Em
frente a todas as farmácias da cidade havia dezenas de carros
velhos, com crianças brigando no banco de trás. Eu via as mães
delas dentro da Payless, da Walgreen’s ou da Lee’s, mas nós não
nos cumprimentávamos. Mesmo mulheres que eu conhecia… agíamos
como se nunca tivéssemos nos visto. Esperávamos na fila enquanto as
outras compravam xarope para tosse de hidrato de terpina com codeína
e assinavam num enorme livro de registro para finalizar a compra. Às
vezes assinávamos nosso nome verdadeiro, outras vezes nomes
inventados. Dava para perceber que, como eu, elas não sabiam o que
era pior. Às vezes eu via as mesmas mulheres em quatro ou cinco
farmácias diferentes no mesmo dia. Outras esposas ou mães de
viciados. Os farmacêuticos compartilhavam da nossa cumplicidade,
nunca demonstrando que nos reconheciam de compras anteriores. Salvo
uma vez em que um jovem farmacêutico da Fourth Street Drugs me
chamou de volta ao balcão. Eu fiquei apavorada. Pensei que ele fosse
me denunciar. Ele era muito tímido e ficou vermelho quando se
desculpou por estar se intrometendo na minha vida. Disse que sabia
que eu estava grávida e que tinha ficado preocupado por eu estar
comprando tanto xarope para tosse. Explicou que o xarope tinha um
teor alto de álcool e que eu poderia facilmente me tornar alcoólatra
sem me dar conta. Eu não disse que o xarope não era para mim. Disse
obrigada, mas comecei a chorar assim que dei as costas e saí
correndo da farmácia, chorando porque queria que Noodles se livrasse
das drogas antes que o bebê nascesse. “Por que é que você está
chorando, mamãe? A mamãe está chorando!” Willie e Vincent
estavam pulando no banco de trás. “Senta!”, falei, esticando o
braço para trás e dando um tapa na cabeça de Willie. “Senta. Eu
estou chorando porque estou cansada e vocês dois não ficam
quietos.”
A
polícia tinha feito uma grande batida na cidade e outra maior ainda
em Culiacán, então não havia heroína em Albuquerque. Noodles
tinha me dito que ia segurar as pontas só com o xarope para tosse e
parar de se drogar, para estar limpo quando o bebê chegasse dali a
dois meses. Eu sabia que ele não ia conseguir. Ele nunca tinha
ficado tão viciado antes e agora, ainda por cima, tinha arrebentado
a coluna trabalhando numa obra de construção. Pelo menos estava
recebendo auxílio-doença.
Ele
estava de joelhos, falando, tinha engatinhado até o telefone. Eu
sei, eu sei, eu fui às reuniões. Eu também estou doente, sou uma
facilitadora, uma coviciada. Só o que posso dizer é que sinto amor,
pena, carinho por ele. Ele estava tão magro, tão doente. Eu faria
qualquer coisa para que ele não sofresse daquele jeito. Ajoelhei e
pus os braços em volta dele. Ele desligou o telefone.
“Porra,
Mona, pegaram o Beto”, ele disse. Depois me beijou e me abraçou,
chamou os meninos e os abraçou também. “Ei, meninos, deem uma mão
pro seu velho, sejam as minhas muletas pra eu conseguir chegar até o
banheiro.” Quando os meninos saíram, eu entrei e fechei a porta.
Ele estava tremendo tanto que eu tive que entornar o xarope dentro da
boca dele. O cheiro me deu ânsia de vômito. O suor e as fezes dele,
o trailer inteiro fediam a laranja podre por causa do xarope.
Preparei
o jantar para os meninos e eles ficaram vendo O agente da UNCLE na
televisão. Todos os meninos da escola usavam calça Levi’s e
camiseta, menos Willie. Ele estava na terceira série e usava calça
preta e camisa branca. Penteava o cabelo como o cara louro da série
de televisão. Os meninos dormiam numa cama-beliche num quartinho
minúsculo. Noodles e eu dormíamos no outro quarto. Eu já tinha um
moisés ao pé da nossa cama, fraldas e roupas de bebê em todos os
cantos vagos do trailer. Nós éramos donos de um terreno de dois
acres em Corrales, perto da vala limpa, num bosque de choupos. No
início tínhamos planos de começar a construir nossa casa de adobe,
plantar uma horta, mas logo depois que compramos o terreno Noodles se
viciou de novo. A maior parte do tempo ele continuou trabalhando em
obras, mas nada aconteceu em relação à nossa casa e agora o
inverno estava chegando.
