domingo, 30 de novembro de 2025

Djavan | O Grande Bem

A profetisa Ana no templo

As fainas da viuvez trabalham uma horta nova.
Quem me condenará por minhas vestes claras?
O recém-nascido vai precisar de faixas.
É um tal amor o que prepara os unguentos
que obriga a divindade a conceder-se.
Até que esmaeçam,
velo as coruscantes estrelas.

Adélia Prado, em O Coração Disparado

O Super-Homem das Alagoas


Ninguém sabe até hoje como o incêndio começou. O velho casarão, no centro da cidade, ardeu feito velho apaixonado por garotinha. A rua, deserta um segundo antes do primeiro grito, se encheu de palpiteiros, basbaques, gozadores...
O corpo de bombeiros demorou porque todos os telefones das imediações estavam com defeito. Alguns diálogos botavam mais lenha na fogueira:
Nunca entendi por que chamam esses caras de bravos soldados do fogo. Se ainda fosse da água...
Deve ser porque nunca tem água.
De fato, tinha mais cachaça na área que água da bica. Um carro-pipa fora providenciado, mas batera numa ambulância dirigida por um bêbado. Vários uniformes se desentendiam. Um comandante conservava prudente distância. Era um sujeito adiposo e inepto, ex-torturador e próspero comerciante no ramo de extintores especiais para prédios condenados. Dois policiais militares, que davam segurança à boca-de-fumo mais próxima, tentavam conter um chileno, radicado em Niterói, conhecido como El Apagadíssimo, que aparecia em toda sorte de sinistros, tentando tirar uma casquinha.
No auge da confusão, chegou a reportagem de TV e todo mundo começou a rasgar as roupas e a se sujar de fuligem pra aparecer na telinha. Um compositor interiorano radicado aqui compôs um tema na hora e deu declarações sobre a nova fase de seu trabalho. O refrão era: “ai, ai, ai, ai, ai, dantes os dentes rangerrugiam nos assíduos acidentes”.
Quando o espetáculo ameaçava perder o pique, um homem saiu das chamas com uma criança nos braços.
A plebe foi acometida por aquele colapso do senso crítico que antecede a exaltação de atos considerados virtuosos no consenso da mediocridade (dá-lhe, Blanc!).
Senhoras aureoladas de bobs, envoltas nas encardidas mortalhas dos roupões de ílorzinha, experimentaram, na libido atrofiada, o êxtase das protagonistas de novela. Parasitas e vadias viam nele o Salvador. De todas as bocas maltratadas, do fundo dos pulmões corroídos, das gargantas pustemadas, das línguas saburrosas, dos dentes cariados, ééé, brotou a palavara mágica, espécie de aborto espontâneo que acontece toda vez que a boçalidade é fecundada pela farsa:
Herói! Herói!
No dia seguinte, os jornais celebraram a vinda do novo Messias. Fotos indesmentíveis, como disse um Ministro, e editoriais candentes colocaram suaves cataplasmas na ferida nacional: um brasileiro íntegro.
A euforia fincara seus estandartes no coração da miséria. Os bares fervilhavam de palhaços que voltavam a crer em si mesmos. Donas de casa suspirosas encontravam motivação, alento – e até mesmo um certo tesãozinho – na figura redentora. Nunca o pavilhão auriverde drapejou tão garboso nos mastros de empresas antes maculadas pela corrupção. Economistas que serviram à ditadura militar diziam, modestamente, de olhos úmidos:.
São os primeiros frutos da economia de mercado. Dom Saulo Castilho não perdeu a ocasião de perpetrar um soneto inesquecível. O final era assim:

Ao contrário do mulato mequetrefe
move-o o charme sutil de um grande chefe,
um Cristo a redimir o balneário.
Espelhem-se, medíocres operários,
que só se preocupam com o que comem
no saco elefantal do Super-Homem!”

O assessor de imprensa da Presidência da República anunciou o novo Imposto sobre Atos Heroicos.
Quarenta e oito horas depois do portento, a mãe da criança – uma menininha de dez anos que, infelizmente, faleceu por falta de atendimento médico – veio a público:
É minha filha que foi sequestrada mês passado quando meus outros sete filhos moireram fuzilados numa chacina lá no morro.
Nosso herói foi convidado a depor. Todos ansiavam pelo esclarecimento do lamentável equívoco. Mas, vida ingrata, a abstinência de cocaína a que se viu forçado o Cid Campedor pelo acúmulo de solenidades e homenagens, teve consequência inesperada: uma crise de choro e a confissão de coautoria em inúmeros crimes. No caso em questão, a soldo de uma quadrilha de traficantes, mantinha a menina em cárcere privado, e, cedendo a impulsos bestiais, tinha acabado de agarrá-la quando ouviu os gritos de fogo.
Suplementos culturais publicaram matérias de vários especialistas em mente humana, unânimes quanto à intratabilidade do inconsciente. Um defendeu o uso de remédios. Todos defenderam os respectivos bolsos.
O tal compositor apareceu na TV, no horário vago entre dois pastores da Igreja da Graça Estelionatária., falou de seu novo trabalho e cantou o refrão de um hit inédito: “ai, ai, ai, ai, dentes de dantes já não mordem como antigamantes”.
Dom Saulo Castilho deu um pulinho no Vaticano, pra meter o pau na Teologia da Libertação.
O assessor de imprensa – já tá ficando chato, ô babaca! – deu marcha a ré.
Donas de casas frustradas passaram a bater nos filhos pra que não se transformassem num monstro igual aquele. E, cheias de ódio, persignavam-se.
Nos bares, piadas sem graça tentam fazer frente à ressaca.
Vosso um tanto amargo cronista cometerá o pecado da reiteração: com os heróis, todo cuidado é pouco. Às vezes, o valente que irrompe das chamas com a criança no colo não passa de um estuprador que não teve tempo de largar a vítima.
Mas, sei lá, não se desesperem. Como disse o Médici, vem aí a próxima Copa do Mundo.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

