segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Chitãozinho & Xororó e Vanessa da Mata | Foi Deus Quem Fez Você

Ontem

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo

O impagável Quino

1600 – Santa Marta

Eles tinham uma pátria

O fogo tarda em arder.
Ruídos de ferro, perambular de armaduras. O assalto a Santa Marta fracassou e o governador ditou a sentença de arrasamento. Armas e soldados chegaram de Cartagena no momento preciso e os tairona, esgotados por tantos anos de tributos e escravidões, se espalharam na derrota.
Extermínio através do fogo. Ardem povoados e plantações, milharais e algodoais, campos de mandioca e batata, os pomares. Ardem os regadios e os celeiros que alegravam a vista e davam de comer, os campos de lavoura onde os tairona faziam o amor em pleno dia, porque nascem cegas as crianças feitas na escuridão.
Quantos mundos iluminam estes incêndios? O que estava e era visto, e o que estava e não era visto...
Desterrados ao cabo de sessenta e cinco anos de revolta, os tairona fogem pelas montanhas rumo aos cantos mais áridos e distantes, onde não há peixe nem milho. Para lá os expulsam, serra acima, para arrancar-lhes a terra e a memória: para que lá longe se isolem e esqueçam, na solidão, os cantos de quando estavam juntos, federação de povos livres, e eram poderosos e vestiam mantas de algodão colorido e colares de ouro e pedras fulgurantes: para que nunca mais lembrem que seus avós foram jaguares.
Às suas costas, deixam ruínas e sepulturas.
Sopra o vento, sopram as almas em pena, e o fogo se afasta dançando.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Sobre a tortura dos outros




Há um longo tempo — pelo menos seis décadas —, as fotos têm deixado as marcas de como os conflitos importantes são julgados e lembrados. O museu da memória ocidental é, hoje, sobretudo visual. As fotos têm um poder insuperável para determinar o que recordamos dos fatos, e agora parece provável que a associação determinante das pessoas de todo o mundo com a guerra podre que os Estados Unidos desencadearam de forma preventiva no Iraque no ano passado serão as fotos da tortura dos prisioneiros iraquianos praticada por americanos na mais infame de todas as prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.
O governo Bush e seus defensores procuraram acima de tudo limitar um desastre de relações públicas — a disseminação das fotos —, em vez de enfrentar os complexos crimes de liderança e de estratégia revelados pelas fotos. Antes de tudo, houve o deslocamento da realidade para as fotos em si. A reação inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e indignado com as fotos — como se o erro ou o horror estivesse nas imagens, não no que elas retratam. Evitou-se também a palavra “tortura”. Os prisioneiros foram talvez objetos de “maus-tratos”, ou até de “humilhação” — isso foi o máximo que se admitiu. “Minha impressão é de que, até agora, se trata de uma acusação de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente diferente de tortura”, disse o secretário de Defesa Donald Rumsfeld numa entrevista coletiva. “E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’.”
Palavras alteram, palavras acrescentam, palavras subtraem. Foi a insistência em evitar a palavra “genocídio”, enquanto cerca de 800 mil tútsis em Ruanda estavam sendo massacrados, durante poucas semanas, pelos seus vizinhos hútus, dez anos atrás, que indicou que o governo americano não tinha a menor intenção de fazer nada. Recusar-se a chamar o que ocorreu em Abu Ghraib — e aconteceu em outros locais do Iraque e do Afeganistão, e na baía de Guantánamo — pelo seu nome verdadeiro, tortura, é tão escandaloso quanto a recusa de chamar o genocídio de Ruanda de genocídio. Aqui está uma das definições de tortura contidas na convenção da qual os Estados Unidos são signatários: “Qualquer ato mediante o qual uma dor ou um sofrimento forte, físico ou mental, é causado intencionalmente a uma pessoa, com propósitos como obter dela ou de uma terceira pessoa alguma informação ou uma confissão”. (A definição provém da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Definições semelhantes existiram durante algum tempo em leis consuetudinárias e em tratados, a começar pelo Artigo 3 — comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949 — e muitas convenções de direitos humanos recentes.) A convenção de 1984 declara: “Nenhuma circunstância excepcional, qualquer que seja ela, mesmo um estado de guerra ou uma ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer emergência pública, pode ser invocada como justificativa da tortura”. E todos os acordos sobre tortura fazem referência ao tratamento destinado a humilhar a vítima, como deixar prisioneiros nus em celas e corredores.
Qualquer que seja a ação que esse governo implemente a fim de reduzir os prejuízos da ampla divulgação da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e outros locais — processos, cortes marciais, exoneração desonrosa, demissão de autoridades militares em altos cargos e de funcionários do governo, além de uma substancial compensação às vítimas —, é provável que a palavra “tortura” continue banida. Reconhecer que americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que esse governo pediu que o público acreditasse a respeito da virtude das intenções americanas e da universalidade dos valores americanos, o que é a suprema e triunfalista justificativa do direito americano a uma ação unilateral no mundo, em defesa de seus interesses e segurança.
Mesmo quando o presidente foi por fim coagido a usar a palavra “pesaroso”, em vista da ampliação e exacerbação da má reputação dos Estados Unidos em todo o mundo, o foco do pesar ainda parecia ser o estrago causado à pretensão americana de uma superioridade moral, ao seu objetivo hegemônico de levar “a liberdade e a democracia” ao ignorante Oriente Médio. Sim, o senhor Bush disse em Washington no dia 6 de maio, ao lado do rei Abdullah II, da Jordânia, que estava “pesaroso pela humilhação padecida pelos prisioneiros iraquianos e por seus familiares”. Mas prosseguiu e disse que estava “igualmente pesaroso porque as pessoas que viram essas fotos não compreenderam a verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”.
O fato de o esforço americano no Iraque ter sido sintetizado por essas imagens deve parecer “injusto” para aqueles que viam alguma justificativa numa guerra que de fato derrubou um dos tiranos monstruosos dos tempos modernos. Uma guerra, uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações. O que torna algumas ações representativas e outras não? A questão não é se a tortura foi praticada por indivíduos (ou seja, “não por todo mundo”), mas se foi sistemática. Autorizada. Sancionada. Todas as ações são praticadas por indivíduos. A questão não é se a maioria ou a minoria dos americanos pratica tais atos, mas se a natureza da política desenvolvida por esse governo e as hierarquias aplicadas para implementá-la tornam tais atos prováveis.
 