Fiz
uma xícara de chocolate quente e fui me sentar no degrau, do lado de
fora. “Noodles, vem ver!” Mas ele não respondeu. Ouvi o barulho
de outra tampa de xarope sendo aberta. O pôr do sol estava
espetacular, cheio de cores berrantes. As imensas montanhas Sandia
estavam de um tom forte de rosa e os rochedos ao pé delas,
vermelhos. Choupos amarelos refulgiam na margem do rio. Uma lua cor
de pêssego já começava a raiar. O que havia comigo? Eu estava
chorando de novo. Detesto ver coisas lindas sozinha. Então ele veio,
beijou meu pescoço e pôs os braços em volta de mim.
“Você
sabia que elas são chamadas de Sandias porque têm um formato
parecido com o de melancias?”
“Não”,
eu disse, “é por causa da cor delas.” Tínhamos tido essa
discussão no nosso primeiro encontro e depois mais centenas de
vezes. Ele riu e me beijou, carinhoso. Estava bem agora. Isso é que
é horrível nas drogas, pensei. Elas funcionam. Ficamos sentados lá,
vendo bacuraus darem rasantes sobre o campo.
“Noodles,
não tome mais nenhum xarope. Eu vou guardar o resto e dar pra você
só quando você estiver passando mal, tá bem?”
“Tá
bem.” Ele não estava me ouvindo. “O Beto estava indo comprar
droga em Juárez, da La Nacha. O Mel está lá. Ele vai experimentar
a droga, mas não tem como trazer. Não pode atravessar a fronteira.
Eu preciso que você vá. Você é a pessoa perfeita pra isso. É
anglo-saxã, está grávida e tem cara de boazinha. Você parece uma
boa moça.”
Eu
sou uma boa moça, pensei.
“Você
vai de avião pra El Paso, pega um táxi para atravessar a fronteira
e depois pega um avião pra voltar. Tranquilo.”
Eu
me lembrei da vez em que fiquei esperando no carro em frente ao
prédio onde La Nacha morava, de sentir medo naquele bairro.
“Eu
sou a pior pessoa pra isso. Não posso deixar as crianças. Não
posso ir pra cadeia, Noodles.”
“Você
não vai pra cadeia. Aí é que tá. A Connie pode ficar com os
meninos. Ela sabe que você tem família em El Paso. Você pode dizer
que houve algum tipo de emergência. Os meninos vão adorar ficar na
casa da Connie.”
“E
se a polícia me parar, perguntar o que eu estou fazendo lá?”
“A
gente ainda tem a identidade da Laura. Ela parece com você, talvez
não seja tão bonita, mas vocês duas são louras de olhos azuis.
Você leva um pedacinho de papel com o nome ‘Lupe Vega’ e o
endereço do apartamento ao lado do da Nacha. Diz que está
procurando sua empregada, que ela não apareceu, que ela está te
devendo dinheiro, alguma coisa assim. É só você se fingir de boba,
fazer com que eles te ajudem a procurar por ela.”
Acabei
concordando em ir. Ele disse que Mel estaria lá e que era para eu
prestar atenção quando ele fosse experimentar a droga. “Você vai
saber se é da boa.” Sim, eu conhecia a cara de quem estava tendo
um bom barato. “Aconteça o que acontecer, não deixe o Mel sozinho
na sala. Mas saia de lá sozinha, não saia junto com ninguém, nem
com o Mel. Peça pro motorista do táxi voltar para pegar você uma
hora depois. Não deixe que eles chamem um táxi pra você.”
Eu
me arrumei, liguei para Connie, disse a ela que o meu tio Gabe tinha
morrido em El Paso e perguntei se ela podia ficar com os meninos
naquela noite e talvez também no dia seguinte. Noodles me deu um
envelope grosso, cheio de dinheiro, fechado com fita adesiva. Arrumei
uma mochila para os meninos. Eles ficaram felizes de ir para lá. Os
seis filhos de Connie eram como primos. Quando eu os levei até a
porta, Connie os fez entrar, depois saiu para a varanda e me abraçou.
Seu cabelo preto estava enrolado em bobes de metal, como um penteado
de teatro kabuki. Ela estava usando um short jeans e uma camiseta,
parecia ter catorze anos.
“Você
não precisa mentir pra mim, Mona”, ela disse.
“Você
já fez isso alguma vez?”
“Já,
várias vezes. Mas não depois que tive filhos. Você não vai fazer
isso de novo, aposto. Tome cuidado. Eu vou rezar por você.”
