Ana disse não. Com veemência.
“Assim não quero.”
Meu ditado não fazia milagre nem em
casa de relojoeiro. O que poderia fazer? Para se ter uma filha
precisa-se de dois, para adotar também. Não me lembro de como foi o
jantar, do que fizemos depois, se fizemos alguma coisa, mas mais
tarde, na cama, cada um virado para um lado, ela disse, a voz tímida
cortando o negrume do quarto:
“Como seria?”
Horas depois. A retomada depois de
longa pausa me surpreendeu. “Não sei”, respondi, “mas posso me
informar. Acredito que precisamos entrar com um processo de adoção
e esperar.”
“Não é isso”, ela disse, ainda
sem se mexer, quase como se não fosse ela quem estivesse falando,
considerando. Eu já virara, estava sentado na cama.
“E o que é?”, perguntei, tentando
ser gentil, tom de voz afável, mão acarinhando os ombros tensos
dela.
“Como seria ter uma filha de um
ventre não judeu?”
O assunto me pareceu menor, quase
ínfimo. Com que direito um casal que perdeu cinco filhos na barriga
pode ser questionado sobre o assunto? Então sofrimento acumulado não
conta numa hora dessa?
Mas não disse nada.
Nem Ana.
Por um tempo.
Até que sentou.
E disse: “Terá de ser em segredo.”
Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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