 Vistas sob essa luz, as fotos somos nós. Ou seja, são representativas da corrupção fundamental de qualquer ocupação estrangeira associada à política distintiva do governo Bush. Os belgas no Congo, os franceses na Argélia, praticaram tortura e humilhações sexuais em desprezados nativos recalcitrantes. Acrescentemos a essa corrupção genérica o desconcertante e quase total despreparo dos governantes americanos do Iraque para lidar com as realidades complexas do país após a sua “liberação” — ou seja, conquista. E acrescentemos a isso as doutrinas abrangentes do governo Bush, em especial a doutrina de que os Estados Unidos entraram numa guerra sem fim (contra um inimigo polimorfo chamado “terrorismo”) e que as pessoas presas nessa guerra são, se o presidente assim decidir, “combatentes ilegais” — uma política formulada por Donald Rumsfeld já em janeiro de 2002 —, e assim, segundo Rumsfeld, “tecnicamente sem nenhum direito à Convenção de Genebra”, e temos uma receita perfeita para os crimes e as crueldades cometidas contra milhares de pessoas encarceradas sem julgamento e sem acesso a advogados em prisões dirigidas por americanos, criadas a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Portanto, a questão real não são as fotos em si, mas o que as fotos revelam que aconteceu com “suspeitos” sob custódia de americanos? Não: o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser separado do horror do fato de as fotos terem sido tiradas — com os perpetradores fazendo pose, caras de contentes, sobre os seus cativos indefesos. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia e na Rússia, mas instantâneos em que os carrascos se colocavam entre as suas vítimas são extremamente raros, como se pode ver em Fotografando o Holocausto, de Janina Struk. Se há algo comparável ao que essas fotos mostram, talvez sejam as fotos de vítimas negras de linchamento tiradas entre 1880 e 1930, que mostram americanos sorrindo embaixo do corpo mutilado e queimado de um homem ou de uma mulher negra, pendurado numa árvore às suas costas. As fotos de linchamento eram suvenires de uma ação coletiva, cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados naquilo que tinham feito. Assim são as fotos de Abu Ghraib.
Se existe uma diferença, é uma diferença criada pela crescente ubiquidade de ações fotográficas. As fotos de linchamento eram da natureza das fotos como troféus — tiradas por um fotógrafo a fim de ser colecionadas, guardadas em álbuns, mostradas. As tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib, porém, refletem uma mudança no uso feito de fotos — menos objetos que se devem salvar do que mensagens que se devem disseminar, difundir. Uma câmera digital é um bem comum entre soldados. Onde antes a fotografia de guerra constituía um domínio de repórteres-fotográficos, agora os próprios soldados são fotógrafos completos — registram a sua guerra, a sua diversão, as suas observações do que acham pitoresco, as suas atrocidades — e trocam fotos entre si, enviam fotos por e-mail para o mundo inteiro.
Há cada vez mais registros daquilo que as pessoas fazem, registros obtidos por elas mesmas. Pelo menos ou especialmente nos Estados Unidos, o ideal de Andy Warhol de filmar fatos reais em tempo real — a vida não é editada, por que seu registro deveria ser? — tornou-se uma norma para incontáveis sites da internet, nos quais as pessoas registram o seu dia, cada um no seu reality show particular. Aqui estou eu — andando, bocejando, me espreguiçando, escovando os dentes, tomando o café-da-manhã, levando os filhos à escola. As pessoas registram todos os aspectos da sua vida, guardam em arquivos de computador e despacham os arquivos para toda parte. A vida familiar caminha junto com o registro da vida familiar — mesmo, ou sobretudo, quando a família se acha nos estertores de uma crise ou numa grande infelicidade. Sem dúvida, a dedicada e incessante produção de vídeos domésticos em que uns filmavam os outros, em conversas ou em monólogos, ao longo de muitos anos, constituiu o material mais impressionante em Capturing the Friedmans (2003), documentário de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida em processos de pedofilia.
Uma vida erótica é, para um número cada vez maior de pessoas, aquilo que pode ser captado em fotos digitais e em vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como algo para registrar, quando contém um componente sexual. À medida que mais fotos de Abu Ghraib se oferecem ao público, revela-se com certeza que as fotos de tortura aparecem intercaladas com imagens pornográficas em que soldados americanos se mostram fazendo sexo entre si. De fato, a maioria das fotos de tortura tem um tema sexual, como na que mostra a coerção de prisioneiros a praticarem, ou simularem, atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a foto de um homem obrigado a ficar de pé sobre uma caixa, de capuz e envolto em fios elétricos, a quem informaram que seria eletrocutado se caísse. Contudo, fotos de prisioneiros mantidos em posições dolorosas, ou obrigados a ficar de pé com os braços abertos, são raras. Não dá para contestar que sejam tortura. Basta olhar para o terror no rosto da vítima. Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório de imagens pornográficas disponível na internet — imagens que pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos de computador.
 
 Viver é ser fotografado, ter um registro da sua vida e, portanto, continuar a viver inconsciente, ou fingindo não ter consciência, das atenções incessantes da câmera. Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações registradas como imagens. A expressão de satisfação com os atos de tortura infligidos a vítimas nuas, indefesas, amarradas é apenas uma parte da história. Há a profunda satisfação de ser fotografado, à qual hoje as pessoas estão mais inclinadas a reagir não com um olhar duro e direto (como acontecia antigamente), mas com alegria. Os fatos destinam-se, em parte, a ser fotografados. O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando alguma coisa se, depois de fazer uma pilha de homens nus, não se pudesse tirar uma foto deles.
Ao olhar para essas fotos, nos perguntamos: como alguém pode sorrir diante do sofrimento e da humilhação de outro ser humano? Atiçar cães de guarda contra os órgãos genitais e as pernas de prisioneiros nus agachados? Prisioneiros encapuzados, algemados, obrigados a se masturbarem ou simular sexo oral uns com os outros? E nos sentimos ingênuos ao perguntar, pois a resposta é, obviamente, que as pessoas fazem isso umas com as outras. Estupro e dor causada nos órgãos genitais estão entre as formas de tortura mais comuns. Não só nos campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, quando era dirigido por Saddam Hussein. Americanos também agiram e agem assim quando recebem ordens, ou quando são levados a sentir que as pessoas sobre as quais têm um poder absoluto merecem ser humilhadas, atormentadas. Agem assim quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando pertencem a uma raça ou religião inferior. Pois o sentido dessas fotos não é só que tais atos foram praticados, mas que os seus perpetradores parecem não ter a menor idéia de que haja algo errado no que as fotos mostram.
E mais estarrecedor ainda, uma vez que as fotos destinavam-se a ser difundidas e vistas por muita gente: tudo era diversão. E essa ideia de diversão, infelizmente, cada vez mais — ao contrário do que o sr. Bush anda dizendo para o mundo —, faz parte da “verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”. É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade na vida americana, mas sua evidência está em toda parte, a começar pelos videogames de matança que são o principal entretenimento dos meninos — não há de estar muito longe o lançamento do videogame Interrogando os terroristas — e vai até a violência que se tornou endêmica nos ritos grupais de jovens, com um ímpeto exuberante. O crime violento está em baixa, contudo o prazer fácil derivado da violência parece ter aumentado. Desde os tormentos dolorosos infligidos a estudantes calouros em muitas faculdades americanas do subúrbio — retratados no filme de Richard Linklater Tontos e confusos (1993) —, até os rituais de trote de brutalidade física e humilhação sexual em fraternidades das faculdades e em equipes esportivas, os Estados Unidos tornaram-se um país em que as fantasias e as práticas da violência são vistas como um bom entretenimento, uma diversão.
O que antes era segregado como pornografia, como o exercício de desejos sadomasoquistas radicais — como no último e inassistível filme de Pier Paolo Pasolini, Salò (1975), que retrata orgias de tortura no reduto fascista ao norte da Itália no fim da era Mussolini —, agora está sendo normalizado pelos apóstolos da nova, imperial, belicosa América, como brincadeiras de júbilo ou descontração. “Empilhar homens nus” é semelhante a uma brincadeira de fraternidade universitária, disse por telefone um ouvinte no programa de Rush Limbaugh, e também os muitos milhões de americanos que ouvem o seu programa de rádio. Podemos nos perguntar: será que essa pessoa de fato viu as fotografias? Não importa. O comentário — ou será uma fantasia? — acertou em cheio. O que talvez ainda seja capaz de chocar alguns americanos é a reação de Limbaugh: “Exatamente!”, exclamou ele. “É exatamente isso o que penso. Não é nem um pouco diferente do que acontece na recepção de calouros na sociedade secreta de estudantes Crânio e Caveira, na Universidade de Yale, e vamos arruinar a vida das pessoas por causa disso, e vamos criar embaraços para o nosso esforço militar, e vamos então de fato marretá-los porque eles estão se divertindo?” “Eles” são os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh prossegue: “Sabe, essas pessoas estão sob o fogo inimigo todos os dias. Eu estou falando de pessoas que se divertem, é o caso delas. Já ouviram falar em alívio emocional?”.
É provável que um número bem grande de americanos prefira pensar que não há nenhum problema em torturar e humilhar outros seres humanos — que, na condição de nossos inimigos supostos ou suspeitos, perderam todos os seus direitos — a reconhecer a loucura, a incompetência e o engodo da aventura americana no Iraque. Quanto ao fato de a tortura e a humilhação sexual serem vistas como diversão, parece haver pouca oposição a essa tendência, enquanto os Estados Unidos continuam a tornar-se um Estado militarizado, onde os patriotas se definem como aqueles que têm um respeito incondicional pelo poder armado e pela necessidade de máxima vigilância doméstica. E essas fotos que os americanos distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções humanitárias internacionais. Soldados agora posam, com o polegar para cima, perante as atrocidades que cometem, e enviam as fotos para seus companheiros. Deveríamos ficar totalmente surpresos? Em nossa sociedade, na qual antigamente se fazia de tudo para esconder os segredos da vida privada, agora as pessoas clamam para ser convidadas a um programa de tevê a fim de justamente revelar tais segredos. O que essas fotos ilustram é tanto a cultura da falta de vergonha como a reinante admiração da brutalidade que não pede desculpas.

