meses antes da morte de minha mãe, ouvi dizer em casa, não sei por quem, que ele estava no Rio implicado num caso de moeda falsa. É o que me lembro, disse ela.
O quê? Quando foi isso? indagou pressuroso o comendador.
A mulata, que ainda não se havia bem apercebido do estado do comendador, respondeu ingenuamente: — Mamãe morreu em setembro de 1893, por ocasião da revolta... Ouvi contar essa história em fevereiro. É isso.
O comendador não perdera uma sílaba; e, com a boca meio aberta, parecia querê-las engolir uma a uma; com as faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia estava horrível.
O coronel e a mulata, extáticos, estuporados, entreolhavam-se.
Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer. Ficaram como idiotas; em breve, porém, o comendador, num supremo esforço, disse com voz sumida:
Meu Deus! É minha filha!

Lima Barreto, em Contos completos