Armandinho

Assunto urgente

Carlos,

Não sei se você pegou o WhatsApp que eu te mandei, avisando que eu tinha te mandado uma mensagem via SMS. A mensagem era referente ao e-mail que eu te enviei pedindo desculpa pela quantidade de recados que eu deixei na sua caixa postal, onde li em voz alta as mensagens que eu te mandei por inbox. Eu sei que exagerei na quantidade de inboxes, mas às vezes as mensagens vão parar na caixa Outros, sobretudo depois que a pessoa te bloqueou. Comentei no seu Instagram que tinha tentado te mandar uma DM no Twitter, mas não tinha conseguido porque você não me seguia. Na DM te perguntava se você ainda usa Orkut. Lá te mandei um monte de testimonials (não é pra aceitar, é só pra ler), perguntando seu novo endereço, porque as cartas que te mando têm voltado, assim como os telegramas. Pensei em te mandar um fax, mas logo lembrei que queimei o meu fax na fogueira que fiz pra te mandar sinais de fumaça, que causou um incêndio no prédio, que resultou na minha expulsão, que acabou me trazendo pra casa em que estou hoje. Me mudei e custei a perceber que você talvez estivesse escrevendo para o meu endereço antigo. Pensei em passar no meu antigo prédio pra checar se não havia cartas suas por lá, mas lembrei que não sou benquista no bairro, depois do incêndio. Pensei em passar no seu prédio, mas tampouco sou benquista por aí, por causa da maldita ordem de restrição. Por isso comprei um pombo, que passei um tempo tentando adestrar para buscar as cartas que você tem escrito pra mim. Amarrei uma mensagem no pé dele e mostrei o caminho da sua casa no mapa do iPhone. Atirei o bicho pela janela, mas ele nunca voltou. Pensei que ele talvez tivesse sido apreendido pela polícia. Reli a ordem de restrição, mas ela não faz menção ao envio de animais-de-correio. Concluí, então, que a culpa é da Apple, que definitivamente não sabe fazer mapas. Se por acaso vir um pombo pardo, perdidinho, com uma longa carta na pata esquerda, é o meu. Um conselho: quando for mandá-lo de volta, não use o mapa da Apple, use o Google Maps. Hoje estou morando em um lugar agradabilíssimo, mas que insiste em me privar de caneta e papel, assim como das minhas mãos, que no momento estão presas em uma linda camisa branca de mangas longas (demais). Por isso te mando esta mensagem telepática, que peço que responda telepaticamente, pois de outro modo talvez não chegue até mim. Sempre sua,
Carmem

Gregório Duvivier, em Put some farofa

― Sorte é isto. Merecer e ter...


[…]