A ideia de que desculpas ou profissões de “pesar” feitas pelo presidente e pela secretária de Defesa são uma reação suficiente constitui um insulto ao nosso senso histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração. É uma conseqüência direta da doutrina “ou está conosco ou está contra nós” de conflito mundial, com a qual o governo Bush procurou mudar, e mudar radicalmente, a postura internacional dos Estados Unidos e reformular muitas instituições e prerrogativas domésticas. O governo Bush envolveu o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, de guerra interminável — pois a “guerra contra o terror” nada mais é do que isso. O que aconteceu no novo império carcerário internacional dirigido pelas Forças Armadas dos Estados Unidos ultrapassa os famigerados procedimentos da Ilha do Diabo francesa ou do sistema do Gulag da União Soviética, que no caso da ilha penal francesa contavam, primeiro, com processos e sentenças judiciais, e no caso do império prisional russo, com uma acusação de algum tipo e uma sentença de um número específico de anos. Trava-se uma guerra sem fim para justificar encarceramentos sem fim. As pessoas presas no império penal extralegal americano são “detidas”; “prisioneiras”, palavra que acaba de se tornar obsoleta, poderia sugerir que elas têm os direitos conferidos pelas leis internacionais e pelas leis de todos os países civilizados. Essa interminável “guerra global contra o terrorismo” — na qual tanto a bastante justificável invasão do Afeganistão e a invencível insensatez do Iraque foram incluídas por um decreto do Pentágono — leva inevitavelmente à demonização e à desumanização de qualquer pessoa que o governo Bush declare ser um possível terrorista: uma definição que não é objeto de debate e, na verdade, é em geral feita em segredo.
Como não existem acusações contra a maioria das pessoas detidas nas prisões no Iraque e no Afeganistão — a Cruz Vermelha informa que entre 70% e 90% dos presos parecem não ter cometido nenhum crime, exceto simplesmente estar no lugar errado na hora errada, recolhidos em alguma leva de “suspeitos” —, a principal justificativa para mantê-los presos é um “interrogatório”. Interrogatório sobre o quê? Sobre qualquer coisa. O que quer que o preso saiba. Se o interrogatório é o motivo para deter prisioneiros por um tempo indefinido, então a coerção física, a humilhação e a tortura tornam-se inevitáveis.
Lembremos: não estamos falando daquele caso raríssimo, a situação “bomba-relógio”, que é às vezes usada como caso-limite que justifica a tortura de presos que possuem um conhecimento de um ataque iminente. Trata-se de uma coleta de informações inespecífica ou genérica, sancionada pelas Forças Armadas americanas e pelos governantes civis a fim de saber mais a respeito de um nebuloso império de malfeitores, sobre os quais os americanos não sabem quase nada, em países sobre os quais eles são especialmente ignorantes: em princípio, toda e qualquer informação pode ser útil. Um interrogatório que não produz nenhuma informação (não importa em que consista essa informação) será considerado um fracasso. Por isso é mais justificável ainda que se preparem os prisioneiros para falar. Amolecer os prisioneiros, deixá-los debilitados — são eufemismos para as práticas bestiais nas prisões americanas onde suspeitos de terrorismo estão detidos. Infelizmente, parece que são muitos aqueles que ficam debilitados demais e morrem.
As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que tinham um problema nas mãos. Afinal, as conclusões dos relatórios compilados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outros relatos feitos por jornalistas e protestos apresentados por organizações humanitárias sobre os castigos atrozes infligidos aos “detidos” e “suspeitos de terrorismo” nas prisões dirigidas pelas Forças Armadas americanas, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque, já circulavam havia mais de um ano. Parece duvidoso que tais relatórios tenham sido lidos pelo sr. Bush, pelo sr. Cheney, pela sra. Rice ou pelo sr. Rumsfeld. Ao que parece, foi preciso que as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que tornaram tudo isso “real” para o presidente e seus associados. Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir, em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer.
Assim, as fotos agora continuarão a nos “agredir” — como muitos americanos são forçados a sentir. Será que as pessoas irão se acostumar com elas? Alguns americanos andam dizendo que já viram demais. Porém o resto do mundo pensa diferente. Guerra interminável: fluxo de fotos interminável. Será que os editores irão agora debater se devem mostrar mais fotos, ou se mostrá-las sem cortes (o que, no caso de algumas das mais conhecidas imagens, como a de um homem encapuzado sobre uma caixa, forma uma imagem diferente e, em certos exemplos, mais aterradora) seria “mau gosto” ou implicitamente político demais? Por “político” entenda-se: “crítico” do projeto imperial do governo Bush. Pois não pode haver nenhuma dúvida de que as fotos prejudicam, como atestou o sr. Rumsfeld, “a reputação dos homens e mulheres honrados das Forças Armadas que estão corajosamente e com toda a responsabilidade e profissionalismo defendendo a nossa liberdade em todo o mundo”. Esse prejuízo — à nossa reputação, nossa imagem, nosso sucesso como única superpotência — é aquilo que o governo Bush deplora acima de tudo. Como a proteção da “nossa liberdade” — a liberdade de 5% da humanidade — chegou ao ponto de exigir a presença de soldados americanos em todo o mundo é uma questão nunca discutida pelos nossos governantes eleitos. Os Estados Unidos vêem a si mesmos como uma vítima do terror futuro ou potencial. Os Estados Unidos estão apenas se defendendo, contra inimigos furtivos e implacáveis.
A reação violenta já começou. Os americanos estão sendo advertidos por se entregarem a uma orgia de autocondenação. A contínua publicação das fotos está sendo vista por muitos americanos como uma sugestão de que não temos o direito de nos defender: afinal, eles (os terroristas) começaram. Eles — Osama bin Laden? Saddam Hussein? Qual a diferença? — nos atacaram primeiro. James Inhofe, de Oklahoma, membro republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, diante do qual o secretário Rumsfeld prestou testemunho, confessou que tinha certeza de que ele não era o único membro do comitê “mais ultrajado pelo ultraje” das fotos do que pelo que as fotos mostravam. “Esses prisioneiros, sabe”, explicou o senador Inhofe, “não estão lá por uma violação das regras de trânsito. Se eles estão no bloco de celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros são assassinos, são terroristas, são insurgentes. Muitos deles provavelmente têm sangue americano nas mãos, e nós vamos ficar preocupados aqui com o tratamento recebido por esses elementos?” É culpa da “mídia”, que está provocando e vai continuar a provocar mais violência contra os americanos em todo o mundo. Mais americanos vão morrer. Por causa dessas fotos.
Seria um grande erro deixar que tais revelações da autorização da tortura, autorização feita pelas forças militares americanas e pelas autoridades civis americanas, na “guerra global contra o terrorismo” se tornem uma questão de guerra de — e contra — imagens. Os americanos estão morrendo não por causa das fotos, mas por causa daquilo que as fotos mostram que está acontecendo, acontecendo sob as ordens e com a cumplicidade de uma cadeia de comando que chega aos níveis mais altos do governo Bush. Mas a distinção entre foto e realidade — como entre enquadrar o assunto de um ângulo favorável na imprensa e uma estratégia política — pode evaporar-se facilmente. E é isso o que o governo Bush quer que aconteça.
Existem muito mais fotos e vídeos”, admitiu o sr. Rumsfeld em seu depoimento. “Se forem liberadas para o público, obviamente a situação irá piorar.” Piorar para o governo e seus projetos, supostamente, não para aqueles que são as efetivas — e potenciais — vítimas da tortura.
A mídia pode se autocensurar, mas como reconhece o sr. Rumsfeld é difícil censurar os soldados que estão em outros países, que não escrevem cartas para casa, como antigamente, cartas que podem ser abertas por censores militares que riscam os trechos inaceitáveis. Em vez disso, os soldados de hoje agem como turistas, conforme disse o sr. Rumsfeld, “saem por aí com câmeras digitais e tiram essas fotos inacreditáveis e depois as enviam, contra a lei, para a mídia, para a nossa surpresa”. O esforço do governo para reter as fotos se dá em diversas frentes ao mesmo tempo. No momento, a discussão está assumindo uma feição legalista: as fotos são agora classificadas como provas para futuros processos criminais, cujo resultado pode ser prejudicado se elas forem divulgadas. O presidente republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, John Warner, da Virgínia, depois da apresentação das fotos em slides, no dia 12 de maio, mostrando seguidas imagens de humilhação e violência sexual contra prisioneiros iraquianos, disse estar “firmemente convencido” de que as novas fotos “não devem ser divulgadas. Creio que isso poderia pôr em perigo os homens e as mulheres das Forças Armadas, pois estão em atividade e sob grande risco”.
Mas a verdadeira iniciativa de limitar o acesso às fotos virá do esforço contínuo de proteger o governo e encobrir os nossos desmandos no Iraque — identificar o “ultraje” das fotos com uma campanha para minar o poder militar americano e os propósitos a que ele atualmente serve. Assim como muitos achavam que as imagens de soldados americanos mortos durante a invasão e a ocupação do Iraque que apareciam na televisão eram uma crítica implícita da guerra, divulgar as novas fotos e macular mais ainda a imagem dos Estados Unidos será entendido, de modo crescente, como impatriótico.
Afinal, estamos em guerra. Guerra interminável. E a guerra é um inferno maior do que as pessoas que nos colocaram nessa guerra podre parecem ter planejado. Em nossa sala de espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não olhar para elas, haverá outros milhares de instantâneos e de vídeos. Incontroláveis.

Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos

Darl


Jewel”, eu pergunto, “de quem você é filho?”
A brisa soprava do celeiro, de forma que a pusemos embaixo da macieira, onde a luz do luar pode recortar a macieira sobre as compridas tábuas adormecidas, dentro das quais, de vez em quando, ela fala, soltando bolhas que rebentam em misterioso sussurro. Levo Vardaman para que escute. Quando chegamos, o gato saltou de cima do caixão, fugindo na sombra com sua garra de prata e seu olho de prata.
Sua mãe era um cavalo, mas quem era seu pai, Jewel?”
Maldito mentiroso filho da puta.”
Não me chame assim”, eu digo.
Maldito mentiroso filho da puta.”
Não me chame assim, Jewel.”
Ao luar, seus olhos pareciam dois pedaços de papel branco grudados numa bola de futebol solta no ar.
Depois do jantar, Cash começou a suar um pouco. “A perna está esquentando”, ele disse. “Acho que é porque o sol brilhou nela o dia todo.”
Quer que ponhamos água em cima?”, perguntamos. “Talvez sirva de alívio.”
Muito obrigado”, disse Cash. “Acho que foi porque o sol ardeu nela. Eu devia ter pensado nisso e coberto a perna.”
Nós é que devíamos ter previsto”, dizemos. “Você não poderia adivinhar.”
Não observei que ela ficava quente”, disse Cash. “Eu devia ter pensado.”
Assim, derramamos água em cima. Sua perna e pé fora do cimento pareciam cozidos.
Sente-se melhor?”, perguntamos.
Muito obrigado”, disse Cash. “Estou bem.”
Dewey Dell enxuga-lhe o rosto com a barra da saia. “Veja se dorme um pouco”, dizemos.
Sim”, diz Cash. “Estou muito agradecido a vocês. Agora me sinto melhor.”
Jewel, eu digo. Quem era seu pai. Jewel? Maldito Maldito.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

domingo, 7 de dezembro de 2025

Jacob Collier | Fairytale Lullaby

Sábado de aleluia

Escuta, Judas.
Antes que você parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente.
Tudo é aconchego árido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
e pronunciar o escândalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferença fanática ao ainda não.

Ana Cristina Cesar, em A Teus Pés

O Surrealismo de Magritte

O Império da Luz (1954), de René Magritte

Quarto de moça

Alguém me fala do apartamento em que você morou em Paris, em uma pequena praça cheia de árvores; outra pessoa esteve em sua casa de Nápoles: eu me calo. Mas, eu conheci seu quarto de solteira. Era pequeno, gracioso e azul; ou é a distância que o azula na minha lembrança? Junto à janela havia uma grande amendoeira antiga; às vezes o vento levava para dentro uma grande folha cor de cobre — gentileza da amendoeira. Que tinha outras: pássaros, quase sempre pardais, às vezes um tico-tico, ou uma rolinha, ou um casal de sanhaços azulados. E no verão, como as cigarras ziniam! Lembro o armário escuro e simples, onde cabiam seus vestidos de solteira, que não eram muitos; e lembro alguns deles, um roxinho singelo, um estampado alegre, de flores, um outro de linho grosso, cor de areia. Havia uma pequena estante; e, entre os livros, o meu primeiro livro, com uma dedicatória tímida. Na parede, uma fotografia, uma imagem de santa, e uma reprodução de Piero della Francesca, não era?
Era simples, seu quarto de menina e de moça; mas tinha uma graça leve e singela, e você o amava. Dali partiu para tantas outras casas e hotéis em outras cidades do mundo, e um dia soube que haviam derrubado sua casa. Contaram-me, achando graça, você chorou quando teve a notícia, chorou como se tivesse perdido pai ou mãe, alguém muito querido. Contaram-me achando graça — e eu não disse nada, mas me comovi.
Nossa amizade se perdeu no acaso das viagens; outros homens sabem muito mais sobre você, viveram sua alegria e seu sofrimento; de mim você terá apenas uma lembrança distante e, espero, boa. Mas, se um dia você se sentisse vazia e sem apoio, e achasse as coisas tão sem sentido, eu imagino que você gostaria que eu reconstruísse no ar, como um presente, um presente para proteger e embalar você, o seu pequeno quarto azul que não existe mais.
Conheci seu quarto de solteira; lembro a cama, o armário, a estante, a cômoda, a mesinha, o abajur e o grande espelho. O grande espelho onde às vezes, ainda mocinha, vinda do banho, você se olhava demoradamente — pensativamente — nua.
Rio, setembro, 1959.

Rubem Braga, em Ai de ti, Copacabana

Diário de Bernardo Soares

75.

Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro elétrico e a espantosa faculdade de abstração que tenho e cultivo.
Num carro elétrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e instantânea de análise, separar a ideia de carro da ideia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a ideia para o Puro Imitar da Velocidade e ao meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente — perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.
Um poente é um fenómeno intelectual.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Hey Jude | Paul McCartney e John Lennon


Hey Jude, don’t make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better

Hey Jude, don’t be afraid
You were made to go out and get her
The minute you let her under your skin
Then you begin to make it better

And anytime you feel the pain
Hey Jude, refrain
Don’t carry the world upon your shoulder
For well you know that it’s a fool
Who plays it cool
By making his world a little colder

Hey Jude, don’t let me down
You have found her, now go and get her
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better
So let it out and let it in
Hey Jude, begin
You’re waiting for someone to perform with
And don’t you know that it’s just you
Hey Jude, you’ll do
The movement you need is on your shoulder

Hey Jude, don’t make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her under your skin
Then you begin to make it better
Better, better, better, better, better
Hey Jude