Ainda
estava quente em El Paso. Desci do avião e fui andando pela pista
alcatroada, que afundava debaixo dos meus pés de tão mole, sentindo
aquele cheiro de poeira e sálvia de que me lembrava da minha
infância. Pedi ao motorista do táxi que me levasse até a ponte,
mas antes desse uma volta ao redor do lago dos jacarés.
“Jacarés?
Aqueles jacarés velhos já morreram faz anos. Quer dar uma volta na
praça assim mesmo?”
“Quero”,
respondi. Então, me recostei e fiquei vendo os bairros passarem pela
janela. Algumas coisas tinham mudado, mas, quando criança, eu tinha
andado tanto de patins por aquela cidade inteira que tinha a sensação
de conhecer cada velha casa, cada árvore. O bebê estava chutando e
se esticando dentro da minha barriga. “Está gostando da minha
velha cidade?”
“O
que foi?”, o motorista do táxi perguntou.
“Desculpe,
eu estava falando com o meu bebê.”
Ele
riu. “E ele respondeu?”
Atravessei
a ponte. Ainda estava me sentindo feliz só de sentir os cheiros de
lenha queimada, pó de caliche, chili e a baforada de enxofre que
vinha da fundição. Minha amiga Hope e eu adorávamos dar respostas
engraçadinhas quando os guardas da fronteira perguntavam nossa
nacionalidade. Transilvana. Moçambicana.
“Americana”,
eu disse. Ninguém pareceu reparar em mim. Por precaução, não
peguei nenhum dos táxis que estavam parados perto da fronteira e
andei mais alguns quarteirões. Comi um dulce de membrillo.
Nem quando era criança eu gostava daquele doce, mas gostava do fato
de ele vir numa caixinha de madeira e de você usar a tampa como
colher. Depois de examinar todas as joias de prata, cinzeiros de
concha e Don Quixotes, eu me forcei a entrar num táxi e entreguei ao
motorista o pedacinho de papel com o nome de Lupe e o endereço
errado. “Cuanto?”
“Vinte
dólares.”
“Dez.”
“Bueno.”
Então, não consegui mais fingir que não estava com medo. O
motorista dirigiu rápido por um bom tempo. Reconheci a rua deserta e
o prédio de cimento. Ele parou alguns prédios depois. Num espanhol
macarrônico, pedi que ele voltasse dali a uma hora. Por vinte
dólares. “Okay. Una hora.”
Foi
difícil subir as escadas até o quarto andar. Minha barriga de
grávida estava enorme e minhas pernas estavam inchadas e doloridas.
Eu parava para tomar fôlego a cada patamar, arfando. Meus joelhos e
minhas mãos tremiam. Bati na porta do apartamento 43, Mel abriu e eu
cambaleei porta adentro.
“Ei,
amor, o que é que você tem?”
“Água,
por favor.” Sentei num sofá de vinil sujo. Mel me trouxe uma
coca-cola diet, limpou o gargalo com a camisa, sorriu. Ele estava
sujo, mas era bonito, se movimentava como um guepardo. Tinha virado
uma lenda àquela altura, por ter fugido de prisões, por ser um
foragido. Armado e perigoso. Ele trouxe uma cadeira para que eu
apoiasse os pés, massageou meus tornozelos.
“Onde
está La Nacha?” Ninguém nunca se referia àquela mulher só como
Nacha. Ela era “A Nacha”, o que quer que isso significasse. Ela
entrou, vestindo um terno preto de homem e uma camisa branca. Sentou
numa cadeira atrás de uma mesa. Eu não sabia dizer se ela era um
travesti ou uma mulher tentando parecer um homem. Era bem morena,
quase negra, com um rosto maia; usava batom e esmalte
vermelho-escuro, óculos escuros. Seu cabelo era curto, gomalinado.
Ela estendeu a mão curta, aberta, na direção de Mel sem olhar para
mim. Entreguei o dinheiro para ele. Vi La Nacha contar o dinheiro.
Foi
aí que fiquei apavorada mesmo. Eu pensava que estava comprando
drogas para Noodles. Minha única preocupação era que ele não
passasse mal. Tinha imaginado que dentro do envelope houvesse um maço
grosso de notas de dez e de vinte. Mas havia milhares de dólares na
mão de La Nacha. Noodles não tinha me mandado ali só para comprar
heroína para ele. Eu estava fazendo uma compra grande e perigosa. Se
a polícia me pegasse, eu seria tratada como traficante, não como
usuária. Quem iria cuidar dos meninos? Fiquei com ódio de Noodles.