E, em relance em mais, eu já estava carecendo de declarar aos companheiros todos os erros que vínhamos pagando, por motivo do ultimamente, conforme agora eu ladino deduzia. Disse, com modos, ao próprio Zé Bebelo, que isto de mim escutou:
...Sem tenção de descrédito ou ofensa, Chefe, mas duvido de que bem fizemos em restar todos aqui, comprando cura de doenças. Mais ajuizado certo não seria se ter remetido meia-dúzia de cabras, dos sãos, que tivessem ido buscar a munição nesse lugar, a Virgem-Mãe, e trazer? Munição já estava aqui, e a gente estava mais garantidos...
Zé Bebelo em mal amargo ― ele espinoteou com a cabeça, arejou os queixos. Desde, depressinha, me explicou a maior razão, com palavras baixas. Porque ele de tudo já soubesse! foi então que me disse que o extravio nosso tinha sido mais completo; porque a gente tinha vindo em má rota, em vez da Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei. Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa viagem, eu achava até divertido. Figuro explicando ao senhor! desde por aí, tudo o que vinha a suceder era engraçado e novo, servia para maiores movimentos. Com essas levezas eu seguia a vida.
Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais, estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida manhã, orçado o sol, e eles redondeavam no aprazível ― tropilha grande, pondo poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um rebuliz? Dou confesso o que foi! era de mim que eles estavam espantados. Aí porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu. O que é que cavalo sabe? Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre relincha exagerado. Ardido aquele nitrinte riso fininho, e, como não podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já escumavam e retremiam, que com as orêlhas apontavam. Assim ficaram, mas murchando e obedecendo, quando, com uma raiva tão repentina, eu pulei para o meio deles! ― Barzabú! Aquieta, cambada! ― que eu gritei. Me avaliaram. Mesmo pus a mão no lombo dum, que emagreceu à vista, encurtando e baixando a cabeça, arrufava a crina, conforme terminou o bufo de bufôr.
Notei que os companheiros reparavam a estranhez daquilo, dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam, formados no costume de jagunços, que é de frouxas essas leviandades. ― Barzabú! ― ó gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas. E eu parava, rente, no meio de todos, que de volta aceitavam minha presença, esses cavalos.
Tu sendo peão amansador domador?! ― que o Ragásio caçoou comigo. Mas eu me virei, e já se ouvia outro tropel: era aquele seó Habão, que chegava. Vinha com três homens, estroteantes ― gentinha trabalhosa. E o animal dele, o gateado formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seó Habão saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o rabo no chão; o cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto no ar. ― Barzabú! ― xinguei. E o cavalão, lão, lão, pós pernas para adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. Me obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade.
O seó Habão estava ali, me desentendeu nos olhos. Ele ficou a vermelho. Mas eu acho que, homem só vendido ao dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem primeiro o atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil. Ele não gaguejou. Melhor me disse:
Se este praz ao senhor... Se ele praz ao senhor... Lhe dou, amigavelmente, com bom agrado: assim como ele está, moço, ele é seu...
Não acreditei? Reafirmo ao senhor: meu coração não pulsou dúvidas. Agradeci, como meu brio; peguei a ponta do cabresto. Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com suas manchas e riscas ― ah, como ele pisava peso no chão, e como ocupava tão grande lugar! Até passeei um carinho nas faces dele, e pela tábua-do-pescoço a fora. Meu o bicho era, por posse, e assim revestido, conforme estava ― que era com um socadinho bom, com caçambas de pau. Mas sendo que, dividido o instante, eu já ali pensei! por que seria que o seô Habão se engraçava de me presentear de repente com uma prenda dum valor desse, eu que não era amigo nem parente dele, que não me devia obrigação, quase que nem me conhecia? Aos que projetos ele engenhava em sua mente, que possança minha ele adivinhava? A pois, fosse. Aquele homem me temia? Da admiração de meu povo todo, dei fé, borborinho com que me rodeavam. Certo, deviam de estar com invejas. Fosse! E a mãe!... A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes... Me rêjo, me calêjo! Só por causa daquele cavalo, até, eu fui ficando mais e mais, enfrentava. Não me riram.
E deveras... Animal de riqueza! graúdo, farto e manteúdo...
Sorte é isto. Merecer e ter...
Ainda bem que foi bem empregado...
Só dissessem. Disfarcei meu regozijo. Disse logo foi a tenção de maiores ideias em desejos ― segundo a como apeirado aquele eu já queria! que arreado à gaúcha, com peitoral com pratas em meia-lua, e as peças dos arreios chapeadas de belo metal.
Ara, que assim ouvi, Tatarana! o nome que ele vai se chamar é mesmo Barzabúl ― algum caçoou de me perguntar.
A não, meu compadre tôrto! Sossega a velha... Nome que dou a ele, d ora em diante, conferido, é este ― quem que aprender, aprende! ― que é! o cavalo Siruiz... ― assim foi que eu respondi, sem tempo nenhum para pensamento. Montei.
Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente. Pois Zé Bebelo estava aparecendo ali, e eu atinei, ligeiro, com o que não tinha refletido. Ao que! oferecer e receber um presente daquele, naquelas condições, era a mesma coisa que forte ofender Zé Bebelo. Um dom de tanto quilate tinha de ser para o Chefe. Reconheci, aí. Mas não tirei para trás. Não desapeei. E de ver que, conforme em mim, nesses enquantos, eu já devia de estar fitando Zé Bebelo com um certo desprezo. Ia haver o que ia haver, e eu não me importei. Um qualquer chefe de jagunço havia de ter ímpeto de resolver aquilo fatal. Aí, esperei. Teria sido uma tenção dessas, de arder a desordem no meio nosso, a razão do seó Habão? Pensei o dito, num interim. E pensei pontudo em minhas armas.
Mas Zé Bebelo, acabando de saber o acontecido, mirou em mim, somente, poupado risonho:
Tal te fica bem, Professor, amontado nesse estampo, queremos havemos de te ver garboso, guerreando as boas batalhas... Em hora!... ― foi o que ele disse, se me seja que gostou pouco. Choveu para o meu arrozal! Ah, mesmo só inteligência, só, era que que era aquele homem. Desapeei.
Como por um rasgo, para solércias, dei o cabresto ao Fafafa. Disse: ― Tu desarreia, amilha e escova, tu trata dele... ―; e isso fiz, porque o Fafafa, que tanto gostava simples de cavalos, era o prestante para cuidar dum animal, em mesmo que dele não sendo. Mas eu tinha dado uma ordem. Assim me refiz. E o seó Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo recebia.
Saí, uns passos. Eu estava dando as costas a Zé Bebelo. Ele podia, num relance, me agredir de morte, me atirar por detrás... ― atentei. Esbarrei em meu caminhar, fiquei assim parado, assim mesmo. O medo nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; quem ia conseguir audácias para atirar em mim? As deles haviam de amolecer e retombar, com emortecidos braços; eu podia dar as costas para todos. O que o Drão ― o demonião ― me disse, disse: seria só? Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com mãos de azul. Aquela firme possança; assim permaneci, outro tempo, acendido. Eu leve, leve, feito de poder correr o mundo ao redor. Ao senhor eu conto, direto, isto como foi, num dia tão natural. Será que, de cousas tão forçosas, eu ia poder me esquecer? Aquele dia era uma véspera.

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

sábado, 29 de novembro de 2025

Ladrões

Uma aranha se orgulha quando pega uma mosca. Outros quando pegam uma pobre lebre, um peixinho na rede, um javali, um urso e um sármata. Se examinar as convicções deles, não constatará que são ladrões?