A primeira vez que eu toquei esta canção para John e Yoko foi no chamado “Piano Mágico”, na minha sala de música. Eu estava sentado ao piano, e eles estavam em pé, atrás de mim, quase em meu ombro. Então, quando cantei “The movement you need is on your shoulder”, imediatamente me virei para John e falei: “Não se preocupe, vou mudar isso”, e ele me olhou bem sério e disse: “Não vai, não. É o melhor verso da letra”. Então, esse verso que eu ia jogar fora teve que ficar. É um ótimo exemplo de como funcionava a nossa colaboração. Foi tanta a firmeza dele em manter aquele verso que hoje, quando eu canto “Hey Jude”, eu sempre penso em John, e para mim esse acabou se tornando um ponto emocional da canção.
Era um momento delicado, claro, porque eu nem tenho certeza se ele sabia na época que a canção era para o filho dele, Julian. A canção se originou no dia em que viajei para visitar Julian e a mãe dele, Cynthia. Nesse ponto, John tinha deixado Cynthia, e fui a Kenwood como amigo, para dar um oi e ver como eles estavam. As pessoas insinuaram que eu gostava de Cynthia, isso é normal, mas não é o caso. Eu estava pensando em como seria difícil para Jules, como eu o chamava, aquela situação toda. O pai saindo de casa, os pais se divorciando. Começou como uma canção de encorajamento.
Em geral, o que acontece com uma canção é que ela começa num filão – nesse caso, estar preocupado com algo na vida, uma coisa específica, como um divórcio –, mas depois começa a se transformar numa criatura própria. Primeiro, o título era “Hey Jules”, mas mudou rapidamente para “Hey Jude”, pois achei que era um pouco menos específico. Percebi que ninguém ia saber exatamente do que se tratava, então eu poderia muito bem abri-la um pouco. Ironicamente, por um tempo John pensou que era sobre ele, sobre eu dar permissão para ele ficar com Yoko: “You have found her, now go and get her”. Até então eu não conhecia alguém chamado Jude. Mas eu gostava desse nome – em parte, acredito, por conta daquela melancólica canção do Oklahoma!, “Pore Jud Is Daid”.
O que acontece a seguir é que eu começo a adicionar elementos. Quando eu escrevo “You were made to go out and get her”, entra em cena agora outro personagem, uma mulher. Portanto, agora pode ser uma canção sobre um rompimento ou um contratempo romântico. Nesse ponto, a canção deixou de ser sobre Julian. Agora pode ser sobre o relacionamento com essa nova mulher. Acho legal que minhas canções tenham elementos masculinos ou femininos que se universalizam.
E a canção ganhou outro elemento adicional: o refrão. Não era para “Hey Jude” ter essa duração, mas estávamos nos divertindo tanto improvisando no final que se transformou num hino, e a orquestração foi aumentando e aumentando, em parte porque houve tempo para isso.
Aconteceu uma coisa engraçada no estúdio durante a gravação. Achando que todos estavam prontos, eu comecei a canção, mas Ringo tinha escapulido para o banheiro. Então, durante a gravação, eu o senti passando atrás de mim, na ponta dos pés, e ele assumiu a bateria exatamente na parte que ele entrava, sem perder uma só batida. Então, enquanto estamos gravando, estou pensando “O take é este”, e você acaba colocando um pouco mais nele. Estávamos nos divertindo tanto que deixamos escapar um palavrão na metade, quando eu cometi um erro na parte do piano. Você tem que ouvir com atenção para ouvir, mas está ali.
Depois que a mixamos, Mick Jagger ouviu o acetato original da gravação no Vesuvio Club, na Tottenham Court Road. Entreguei uma cópia ao DJ quando cheguei lá e pedi a ele que a tocasse em algum momento da noite para ver como soava. Depois de escutá-la, Mick se aproximou e disse: “Que coisa mais incrível! É como se fossem duas canções!”.
Hey Jude” também foi o primeiro single de nossa nova gravadora Apple, e acredito que se tornou o nosso single de maior sucesso. A canção era muito longa para um single padrão de sete polegadas, então os engenheiros tiveram que fazer uns truques de estúdio com o volume para fazê-la caber num lado, e acabou chegando ao número um nas paradas de quase todos os países. Foi divertido fundar a gravadora. O logotipo da Apple foi inspirado numa pintura de René Magritte que eu tinha comprado, e nas etiquetas dos discos da gravadora colocamos uma maçã verde Granny Smith no lado A e um corte transversal dela no lado B. Algumas pessoas pensaram que a imagem do lado B era um tanto provocante, talvez até pornográfica, mas era só um trocadilho visual com “Apple Corps”.
A partir daí, a canção se tornou um destaque de nossos shows, e o refrão ganhou vida própria. Quando as pessoas me perguntam por que ainda faço turnês, digo que é por causa de momentos de interação como esse. Pode haver plateias de dezenas de milhares de pessoas ou até mesmo centenas de milhares, todas cantando, e isso é um regozijo. A letra é tão simples que qualquer um pode cantar junto!
Assim, “Hey Jude” começou com a minha preocupação com Julian e se transformou num momento de celebração. Também vejo com bons olhos o fato de que as pessoas interpretam as minhas canções a seu modo. Sempre fico feliz quando a letra é um pouco modificada. Quando as pessoas entendem mal uma parte da letra, isso mostra que elas “se apropriaram” da canção, como o pessoal diz. Deixei a canção ir. Agora ela é de vocês. Agora façam com ela o que quiserem. É como se você pudesse carregar a canção em seus próprios ombros.

Paul McCartney, em As Letras: 1956 até o presente

sábado, 6 de dezembro de 2025

Tim Bernardes: Tiny Desk Brasil

Pequena tragédia brasileira

A Bem-Amada queria devorar o coração do Poeta.
Não — disse ele —, só terás um pedacinho. Porque noventa por cento pertence aos Editores.

Mário Quintana, em Caderno H

Um mundo muito bonito...

familiaridade

Ando numa fase um pouco perigosa. É que estou estabelecendo contato com as pessoas com tanta facilidade que alguma ainda me acontece. Nesta fase, todo o mundo ou é meu irmão, ou meu filho, ou meu pai e minha mãe. No último domingo estive em perigo. Eu tentava pegar um táxi, o que nos domingos é mais difícil pois muita gente que nunca anda de táxi resolve sair do sério e tomar. Não encontrei nenhum no lugar onde geralmente acho com facilidade, e resolvi caminhar até um ponto deles: estava vazio, a rua limpa. Fiquei ali mesmo esperando que algum aparecesse. Depois de muito tempo quem apareceu foi um grupo de pré-adolescentes, de uns 14 anos cada, não mais. As duas mocinhas de saia pelo meio das coxas, um dos meninos de cabelos crescidos até metade do pescoço. Junto de mim pararam, e a conversa deles era insolente e falsamente livre. Pensei: estão esperando táxi, quem vai ganhar são eles, pois sempre me recuso a correr, acho feio correr. Pensamento vai, pensamento vem, resolvi perguntar: “Vocês estão esperando táxi?” Resposta em tom malcriado de um deles: “Estamos.” Eu disse: “Mas o primeiro que vier vai ser meu, pois estou aqui há mais tempo que vocês.” O menino cabeludo respondeu com o pior tom de voz: “E por que é que eu...” Interrompi-o: “Por causa do que eu já disse, e porque eu podia ser mãe de vocês e não pretendo disputar táxi com um filho meu.” Eles ficaram por meio segundo me olhando perplexos, e então o menino respondeu com a voz inteiramente obediente e de súbito como uma criança mesmo: “Sim senhora.”
O perigo passara.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Capítulo 12 — Decolando



Se você quer me conhecer de verdade, não me pergunte onde moro, o que gosto de comer ou como prefiro usar meu cabelo, e sim qual é a minha meta de vida, e o que acho que me impede de viver plenamente em prol dessa meta.
THOMAS MERTON