Mel
viu que eu estava tremendo. Acho que tive até ânsia de vômito. Ele
revirou os bolsos e puxou um comprimido azul. Eu fiz que não. O
bebê.
“Ah,
pelo amor de Deus. É só um Valium. Você vai ferrar com esse bebê
mais ainda se não tomar. Toma. Você precisa segurar as pontas! Tá
ouvindo?”
Eu
fiz que sim. O desdém dele funcionou como uma sacudida. Fiquei calma
antes mesmo de o comprimido fazer efeito.
“O
Noodles falou pra você que eu vou experimentar a droga, não falou?
Se for da boa, eu aviso e aí você pega o balão e se manda. Você
sabe onde botar?” Eu sabia, mas não faria isso de jeito nenhum. E
se o balão furasse e a droga contaminasse o bebê?
Mel
era um demônio, conseguia ler meus pensamentos. “Se você não
enfiar lá, eu vou enfiar. Não vai furar. O seu bebê está todo
embrulhadinho numa bolsa à prova de drogas, totalmente a salvo de
todos os males do mundo externo. Depois que ele nascer, meu bem, aí
é outra história.”
Mel
ficou observando La Nacha pesar o pacote e fez que sim com a cabeça
quando ela o entregou a ele. Ela não tinha olhado para mim nem uma
única vez. Fiquei vendo Mel injetar. Ele botou algodão e água numa
colher, salpicou uma pitada de heroína marrom por cima, aqueceu.
Amarrou o garrote, espetou uma veia na mão, fazendo um pouco de
sangue subir pela seringa, depois apertou o êmbolo e soltou o
garrote, enquanto seu rosto instantaneamente se esticava. Ele estava
num túnel de vento. Fantasmas voadores levaram Mel para outro mundo.
Senti vontade de mijar, de vomitar. “Onde é o banheiro?” La
Nacha apontou para uma porta. Encontrei o banheiro no fim do corredor
pelo cheiro. Quando voltei, lembrei que Noodles tinha falado para eu
não deixar Mel sozinho. Mel estava sorrindo. Ele me entregou a
camisinha, enrolada como uma bola.
“Prontinho,
amor, faça uma boa viagem. Agora vai, guarda esse troço direitinho,
como uma boa menina.” Eu me virei e fingi estar enfiando a
camisinha dentro de mim, mas na verdade só botei dentro da minha
calcinha apertada. Do lado de fora, no escuro do hall, transferi a
bolota para o meu sutiã.
Fui
descendo os degraus devagar, como se estivesse bêbada. Estava
escuro, imundo.
No
segundo patamar, ouvi a porta lá de baixo se abrir, barulhos vindos
da rua. Dois adolescentes subiram a escada correndo. “Fíjate no
más!” Um deles me imprensou na parede, o outro pegou minha
bolsa. Não havia nada lá a não ser algumas notas de dinheiro
soltas, maquiagem. O resto estava dentro de um bolso interno do meu
casaco. Ele me deu um soco.
“Vamo
estuprar ela”, o outro disse.
“Como?
Só se você tiver um pau de mais de um metro.”
“Vira
ela de costas, bato.”
Bem
na hora em que ele me deu outro soco, uma porta se abriu e um velho
veio descendo a escada correndo, com uma faca na mão. Os garotos
deram as costas e saíram correndo de volta lá para fora. “Você
está bem?”, o velho me perguntou em inglês.
Eu
fiz que sim. Pedi que ele fosse comigo até a rua. “Deve ter um
táxi me esperando aqui em frente, espero.”
“Você
fica aqui. Se o táxi estiver lá, eu peço pro motorista buzinar
três vezes.”
A
sua mãe ensinou você a se comportar como uma dama, pensei enquanto
me perguntava o que mandaria a etiqueta numa situação como aquela.
Será que eu devia oferecer dinheiro ao velho? Não ofereci. O
sorriso banguela que ele me deu quando abriu a porta do táxi para
mim foi um sorriso doce.
“Adiós.”
Fiquei
enjoada no pequeno avião bimotor para Albuquerque. Eu estava com
cheiro de suor e do sofá e da parede manchada de urina. Pedi um
sanduíche extra e também mais amendoim e leite.
“Comendo
por dois agora, hein!”, o texano sentado na minha frente disse,
sorrindo.
Fui
dirigindo do aeroporto para casa. Pegaria os meninos depois de tomar
um banho. Enquanto seguia pela estrada de terra em direção ao nosso
trailer, vi Noodles do lado de fora, com sua japona de marinheiro,
fumando e andando de um lado para o outro.
Parecia
desesperado; nem sequer veio me cumprimentar. Entrou no trailer e eu
fui atrás.