Marco Aurélio, em Meditações

Breu | Chico César, RIVO, Noga Ritter, Luisa Maita e Oran Etkin

Moseley


Levantei os olhos, casualmente, e vi-a do lado de fora da janela, a olhar para dentro. Nem muito próxima da vítima nem olhando para alguém em particular; apenas em pé, com a cabeça virada para cá e com os olhos postos em mim, de uma maneira vaga, como se esperasse um sinal. Quando voltei a levantar a vista, ela se dirigia para a porta.
Parou um pouco diante da porta metálica, indecisa, como em geral acontece a todos, e entrou. Trazia um chapéu de palha de abas duras no alto da cabeça e alguma coisa embrulhada em jornal: pensei que, se da tivesse um quarto de dólar, ou quando muito um dólar, talvez comprasse um pente barato ou uma garrafa de água-de-colônia para negros, depois de examinar tudo em volta; por isso, durante um minuto ou pouco mais, não me preocupei com ela, exceto para observar que era bonita, de uma forma melancólica, terrível, e que parecia bem melhor em seu vestido de percal e em sua cor natural do que depois de comprar o que acabaria decidindo-se a comprar. Ou dizer que queria. Eu sabia que ela já se havia decidido antes de entrar. Mas é preciso dar-lhes tempo. Assim, continuei ocupado com o que fazia, pensando em deixar que Albert a atendesse, quando acabasse de arrumar os refrigerantes, mas ele voltou para junto de mim.
"Aquela mulher", disse. "Melhor ver o que ela quer".
"O que ela quer?", perguntei.
"Não sei. Não consigo arrancar-lhe nada. Melhor você atendê-la".
Por isso, rodeei o balcão. Vi que ela estava descalça, com os pés nus aderindo plenamente ao chão, como se estivesse habituada a andar assim. Olhava-me com firmeza, apertando o embrulho; tinha os olhos mais pretos que já vi e era forasteira. Não me lembrava de tê-la visto em Mottson antes. "Às suas ordens", eu disse.
Continuou sem falar. Fitava-me sem pestanejar. Depois, olhou para as pessoas no balcão de refrigerantes. Passou por mim, em seguida, na direção dos fundos da casa.
"Quer ver artigos de perfumaria?", perguntei. "Ou deseja comprar remédios?" "Isto mesmo", ela disse. Olhou de novo, rapidamente, para o balcão dos refrigerantes. Pensei, por isso, que talvez sua mãe ou alguém mais mandara-a comprar uma dessas drogas que as mulheres usam e ela estava com vergonha de pedir.
Eu sabia que, com uma pele como a sua, era-lhe impossível usar uma das tais drogas, ainda mais porque, sendo tão moça, não teria ideia da finalidade com que são usadas. Uma vergonha a maneira como as mulheres se envenenam com essas coisas. Mas a gente tem de expô-las à venda ou então renunciar ao comércio neste pais.
"Ah", eu disse.
"Qual sua marca preferida? Nós temos..."
Ela olhou de novo para mim, quase como se houvesse dito "Chiu!", e olhou mais uma vez para o balcão dos refrigerantes.
"Preferia que falássemos nos fundos", disse.
"Está bem", eu disse. É preciso satisfazer-lhes os caprichos. Perde-se assim menos tempo. Acompanhei-a aos fundos. Ela pousou a mão na portinhola.
"Não há nada aí, a não ser o armário de medicamentos", eu disse. "Que deseja?"
Ela parou e olhou-me. Foi como se houvesse tirado uma espécie de véu do rosto, dos olhos. Uns olhos espantados, esperançosos e, ao mesmo tempo, querendo ser desapontados. Sim, ela estava com algum problema. Isto eu podia ver.
"Qual é o problema?", perguntei. "Diga-me o que quer. Estou muito ocupado."
Eu não queria apressá-la, mas um homem não pode dar-se ao luxo de desperdiçar o tempo como elas fazem.
"É problema feminino", ela disse.
"Ah", eu disse. "Apenas isto?"
Pensei que ela fosse mais jovem do que parecia, e seu primeiro incômodo a assustasse, ou talvez o sangramento fosse um pouco anormal, como acontece a mulheres jovens. "Onde está sua mãe?", perguntei. "Você ainda tem mãe?"
"Está lá embaixo, na carroça", ela disse.
"Por que não conversou com ela a respeito, antes de tomar algum remédio?", perguntei. "Qualquer mulher lhe daria uma indicação."
Ela me olhou, e eu lhe retribui o olhar e disse: "Quantos anos tem?"
"Dezessete", ela disse.
"Ah", eu disse. "Pensei que fosse..."
Ela me observava atentamente. Mas, então, seus olhos deram a impressão de não terem idade definida e de saberem tudo acerca do mundo.
"Você é regular ou irregular?"
Ela deixou de me fitar, mas não saiu do lugar.
"Sim", disse. "É isto mesmo. Acho que sim."
"Sim, o quê?", eu disse. "Você não tem certeza?"
É uma vergonha, é um crime. Mas, de qualquer forma, elas acabam comprando em mãos de alguém. Ela continuava ali, sem me olhar. "Quer alguma coisa para parar?", perguntei. "É isto?"
"Não", ela disse. "Já parou."
"Bem, então .." O rosto dela bancara um pouco, como elas fazem ao falar com um homem, de forma que não sabemos onde o próximo raio nos ferirá. "Você não é casada, é?", perguntei.
"Não."
"Ah", eu disse. "E quanto tempo faz que parou? Talvez uns cinco meses?"
"Não passa de dois", ela disse.
"Bem, não tenho nada aqui que você queira comprar", eu disse, "a não ser uma chupeta. E eu lhe aconselho a comprar uma, voltar para casa e pedir ao seu pai, se é que tem pai, que descubra alguém para levar você ao altar. Era só o que queria?"
Mas ela continuava ali, parada, sem me olhar. "Tenho dinheiro para lhe pagar", disse.
"É dinheiro seu, ou ele foi bastante homem para lhe dar?"
"Ele me deu. Dez dólares. Disse que seria bastante."
"Mil dólares não bastariam em minha casa. Nem dez centavos. Siga meu conselho: vá para casa e conte ao seu pai ou aos seus irmãos ou ao primeiro homem com quem esbarrar no caminho."
Mas ela não se moveu. "Lafe disse que eu compraria o remédio numa casa como esta. Pediu que eu lhe dissesse que nem eu nem ele jamais diremos a ninguém que o senhor nos vendeu."
"Eu só queria que o seu adorado Lafe tivesse vindo em pessoa. Era só o que eu queria. Não sei: acho que o teria respeitado mais. Volte e diga-lhe... se é que ele, a essa altura, não está a meio caminho do Texas, o que não me causaria surpresa. Eu, um farmacêutico respeitável, estabelecido há muitos anos neste ramo, pai de família e paroquiano há cinquenta e seis anos! Tenho vontade de ir contar a seus pais, se conseguisse encontrá-los."