Em determinado momento, acabei recebendo uma bolsa integral para a faculdade com a bolsa de estudos do Preparatory Enrollment Program. O PEP, como chamamos, era um programa complementar ao Upward Bound. Comecei em um local já conhecido, a Rhode Island College, morando no mesmo dormitório feminino onde tinha passado os verões no ensino médio e visitado minha irmã Deloris no ano escolar — o Browne Hall. Fui para a faculdade aos 17 anos e, como muitos jovens, não era madura, mas com certeza pensava que era.
Estava empolgada para sair de casa. Trabalhei por isso e mereci. Quando cheguei, desfiz as malas, me instalei e, em seguida, caí em uma depressão muito, muito profunda, provavelmente a mais profunda pela qual já passei. Desde então, nunca mais tive uma assim. Não com a mesma intensidade. Eu estava deprimida por estar longe da minha irmãzinha Danielle, mas por si só essa separação não dá conta de explicar a minha depressão.
Desde os 14 anos, tinha direcionado todos os meus esforços para a atuação, para me tornar uma artista. Quando me vi na faculdade, ainda não me sentia livre para fazer aquilo que eu amava. Minha mente era como uma estação na qual dois trens estavam partindo ao mesmo tempo. Um deles era minha carreira acadêmica; estava nos trilhos me formar no ensino médio, entrar na faculdade, obter meu diploma de bacharel em Artes e me tornar uma artista. Mas o outro trem deixando a estação voltava para o local do trauma de onde eu saíra, um local onde fui ferida, onde não acreditava em mim mesma, não tinha noção de quem era. Eu não entendia o que era amor-próprio. Nunca sentia que eu era o suficiente.
Fui para a faculdade me perguntando o que muitos artistas perguntam:Como vou ganhar dinheiro? Como vou me sustentar? Quando eu não enxergava um caminho, pensava: Não posso voltar para casa. Não vai dar certo trabalhar como artista. Tenho que ser outra coisa. Atuar é algo que vou fazer no tempo livre. Então fiz várias matérias de inglês, que eu amava, e decidi que seria professora. No entanto, parte de mim deve ter tido outros pensamentos, porque mergulhei em uma enorme tristeza.
A depressão surgiu por desistir do meu sonho.
O Browne Hall, meu dormitório, era todo feminino. Era dividido em vários setores de 12 quartos, cada um com uma cama de solteiro, uma escrivaninha e um armário pequeno. O prédio tinha uma porta da frente e uma nos fundos. Quando alguém chegava à porta da frente, quem quer que estivesse cuidando da recepção chamava a aluna e dizia: “Você tem visita.” Eu estava me adaptando à minha nova vida e, apesar do peso da depressão, me sentia feliz por estar sobrevivendo bem longe de casa. Tinha meu quarto, um lugar para tomar banho, comida, aquecimento.
Uma noite, logo no primeiro ano, recebi uma ligação da minha irmã Anita, que estava chorando.
Estamos na porta dos fundos.
Saí para encontrar Anita em lágrimas e grávida de quase oito meses da minha primeira sobrinha, Brianna. MaMama estava com ela, também chorando, o rosto ensanguentado, ferida. Minha irmãzinha Danielle fedia a urina.
Aquele momento me transportou de volta para o trauma com o qual eu crescera, que havia me catapultado para fora do meu corpo. Meu pai tinha atacado minha mãe outra vez, e elas tiveram que sair de casa às pressas. Então dirigiram até a Rhode Island College no carro velho de Anita porque não tinham para onde ir.
Gente, vocês não podem ficar aqui. Não posso deixar ninguém dormir no meu quarto. — Entrei em pânico. Não tinha ideia do que fazer. — Vão me expulsar do dormitório.
Então teremos que voltar para casa — disse Anita. — Ele enlouqueceu. Pode matar a mamãe.
Não conseguia me mexer. De novo, estava paralisada. Mesmo assim, consegui responder:
Não tenho dinheiro. Não sei o que fazer.
MaMama chorava, aterrorizada.
Por que não deixa Danielle ficar aqui esta noite?
Danielle também chorava. Foi horrível. Eu a levei para dentro. Mal tinha dinheiro para a lavanderia do dormitório, mas recebi minha irmã mesmo assim, tentei lavar as roupas dela, deixei que tomasse um banho. Minhas melhores intenções não se equiparavam aos meus recursos. Ela dormiu comigo na minha cama de solteiro; ela em uma ponta e eu na outra. Meu dinheiro mal dava para as refeições do fim de semana, quando o refeitório estava fechado, mas de alguma forma a alimentei. Era tudo o que eu podia fazer. Estava tentando encontrar meu caminho, me estabelecer e ainda salvar minha família.
Era como tentar salvar outra pessoa quando eu mesma estava me afogando. Um dos meus maiores arrependimentos é o trauma que ­Danielle teve que passar, e minha falta de habilidade para fazer algo além da cura temporária daquela noite. Hoje, com uma conta bancária gorda, recursos, queria poder voltar àquela época. Se eu pudesse, viajaria no tempo e afastaria minha irmã de tudo, bem naquela ocasião.
Ela me ligava pelo menos 15 vezes por dia. Minha colega de dormitório dizia: “Viola! É a sua irmãzinha.” Ela quase sempre estava aos prantos, dizendo: “Venha me buscar, Vahlee.” Eu sempre tinha que dizer: “Danielle, não posso ir. Estou muito longe.” Ela começava a chorar ou eu ouvia os ataques de raiva embriagados do meu pai ao fundo, enquanto ela chorava e dizia: “Por favor, venha me buscar.”
Às vezes, principalmente nos fins de semana, Deloris e eu íamos para casa ficar com ela, juntávamos dinheiro para comprar sorvete Heavenly Hash, salada grega e macarrão concha com molho de tomate Prego. ­Danielle ficava tão feliz! Ela corria para nós como Celie em A cor púrpura ao ver a irmã, Nettie. Aquela reação de quando sentimos tanto a falta de alguém e, enfim, a pessoa está bem diante de você. Nós comíamos e víamos A ilha da fantasia e O barco do amor.
Tattoo, personagem interpretado por Hervé Villechaize, corria para um farol quando via o avião indo em direção à ilha e fazia soar o sino, gritando: “O avião! O avião!” Danielle amava tanto essa parte que dizia, entre garfadas de macarrão: “Ele vai dizer ‘O avião! O avião!’.” Nós a provocávamos: “Ele não vai, não. Quem te falou isso?” E ela rebatia: “Presta atenção, você vai ver.” Ele dizia as palavras e nós ficávamos boquiabertas. Olhávamos para Danielle com espanto, e ela cruzava os braços como se dissesse “Eu avisei”. Esse era o nosso ritual. Íamos para casa porque amávamos muito nossa irmãzinha, e ela nos amava também. Então, na segunda-feira, voltávamos para a faculdade.
Minha irmã mais velha Dianne obteve toda premiação imaginável em sua jornada: a Sociedade Nacional de Honras, a Sociedade de Honra de Rhode Island, a All-State Basketball. Além disso, era uma grande atriz e cantora. Conseguia fazer de tudo. Mulheres negras bem-sucedidas quase normalizam o excesso de conquistas. Dianne definitivamente era assim.
Ela começou a atuar na Rhode Island College antes de pedir transferência para a Howard University. Dianne ainda queria se tornar atriz, até descobrir o quanto era difícil. “Quero ter plano de saúde”, disse ela.
Embora meus pais não tenham ido para a faculdade — não terminaram o ensino médio —, Dianne havia nos influenciado a pensar que Nós. Vamos. Para. A. Faculdade. Ela despertou em nós a noção de que, se não tivéssemos diploma, se não encontrássemos uma profissão, se não tivéssemos uma meta, se não tivéssemos atitude, seríamos como nossos pais. Senti que, se eu não fosse para a faculdade, se não conseguisse meu diploma, se não fosse excelente, a realidade dos meus pais seria a minha. Não havia meio-termo. Ou você conseguia ou fracassava.
Eu os amava muito, mas não queria levar uma vida de pobreza, alcoo­lismo e violência. Achava que só tinha duas opções: ser bem-sucedida ou afundar de vez. Não havia meio-termo. Eu não fazia ideia de que tinha as ferramentas para me recuperar caso falhasse. Não fazia ideia de que haveria momentos difíceis seguidos de alegria, ou que às vezes as coisas não iriam bem, mas que o fracasso não seria permanente. Esse pensamento emocionalmente saudável não foi passado para mim. Eu só conhecia segredos, omissão, ser bem-sucedida a qualquer custo, ter um excesso de conquistas. Era conseguir ou fracassar. Era nadar ou afundar.
Não sei muito bem como encontrei minha verdade, mas tenho certeza de que outras pessoas que se importavam comigo tiveram muito a ver com isso: os conselheiros no programa Upward Bound e minha irmã Deloris, que perguntava o tempo todo: “Por que você não está atuando?” Até que um dia, no meu segundo ano, falei: “Quer saber? Vou tentar.” Foi quando grande parte da depressão passou. Minha cura era a coragem. A coragem de ousar, arriscar errar. Decidi me graduar em teatro e ser atriz.
Fiz muitos amigos na faculdade. Minhas colegas de dormitório eram o meu grupo: Jodi, Chris, Jane e principalmente Terri Noya, porque nós duas vínhamos de Central Falls. Noya era portuguesa e, assim como eu, de origem humilde. Cheril, a assistente de residência, tinha paralisia cerebral e precisava de todo um equipamento para se locomover. Ela era maravilhosamente durona.
