quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

“Terá de ser em segredo”



Ana disse não. Com veemência.
Assim não quero.”
Meu ditado não fazia milagre nem em casa de relojoeiro. O que poderia fazer? Para se ter uma filha precisa-se de dois, para adotar também. Não me lembro de como foi o jantar, do que fizemos depois, se fizemos alguma coisa, mas mais tarde, na cama, cada um virado para um lado, ela disse, a voz tímida cortando o negrume do quarto:
Como seria?”
Horas depois. A retomada depois de longa pausa me surpreendeu. “Não sei”, respondi, “mas posso me informar. Acredito que precisamos entrar com um processo de adoção e esperar.”
Não é isso”, ela disse, ainda sem se mexer, quase como se não fosse ela quem estivesse falando, considerando. Eu já virara, estava sentado na cama.
E o que é?”, perguntei, tentando ser gentil, tom de voz afável, mão acarinhando os ombros tensos dela.
Como seria ter uma filha de um ventre não judeu?”
O assunto me pareceu menor, quase ínfimo. Com que direito um casal que perdeu cinco filhos na barriga pode ser questionado sobre o assunto? Então sofrimento acumulado não conta numa hora dessa?
Mas não disse nada.
Nem Ana.
Por um tempo.
Até que sentou.
E disse: “Terá de ser em segredo.”

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

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