Ela voltou a olhar-me, os olhos e o rosto semelhantes aos que eu vira, espantados, atrás da vitrina.
"Eu não sabia", ela disse. "Ele me disse que eu podia arranjar alguma coisa numa farmácia. Disse que talvez não me quisessem vender, mas se eu tivesse dez dólares e prometesse não contar nunca a ninguém..."
"Ele não indicou esta farmácia", eu disse. "Caso lenha indicado, ou mencionado meu nome, desafio-o a provar. Eu o desafio a repetir, ou então o processarei com todos os rigores da lei. Você pode dizer-lhe isto."
"Talvez eu possa comprar em outra farmácia", ela disse.
"Então, eu nem quero saber. Isto é, eu..."
Olhei para ela. Elas têm uma vida dura; às vezes, um homem... admitindo que se possa justificar o pecado, coisa impossível. Além disso, a vida não dá facilidades a ninguém; do contrário, não haveria motivos para sermos bons e morrer.
"Olhe aqui", eu disse. "Ponha isto na sua cabeça: o Senhor lhe deu o que você traz na barriga, mesmo que Ele tenha usado, para isso, o demônio; deixe que Ele o tire, se é este o Seu desejo. Volte para o seu Lafe e você e ele usem os dez dólares para casarem."
"Lafe disse que eu podia arranjar alguma coisa na farmácia".
"Então, saia e arranje", eu disse. "Aqui você não consegue nada." Ela saiu, levando o embrulho, os pés fazendo um pequeno assovio no chão. Hesitou novamente à porta e saiu. Eu pude vê-la através da vitrina, descendo a rua.
Albert contou-me o resto. Disse que a carroça havia parado em frente da casa de ferragens de Grummet, e que as senhoras fugiram em todas as direções, pela rua, com o lenço nos narizes, e que uma multidão de homens e meninos de narizes entupidos postara-se em volta da carroça, para ouvir o delegado discutir com o homem. O homem, alto e descarnado, sentado na carroça, dizia que a rua era pública e que ele tinha tanto direito como os outros de ficar ali, e o delegado insistia em que ele tinha de ir embora. As pessoas não suportavam o fedor. A mulher estava morta há oito dias, segundo Albert. Eles vieram de algum lugar do condado de Yoknapatawpha, tentando chegar a Jefferson. Era como se um pedaço de queijo podre entrasse num formigueiro, e a carroça estava tão desmantelada que Albert me disse que as pessoas tinham medo que ela caísse aos pedaços antes que eles saíssem da cidade, com aquele caixão feito em casa e mais o outro sujeito de perna quebrada deitado em cima, envolvido num cobertor, e o pai e o menino sentados no banco da frente e o delegado tentando expulsá-los da cidade.
"É uma rua pública", diz o homem. "Acho que podemos parar para comprar qualquer coisa, Temos dinheiro para pagar, e não há lei que impeça um homem de gastar o seu dinheiro como quiser."
Tinham parado para comprar cimento. O outro estava no Grummet, tentando convencer Grummet a abrir um saco e vender-lhe dez cêntimos de cimento, e finalmente o Grummet concordou, só para se ver livre. Queriam o cimento para imobilizar a perna partida do outro, pelo visto.
"Olhem, vocês vão matá-lo", disse o delegado. "Vocês vão fazê-lo perder a perna. Levem-no a um médico e enterrem esta coisa aí o mais depressa possível. Vocês não sabem que podem ir para a cadeia por arriscarem a saúde pública?" .
"Fazemos o possível", disse o pai. E contou uma longa história de como tiveram de esperar pelo regresso da carroça, e que a ponte tinha sido destruída pela enchente, e que eles fizeram uma volta de doze quilômetros para passar por outra ponte, e que a outra ponte também havia caído e eles, então, tiveram de passar pelo vau, a nado, e as mulas se afogaram e eles foram obrigados a arranjar outra parelha e descobriram que a estrada estava inundada e fizeram outra volta por Mottson. A este ponto, o do cimento chegou e disse-lhe para fechar a boca.
"Vamos sair agora mesmo", disse ele ao delegado.
"Nunca quisemos incomodar ninguém", disse o pai.
"Levem este homem a um médico", disse o delegado ao do cimento.
"Acho que ela está bem", respondeu.
"Não pense que temos coração duro", disse o delegado. "Mas a situação é esta, você sabe"
"Claro", disse o outro. "Sairemos daqui assim que Dewey Dell volte. Ela foi entregar um embrulho."
Assim, ficaram ali, parados, com as pessoas em volta, de lenço no rosto, até que, dentro em pouco, a moça chegava com aquele embrulho em jornal.
"Vamos embora", disse o que tinha o cimento, "já perdemos muito tempo."
Tocaram a carroça e foram embora. E quando eu fui jantar ainda me parecia sentir o fedor. E no dia seguinte encontrei o delegado e comecei a fungar e disse: "Ainda sente o fedor?"
"Acho que agora estão em Jefferson", ele disse.
"Ou na cadeia. Bem, graças a Deus não é a nossa cadeia."
"É verdade", ele disse.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

Incompletude

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios — e
1 esticador de horizontes.
Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)

Manoel de Barros, em Meu quintal é maior do que o mundo

Calvin

Por um pé de feijão

Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (a nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida. Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.
Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?
E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinquenta, outros falavam em oitenta.
No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.
E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:
Quem será que foio desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?
E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.
À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.
Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.
Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. E disse mais:
Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.
Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.