Elas eram um grupo heterogêneo de garotas com visão de futuro, enviadas por Deus para me proteger. Sentia que todas ali acreditavam em mim. Nós nos amávamos. Nós nos apoiamos na morte de pais, em casamentos, no nascimento de filhos. Uma das nossas colegas de dormitório engravidou quando ainda estávamos estudando e teve que desistir da faculdade, mas nós a apoiamos.
Tivemos bons momentos juntas, mas aquele primeiro ano foi uma transição difícil. Bebi três vezes no primeiro ano, e fui pega todas as vezes. Saía com amigos e bebia, mas não era a minha praia e eu deveria ter respeitado isso. É como nossos pais diziam quando jovens: “Cabeça dura, bunda mole.” Isso significa que é necessário aprender algumas lições da maneira mais difícil.
O momento da minha vida em que fiquei mais bêbada foi durante a faculdade. Algumas das minhas colegas de quarto e eu fomos para o lado leste perto da Universidade Brown e tomamos shots de tequila e bebemos cerveja na Spats. Quando me dei conta, estava saindo de lá cambaleando. Voltei para o dormitório, vomitei e tive ressaca por uma semana. Não sei qual era a minha praia, mas não era beber, e com certeza não era namorar nem transar. Os momentos de diversão para mim eram quando as garotas do dormitório se sentavam na sala comum e conversavam… sobre tudo.
Tive uma experiência interessante na faculdade, onde não me encaixei nem com as pessoas brancas, nem com as negras. Harambee era a Aliança dos Estudantes Negros. Embora conhecesse muitas pessoas negras, tivesse ido à Feira de Moda Negra e tudo mais, não me encaixava com eles por ser de Central Falls e eles de South Providence, Providence ou Middletown, regiões onde havia uma população negra maior. Era como se eu não tivesse minha carteirinha de negra.
Eu era retinta, não usava roupas descoladas e não tinha aquela autoconfiança que chamam de swag. Nadinha. Meu Deus, eu vinha de uma cidade pequena de população predominantemente branca e que agora ainda tinha mais pessoas latinas. Eu sequer sabia que precisava ter um comportamento específico para sentir que pertencia à minha raça. Mesmo assim, minha “carteirinha” era negra demais para me juntar às pessoas brancas. Fiquei perdida naquele limbo.
Foi uma batalha seguir com a faculdade, mesmo depois de sobreviver à depressão do primeiro ano. Estava sozinha. Havia um programa de refeições durante a semana, mas não nos fins de semana. Aí estava: a questão da comida de novo. Havia algo sobre a incapacidade de conseguir comida que me fazia regredir para a minha infância ferrada. Sentia como se estivesse procurando comida desde a tarde de sexta até a segunda de manhã.
Imagine como é não contar com um plano alimentar nos fins de semana? Pior, não ter uma família que possa enviar comida para você ou uma casa para usar a cozinha ou a máquina de lavar. Imagine não ter um frigobar em seu dormitório abastecido com comida para os dias em que o refeitório está fechado. O resultado: as mazelas da fome e da pobreza.
Para combater isso, sempre tive muitos empregos. Trabalhei como assistente de residência e conselheira no programa de aconselhamento da faculdade durante o verão. Sempre trabalhei. No último ano, tive quatro empregos enquanto estudava em tempo integral. Trabalhava na biblioteca da faculdade. Trabalhava na recepção da Rhode Island College. Continuei trabalhando na Brooks Drugs, em Central Falls. E tinha outro emprego no campus.
Trabalhar na Brooks Drugs me fazia ter que sair do campus, pegar um ônibus e andar até Central Falls. Imagine precisar trabalhar em tempo integral, mas sem ter um carro, pegando, então, três ou quatro conduções numa temperatura abaixo de zero para conseguir ganhar uma merreca, suficiente apenas para comer apenas nos fins de semana. Em seguida, você precisa pegar três ou quatro ônibus de volta para o dormitório para chegar às aulas da segunda de manhã. Precisa se formar; precisa estudar. A sensação é de estar em um moinho irrefreável.
Até hoje não gosto de pegar ônibus. Morei em Nova York por 13 anos e pegava o trem o tempo todo, nunca o ônibus. Durante a faculdade, tinha que andar no frio congelante por pelo menos dois quilômetros e meio até o ponto de ônibus que ficava fora do campus. Era isso ou ter que esperar o ônibus que passava na Rhode Island College, e os horários dele não eram confiáveis. Na maior parte do tempo, eu acabava caminhando mesmo até o ponto de ônibus no frio congelante.
A situação era especialmente atroz quando estava frio, porque eu precisava passar pela entrada dos fundos da faculdade, pelas quadras esportivas até a Smith Avenue, onde havia pouca iluminação, e esperar o ônibus que me levava até o centro de Providence. Então esperava de novo, em um ponto maior, o ônibus que me levaria do centro de Providence até o centro de Pawtucket. Geralmente não tinha dinheiro para a última parte do trajeto ou, quando tinha, perdia o ônibus de Pawtucket para Central Falls porque, como eu disse, o horário não era confiável. Eu andava uns dois ou três quilômetros do centro de Pawtucket até a Brooks Drugs, em Central Falls. Depois do trabalho, ia para o apartamento dos meus pais, dormia no chão e voltava para a faculdade na manhã seguinte ou pegava o turno de alguém.
Trabalhar duro é ótimo quando se é motivado por paixão, amor e entusiasmo. Mas trabalhar duro motivado por privação não é nada agradável.
Muito da faculdade, para mim, eram risos e conexão com as colegas de dormitório e outras amizades que comecei a fazer, tudo misturado ao isolamento e à maldita dor. Eu ainda sentia que precisava esconder minhas verdades mais profundas para me encaixar. Recriei a mim mesma como essa “outra” pessoa. Eu me imaginei como uma geek do teatro fabulosa de Central Falls, que conquistava muitas coisas e era engraçada e excêntrica. De vez em quando, me sentava com as alunas negras no refeitório, mas na maior parte do tempo eu me sentava com o meu grupo, minhas colegas de dormitório, ou sozinha.
Na época, a Rhode Island College tinha menos de 1% de “outros”. “Outros” se referia a alunos de outros grupos étnico-raciais: latinos, asiáticos, negros, descendentes de povos do Oriente Médio. Os demais eram brancos. Havia algo em torno de nove mil alunos. Eu era uma garota perdida tentando me encontrar.
Não ajudava o fato de a faculdade ter fraternidades e repúblicas formadas por arruaceiros brancos. A Kappa Epsilon era uma delas. Digo isso porque alguns de seus membros eram abertamente racistas. Muitos anos depois do meu período na faculdade, li que alguns pesquisadores associam a fundação da Ku Klux Klan à fraternidade Kappa Alpha. Pensando agora, alguns dos membros da Kappa Epsilon na Rhode Island College devem ter sido próximos do grupo supremacista, visto que a narrativa de seus atos explicitamente racistas era perpetuada pelos membros. Acho que eles acreditavam que as pessoas brancas entravam na faculdade por mérito, enquanto estudantes negros e multirraciais eram meramente beneficiários de ações afirmativas.
Não havia entendimento cognitivo da real complexidade da questão de raça na faculdade ou em seu processo de admissão. Como se destacar quando você é do Sudeste Asiático, muitíssimo inteligente, trabalha duro, mas passou dois anos na selva do Camboja, dois anos em um campo de refugiados e viu sua família ser massacrada antes de chegar aos Estados Unidos? Sem o programa de aconselhamento, não haveria nenhum estudante multirracial, porque já começávamos com um enorme déficit. Ainda mais destrutiva era a visão de que não éramos merecedores. Esse é o alicerce sobre o qual foi construído o DNA dos Estados Unidos, e ao unir a isso desafios pessoais como pobreza, violência, trauma e vulnerabilidade, pode se tornar uma sentença de morte. Anos mais tarde, Frank Sanchez foi nomeado presidente da instituição e transformou completamente o censo demográfico da faculdade.
Durante meu tempo na Rhode Island College me concentrei sobretudo nas aulas de teatro: estudo de personagem, voz e articulação, aulas criativas, crítica e história do teatro — todos os aspectos dessa arte. Nas outras aulas acadêmicas, nem tanto. Eu sentira um desconforto enorme até decidir que a atuação era o caminho que eu queria seguir. Era o que me fazia feliz. O que me trazia alegria. Mas não era possível trabalhar como atriz em Rhode Island. Não dava. Como conseguir um trabalho? Como conseguir um teste ou um agente? Estava perto de começar minha vida profissional e precisava descobrir.