Ele
se sentou na beira da cama. Os apetrechos dele estavam em cima da
mesa, prontos e à espera. “Deixa eu ver.” Eu lhe entreguei a
camisinha. Ele abriu o armário acima da cama e botou a droga na
pequena balança. Depois se virou e me deu um tapa na cara com toda a
força. Ele nunca tinha me batido. Fiquei lá sentada, paralisada, ao
lado dele. “Você deixou o Mel sozinho com a droga, não deixou?
Não deixou?”
“Tem
heroína suficiente aí pra me botar na cadeia por muito tempo”, eu
disse.
“Eu
falei pra você não sair de perto dele. O que é que eu vou fazer
agora?”
“Chama
a polícia”, eu disse, e ele me deu outro tapa. Esse eu nem senti.
Tive uma contração forte. Braxton-Hicks, pensei comigo. Quem diabo
foi Braxton-Hicks? Continuei lá sentada, fedendo a Juárez, e fiquei
vendo Noodles entornar o conteúdo da camisinha dentro de uma lata de
filme. Em seguida, ele salpicou um pouco da droga no algodão que
estava na sua colher. Sentindo um embrulho no estômago, eu tive a
certeza de que, se tivesse que escolher entre mim e os meninos ou as
drogas, ele iria sempre escolher as drogas.
Um
jato de água quente escorreu pelas minhas pernas até o tapete.
“Noodles! A bolsa estourou! Eu tenho que ir pro hospital.” Mas já
era tarde, ele já tinha injetado. A colher fez um clique ao cair na
mesa, o tubo de borracha caiu do braço dele. Ele se recostou no
travesseiro. “Pelo menos é da boa”, sussurrou. Tive outra
contração. Forte. Arranquei o vestido imundo que estava usando e me
lavei com uma esponja, vesti uma túnica branca. Outra contração.
Liguei para o serviço de emergência. Noodles tinha apagado. Será
que eu devia deixar um bilhete para ele? Talvez ele ligasse para o
hospital quando acordasse. Não. Ele não ia pensar em mim nem por um
instante.
A
primeira coisa que ele ia fazer era injetar o resto da droga que
tivesse sobrado no algodão, tirar mais uma provinha. Senti um gosto
de cobre na boca. Dei um tapa na cara de Noodles, mas ele não se
mexeu.
Abri
a lata de heroína, segurando-a com um lenço de papel. Despejei uma
boa quantidade na colher. Acrescentei um pouco de água, depois
fechei a linda mão de Noodles em torno da lata. Senti outra
contração dolorosa. Sangue e muco escorriam pelas minhas pernas.
Vesti um suéter, peguei meu cartão do Medi-Cal e fui lá para fora,
esperar a ambulância.
Eles
me levaram direto para a sala de parto. “O bebê está saindo!”,
eu disse. A enfermeira pegou meu cartão, perguntou algumas coisas,
telefone, nome do marido, quantos filhos já tinha tido, qual era a
data prevista para o nascimento do bebê.
Ela
me examinou. “Você já está completamente dilatada. A cabeça
está bem aqui.”
As
dores estavam vindo uma atrás da outra. A enfermeira correu para
chamar um médico. Enquanto ela estava fora da sala, o bebê nasceu,
uma menininha. Carmen. Eu me inclinei e a peguei no colo. Deitei-a,
quente e úmida, na minha barriga. Estávamos sozinhas na sala
silenciosa. Então eles vieram e nos empurraram correndo na maca para
debaixo da luz forte. Alguém cortou o cordão e eu ouvi a bebê
chorar. Senti uma dor pior ainda quando a placenta saiu e, então,
vieram botar uma máscara na minha cara. “O que vocês estão
fazendo? Ela já nasceu!”
“O
médico está vindo. Você precisa de uma episiotomia.” Eles
amarraram as minhas mãos.
“Cadê
a minha bebê? Onde ela está?” A enfermeira saiu da sala. Eu
estava presa às laterais da cama. Um médico entrou. “Por favor,
me desamarre.” Ele me desamarrou e foi tão gentil que eu fiquei
assustada. “O que houve?”
“Ela
nasceu cedo demais”, ele disse, “pesava muito pouquinho. Ela não
resistiu. Eu sinto muito.” Ele deu tapinhas no meu braço,
constrangido, como se estivesse dando tapinhas num travesseiro.
Estava olhando para a minha ficha. “Esse é o telefone da sua casa?
Você quer que eu ligue para o seu marido?”
“Não”,
respondi. “Não tem ninguém em casa.”