Antônio Torres, em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O relógio nunca pode andar para trás



O relógio nunca pode andar para trás, nem que eu queira. Consertar relógios sempre foi adiantá-los, dar mais uma volta no ponteiro até chegar à hora certa. Mesmo que para isso seja preciso girar o ponteiro quase 12 horas. Voltar um minuto no relógio de corda é impossível. Falei isso para um cliente, explicando a demora do conserto, e foi o que chamam de clique. Fechei a loja 25 minutos mais cedo e tudo. Adiantei o relógio e fui para casa.
Ana estava de costas, no fogão, e disse sem virar-se: “O jantar ainda não está pronto, você chegou mais cedo”, e no tom de voz a tristeza desvelada, o quinto aborto, ferida ainda cicatrizando, mesmo um mês passado é pouco tempo, a mesma ferida, o mesmo local.
Eu não disse oi, boa-noite, o que teremos para jantar. A frase saiu engasgada, presa na garganta do trabalho para casa, a frase que explicava tudo, a ideia que eu considerava genial, o óbvio finalmente revelado: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.”
E então o silêncio. Os pratos na mesa, dois, talheres, dois garfos, duas facas, cadeiras, duas, copos, dois. Eu e Ana, e na barriga dela o vazio e não mais o desequilíbrio desejado.
E ao ganhar peso, minha voz, a frase parecia boba, esvaziada, sem sentido, Ana sequer virou-se. Tampou a panela, desligou o fogão: “O jantar está pronto.”
No arranhar de voz o choro do dia inteiro, solitário, e eu agora chegava em casa e falava aquela frase, o filho morto, o quinto, não nascido, a vida não tinha explicação, e eu querendo explicar tudo com uma frase sobre relógios, um provérbio de relojoeiro. Ana não falou nada, pegou um dos pratos, o meu, e começou a preparar, arroz, e não perguntou se eu queria arroz, feijão, e não perguntou se eu queria feijão, ou se o meu feijão era por cima ou por baixo do arroz, ela sabia o que eu queria, o que gostava, como gostava, batata cozida e bife de panela.
Acuado, disse a frase novamente: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.”
Dessa vez num tom diferente, acima, a frase realmente parecendo um provérbio de relojoeiro, daquelas que se entalha numa placa de madeira, desenha-se um relógio colorido nela e pendura no fundo da loja para um cliente dar um sorriso, outro menear com a cabeça e apontá-la, concordando, outro não entender e esconder sua ignorância no silêncio.
Ana não esboçava reação. Há um mês ela não esboçava reação, e eu sempre tentando animá-la, consertá-la, não fica assim, vamos continuar tentando, D’us sabe o que faz, vamos sair hoje, nos divertir, ao teatro, ao cinema, mas nada tirava Ana daquele mutismo, nada consertava, nenhuma frase adiantava, e então eu chego em casa, mais cedo, adiantado, o jantar ainda cozinhando, Ana de costas, os pratos na mesa, dois, vazios, os copos na mesa, dois, vazios, virados para evitar as moscas, as cadeiras empurradas até o limite, embaixo da mesa, escondidas, e então eu digo que consertar relógios é adiantá-los, e Ana não entende, nem quer entender, o que aquilo, aquela frase sobre consertar pode consertar de fato.
Mas eu explico, finalmente eu explico, e a frase desde o início dizia tudo, a ideia, o conceito, a solução: “Consertar relógios sempre é adiantá-los.” E isso era: “Por que não adotamos?”

Flávio Izhaki, em Amanhã não tem ninguém

Gare

Faz tanto tempo que se está esperando — o trem que não vem, o trem de Belém — que as bagagens alheias, amontoadas no banco, cheiram-me a poeira de séculos: devem estar aqui, embolorando, o caduceu de Mercúrio, a cabeleira de Absalão, uma peça íntima de Cleópatra, um báculo de bispo, uma tabaqueira de Luís XV, um olho de vidro, uma fivela, uma bolsa de água quente, um lenço com um nó, um... Pestanejo. Sinto-me tão infeliz... Para que me fui meter nesse triste inventário, meu Deus? E, a cada suspiro que dou, o meu anjo da guarda perde mais uma peninha da asa.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Lenine | EITA (Filme Completo)

Diário de Bernardo Soares

73.