A área da vida que é paralela ao trabalho, ao estudo, é o lar. Seu centro emocional está enraizado ali. Para mim, o resultado foi estar sempre atrasada para a aula, não estar tão preparada quanto poderia. Estava sempre correndo atrás, sempre um pouquinho desorganizada. Faltavam-me habilidades de organização até no meu quarto. Não sabia como me vestir nem como me apresentar. Eu era considerada autêntica porque não sabia o que ou quem ser. Mas ser autêntica e ser transparente são duas coisas diferentes. Ser autêntica é usar sapatos de 15 dólares e ter orgulho de usá-los. Ser transparente é dizer: “Estou sempre ansiosa. Nunca sinto como se me encaixasse. Preciso de ajuda.” Eu não era transparente.
Nunca tinha a sensação de estar em meu corpo. As pessoas provavelmente sentiam que eu estava, porque eu nunca falava sobre o alcoolismo do meu pai ou sobre crescer pobre e passando fome. Guardava segredos enormes. Sentia que eu mesma era um segredo enorme. Uma grande parte de mim, minha patologia, era um segredo enorme. O que mostrava para o mundo era uma garotinha negra de Central Falls que se esforçava para conquistar muitas coisas. E eu era essa garotinha.
Quando decidi que o teatro era o que eu queria, mergulhei na atuação. Acordei um dia e falei “Só vai, Viola”. Fiz testes e consegui dois papéis na Main Stage Productions: Hot L Baltimore, de Lanford Wilson, e ­Romeu e Julieta. Eu era a prostituta April em Hot L e a babá em Romeu e Julieta. Por minha atuação como April, fui indicada para o Irene Ryan, o maior prêmio de atuação da faculdade. Também criei um espetáculo que apresentei durante anos. Fazia todos os 17 personagens. Todos os personagens desde Celie de A cor púrpura, passando por Pilatos em A canção de Salomão, de Toni Morrison, até Joana d’Arc. Cheguei a apresentar um número de improvisação em que criava uma peça cômica baseada em palavras que a plateia me dizia espontaneamente.
O espetáculo que apresentei sozinha foi meu projeto de conclusão de curso no último ano, e o propósito era mostrar que eu era versátil, que podia me transformar tanto quanto meus colegas brancos. Na época, senti que o espetáculo era um verdadeiro acontecimento para me mostrar ao mundo. Mas, pensando agora, o objetivo era uma merda. Como assim, você cria um espetáculo para provar que tem valor?
Havia uma barganha, um fator de desespero atrelado. Permita-me provar que tenho talentoem vez de apenas ser eu mesma. Esqueça tudo sobre aquela garota negra que entrou na sala para fazer o teste. Deixe-me usar meu treinamento e técnica para fazê-lo “esquecer” que sou negra. O fardo desse obstáculo era muito mais pesado do que aquele carregado pelos meus colegas brancos. Alunos brancos só tinham que aparecer e atuar bem. Nenhuma transformação era necessária para fazer os outros acreditarem que aquela pessoa de Rhode Island podia interpretar um russo em uma peça de um autor russo. Eles apenas tinham que ser brancos. Esse obstáculo era o tabu gritante e muitas vezes presente nos diversos cômodos em que entrei durante minha vida.
A Rhode Island College era conhecida por suas excelentes produções musicais, mas nunca participei de nada disso. Na verdade, se perguntados, muitos dos estudantes de teatro da época teriam poucas lembranças de mim. Encontrei mentores em Bill Hutchinson, Elaine Perry e David Burr. Em geral, participava de projetos da Black Box Productions, do Readers Theatre e do Summer Theatre fora do campus.
Uma implicância que tenho como estudante de teatro nos anos 1980 é esta: o teatro acadêmico deveria ser apenas isso, acadêmico. A faculdade não deveria funcionar como a Broadway ou o teatro regional cujo principal objetivo é lucrar. O propósito do teatro acadêmico é treinar e preparar o ator-estudante. O propósito é dar a ele ferramentas para trabalhar em nível profissional. É para isso que pagamos mensalidade. Havia e há estudantes de teatro que nunca participaram de uma grande produção teatral. Como aprender sem a prática?
Me graduei depois de cinco anos porque levei muito tempo para escolher meu curso. Tive que puxar outras disciplinas para recuperar o tempo perdido. Estava no campus o tempo todo.
No meu último ano, usei o intercâmbio nacional para ir à California Polytechnic University, em Pomona. Fui porque queria sair de Rhode Island, me afastar do inverno frio. Queria um cenário diferente. A maior surpresa da minha vida foi que, naquele único semestre, floresci. Atuei em Mrs. Warren’s Profession, uma peça de George Bernard Shaw. Fiz parte de um grupo de improvisação. Fiz uma aula para falar em público que mudou a minha vida. Fui muito bem academicamente e fiz amigos incríveis. Foi a primeira vez que fiz entrelace no cabelo, o que foi muito importante para mim na época. Naqueles tempos, eu me sentia bonita; muito bonita. Mantive o bendito entrelace até que a linha da costura ficasse pendurada no ombro.
Eu amava o programa de teatro da Cal Poly. Me encaixava perfeitamente entre os geeks do teatro. Tinha uma ótima colega de quarto, Eva Rajna, uma mulher judia alta e maravilhosa da Hungria, cujo pai tinha uma padaria em Sunnyvale, Califórnia. Era uma família muito agradável. Ele lhe enviava caixas de pães, que nós devorávamos. Na época, eu conseguia comer quantidades enormes de comida.
Fora do teatro, eu ainda era extremamente tímida, deslocada e uma introvertida meio desengonçada. Evitava conversas, evitava encontros românticos, ainda não tinha namorado nem transado. Tive que me esforçar um bocado para confiar nas pessoas, me abrir para elas. Por conta disso, meu grupo era sempre pequeno.
Voltei renovada para a Rhode Island College para cursar o último semestre. Viajar quase cinco mil quilômetros e me jogar bem na boca do inferno que era a Califórnia me obrigou a me esforçar para sobreviver. Entrei no rol dos melhores alunos pela quarta vez.
Um mês antes da formatura, fiz uma audição para o programa de pós-graduação para estudantes de teatro chamado de audições Urta (University Resident Theatre Association). Mesmo com esse título, ninguém conseguiu trabalho nos teatros locais após aquelas audições. É mais um exemplo da brutalidade e um aspecto nebuloso da profissão. No entanto, algumas faculdades me cortejaram para seus programas de estudos teatrais. De novo, eu era um caos contraditório. Eu era, por um lado, valente, corajosa, capaz de ser independente e me manter sozinha. E, ao mesmo tempo, tinha conflitos emocionais, não estava confortável com a minha autenticidade, na minha própria pele.
Como a Viola corajosa, valente e independente, peguei o trem para minha audição em Nova York sem qualquer instrução ou pesquisa prévia. Só fui e participei da audição, e foi ótimo. Meu nervosismo não foi um problema, pois pude usá-lo como combustível para apresentar meus monólogos, que eram de Celie em A cor púrpura e Martine de As eruditas, de Molière.
Era o monólogo de Celie que sempre me abria as portas. Mais tarde, este monólogo me fez entrar na Juilliard e em várias competições do ­Readers Theatre, na Nova Inglaterra. Para mim, pareceu conveniente o fato de Celie ser tão incompleta, não totalmente formada. Se não fosse pelo amor da irmã e de Shug Avery, ela nunca teria enxergado o próprio valor.
Quando estava no palco, eu podia absorver os aplausos, as lágrimas e as palavras da plateia dizendo que “ficaram tão emocionados” e “nunca viram uma apresentação como aquela”. Ofereciam-me uma espécie de amor-próprio externo temporário. Mas isso logo passava, porque amor-próprio externo, por definição, não é amor-próprio. Então eu logo voltava ao mundo normal onde me sentia esquisita. Conseguia lidar com a minha peculiaridade, dor e timidez quando podia colocar tudo em um personagem. Era aceita de uma maneira que me fazia sentir ainda mais esquisita e não aceita na vida real.
Eu me graduei com um diploma em teatro em 1988. Toda a minha família foi para a formatura na Rhode Island College — minhas quatro irmãs e meu irmão, meus pais e até a minha avó, Mozell Logan, que tinha viajado da Carolina do Sul. Eles se sentaram nos bancos e gritaram como banshees* quando recebi meu diploma. Minha avó ficou dizendo: “Estou tão orgulhosa de você, querida. A vovó te ama tanto.”
Ela era pequena e retinta. Lembro de pensar: Por que a estou encarando tanto? Algo nela me atraía e ficou tatuado em minha memória. Era sua voz. Profunda, cristalina, melodiosa. Eu queria congelar aquele momento na minha memória. Era a sua voz que se destacava para mim. Ela era dona de uma voz que a maioria dos atores mataria para ter. Eles gastavam milhares de dólares para alcançá-la. Era régia. Era dominante. Fiquei surpresa. Soava exatamente como… EU!

* Banshee é o nome atribuído a fadas na mitologia celta, principalmente na Irlanda. Esse ente fantástico representaria o poder que a voz tem no ser humano, já que geralmente as banshees podiam apenas ser ouvidas e muito raramente vistas. Dentro da mitologia irlandesa, elas são seres cujos gritos anunciam a morte. [N. da E.]

Viola Davis, in Em busca de mim