No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que o diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais que para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Dança do cachorro branco


Henry pegou o travesseiro, embolou-o atrás da cabeça e ficou esperando. Louise entrou com as torradas, geleia e café. A torrada com manteiga.
Tem certeza de que não quer dois ovos cozidos? – ela perguntou.
Não, tudo bem. Está ótimo.
Devia comer dois ovos cozidos.
Tudo bem, então.
Louise saiu do quarto. Ele se levantara antes para ir ao banheiro e notara que suas roupas tinham sido penduradas. Coisa que Lita jamais fazia. E Louise era uma foda excelente. Sem filhos. Ele adorava o modo como ela fazia tudo, suavemente, cuidadosamente. Lita estava sempre no ataque – só arestas. Quando Louise voltou com os ovos cozidos, ele perguntou-lhe:
Que é isso?
Que é o quê?
Você até descascou os ovos. Quer dizer, por que seu marido se divorciou de você?
Ah, espere – ela disse –, o café está fervendo!
E saiu correndo do quarto.
Ele ouvia música clássica com ela. Ela tocava piano. Tinha livros: O Deus Selvagem, de Alvarez; A Vida de Picasso, de E. B. White; e. e. cummings; T. S. Eliot; Pound; Ibsen; e por aí afora. Tinha até nove livros dele mesmo. Talvez isso fosse o melhor.
Louise voltou e meteu-se na cama, o prato no colo.
Que foi que deu errado no seu casamento?
Qual deles? Foram cinco!
O último. Lita.
Ah. Bem, a menos que estivesse em movimento, Lita achava que nada estava acontecendo. Gostava de danças e festas, toda a vida dela girava em torno de danças e festas. Gostava do que chamava de “ficar ligadona”. O que significa homens. Dizia que eu restringia os “baratos” dela. Dizia que eu era ciumento.
Você reprimia ela?
Acho que sim, mas tentava não fazer isso. Na última festa, saí para o quintal com minha cerveja e deixei ela mandar ver. A casa estava cheia de homens, eu ouvia ela lá dentro berrando “Iá– rru!Iá Ru! Iá Ru!” Acho que era só uma garota do interior desinibida.
Você podia dançar também.
Acho que sim. Às vezes dançava. Mas ligam o estéreo tão alto que a gente não consegue nem pensar. Eu saía para o quintal. Voltava pra pegar mais cerveja, e lá estava um cara beijando ela debaixo da escada. Eu saía até eles acabarem, depois voltava de novo pra pegar a cerveja. Estava escuro, mas eu achava que tinha sido um amigo, e depois perguntava a ele o que fazia lá embaixo da escada.
Ela amava você?
Dizia que sim.
Sabe, dançar e beijar não é tão mal assim.
Acho que não. Mas você tinha de ver ela. Tinha uma maneira de dançar como se estivesse se oferecendo em sacrifício. Para estupro. Funcionava muito. Os homens adoravam. Ela tinha trinta e três anos e dois filhos.
Ela não entendia que você era um solitário. Os homens têm naturezas diferentes.
Ela nunca levou em conta minha natureza. Como eu disse, se não estivesse em movimento, ela achava que nada acontecia. Fora isso, vivia de saco cheio. “Oh, isso me enche, aquilo me enche. Tomar o café da manhã com você me enche. Ver você escrever me enche. Preciso de desafios.”
Isso não me parece inteiramente errado.
Acho que não. Mas você sabe, só pessoas que enchem o saco ficam de saco cheio. Têm de viver se cutucando continuamente pra se sentir vivas.
Como sua bebida, por exemplo?
É, como minha bebida. Também não posso encarar a vida de frente.
O problema era só esse?
Não, ela era ninfomaníaca mas não sabia. Dizia que eu satisfazia ela sexualmente, mas duvido que eu satisfizesse a ninfomania espiritual. Foi a segunda ninfo com quem vivi. Tinha ótimas qualidades fora isso, mas a ninfomania era um vexame. Tanto para mim como pra meus amigos. Eles me puxavam para um lado e diziam: “Que diabos deu nela?” E eu respondia: “Nada, é só uma garota do interior.”
E era?
Era. Mas a outra coisa era um vexame.
Mais torrada?
Não, esta está bem.
O que era um vexame?
O comportamento dela. Se tivesse outro homem na sala, ela se sentava tão perto dele quanto possível. Ele se curvava pra apagar o cigarro no cinzeiro no chão, ela se curvava também. Ele virava a cabeça pra olhar alguma coisa, ela virava também.
Era coincidência?
Eu pensava assim. Mas acontecia vezes demais. O homem se levantava para atravessar a sala, ela se levantava e ia ao lado dele. Quando ele atravessava a sala de volta, lá vinha ela ao lado dele. Os incidentes eram contínuos e numerosos e, como eu disse, vexatórios tanto pra mim quanto pra meus amigos. E no entanto tenho certeza de que ela não sabia o que fazia, vinha tudo do subconsciente.
Quando eu era mocinha, tinha uma mulher no bairro com uma filha de quinze anos. A filha era incontrolável. A mãe mandava ela comprar pão, ela voltava oito horas depois com o pão, mas nesse tempo tinha fodido com seis homens.
Acho que a mãe devia fazer seu próprio pão.
Acho que sim. A garota não se continha. Assim que via um homem, começava a se rebolar toda. A mãe acabou mandando castrar ela.
E podem fazer isso?
Podem, mas é preciso passar por tudo que é processo legal. Não se podia fazer mais nada com ela. Tinha passado a vida grávida.
Você tem alguma coisa contra a dança? – continuou Louise.
A maioria das pessoas dança por prazer, pra se sentir bem. Ela passava pra sacanagem. Uma das danças favoritas dela era a Dança do Cachorro Branco. O cara trançava uma das pernas dela entre as dele e mexia pra frente e pra trás como um cachorro com tesão. Outra favorita era a Dança do Bêbado. Ela e o parceiro acabavam no chão, rolando um por cima do outro.
Ela dizia que você tinha ciúmes da dança dela?
Era a palavra que ela usava a maioria das vezes: ciúmes.
Eu dançava no ginásio.
É? Escuta, obrigado pelo café.
Tudo bem. Eu tinha um parceiro no ginásio. A gente era os melhores dançarinos da escola. Ele tinha três bagos; eu achava isso um sinal de masculinidade.
Três bagos?
É, três bagos. Como eu ia dizendo, a gente sabia mesmo dançar. Eu dava o sinal tocando o pulso dele, e aí a gente saltava e virava em pleno ar, muito alto, e caía de pé. Uma vez, a gente estava dançando, e eu toquei o pulso dele e dei meu salto e virada, mas não caí de pé. Caí de bunda. Ele pôs a mão na boca, ficou me olhando e disse: “Ó, meu deus do céu!” e se mandou. Não me levantou. Era homossexual. Nunca mais dançamos juntos.
Tem alguma coisa contra homossexuais de três bagos?
Não, mas nunca mais dançamos.
Lita era verdadeiramente obcecada pela dança. Entrava em bares desconhecidos e convidava os homens a dançarem com ela. Claro que eles iam. Achavam ela uma foda fácil. Eu não sei se ela fodia ou não. Acho que às vezes fodia. O problema dos homens que dançam ou vivem em bares é que têm uma visão igual à de uma tênia.
Como sabe disso?
Eles são apanhados no ritual.
Que ritual?
O ritual da energia mal dirigida.
Henry levantou-se e começou a vestir-se.
Garota, eu tenho de ir.
Que é isso?
Tenho de terminar um trabalho. Eu sou, supostamente, um escritor.
Tem uma peça de Ibsen na TV hoje de noite. Oito e meia. Você vem?
Claro. Deixei aquele uísque. Não beba todo.
Henry enfiou as roupas, desceu a escada, entrou no carro e dirigiu para casa e sua máquina de escrever. Segundo andar, fundos. Todo dia, enquanto ele batia à máquina, a mulher de baixo batia no teto com a vassoura. Ele escrevia da maneira difícil, sempre tinha sido da maneira difícil: A Dança do Cachorro Branco...

Louise ligou às cinco e meia da tarde. Atacara o uísque. Estava bêbada. Embolava as palavras. Não dizia coisa com coisa. A leitora de Thomas Chatterton e D. H. Lawrence. A leitora de nove dos livros dele.
Henry?
Sim?
Oh, aconteceu uma coisa maravilhosa.
Sim?
Um rapaz negro veio me visitar. É lindo! Mais lindo que você...
Claro.
...mais lindo que você e eu juntos.
Sim.
Me deixou tão excitada! Estou a ponto de perder a cabeça!
Sim.
Você não liga?
Não.
Sabe como passamos a tarde?
Não.
Lendo seus poemas!
Oh?
E sabe o que ele disse?
Não.
Disse que seus poemas são sensacionais!
Tudo bem.
Escuta, ele me deixou muito excitada. Não sei o que fazer. Você não vem? Agora? Quero ver você agora...
Louise, estou trabalhando…
Escuta, você tem alguma coisa contra negros?
Não.
Eu conheço esse garoto há dez anos. Ele trabalhava pra mim quando eu era rica.
Quer dizer, quando você ainda vivia com seu marido rico.
Vou ver você depois? Ibsen é às oito e meia.
Eu lhe informo.
Por que aquele sacana apareceu? Eu estava bem, e aí ele aparece. Nossa. Estou tão excitada que preciso ver você. Estou ficando maluca. Ele era tão lindo.
Estou trabalhando, Louise. O problema aqui é “Aluguel”. Tente entender.
Louise desligou. Tornou a ligar às oito e vinte. Henry disse que continuava trabalhando. E continuava. Depois começou a beber e ficou simplesmente sentado na cadeira, simplesmente sentado na cadeira. Às dez para as dez, ouviu uma batida na porta. Era Booboo Meltzer, o astro de rock número 1 da década de 1970, atualmente desempregado, ainda vivendo de direitos autorais.
Oi, garoto – disse Henry.
Meltzer entrou e sentou-se.
Cara – disse –, você é um velho e belo gato. Eu não aguento.
Calma, garoto, gato está fora de moda, o quente agora é cachorro.
Tenho um palpite de que você precisa de ajuda, coroa.
Garoto, nunca foi de outro jeito.
Henry foi à cozinha, pegou duas cervejas, abriu-as e voltou.
Estou sem xoxota, garoto, o que pra mim é o mesmo que estar sem amor. Não consigo separar as duas coisas. Não sou tão vivo assim.
Nenhum de nós é vivo, Vovô. Todos precisamos de ajuda.
É...
Meltzer tinha um tubinho de celuloide. Cuidadosamente, despejou dois montinhos brancos na mesa de café.
Isso é cocaína, Vovô, cocaína...
Ah, ha.
Meltzer meteu a mão no bolso, puxou uma nota de cinquenta dólares, fez um canudo bem comprimido e enfiou-o no nariz. Apertando a outra narina com um dedo, curvou-se sobre uma das manchas brancas na mesa de café e inalou-a. Depois enfiou a nota de cinquenta dólares na outra narina e cafungou a segunda mancha.
Neve – disse Meltzer.
É Natal. Muito apropriado – disse Henry.
Meltzer bateu mais duas manchas e passou os cinquenta. Henry disse:
Guenta aí, eu uso a minha.
E pegou uma nota de um dólar e cafungou. Uma para cada narina.
Que acha de A Dança do Cachorro Branco? – perguntou Henry.
Isto aqui é que é “A Dança do Cachorro Branco”, disse Meltzer, batendo mais duas carreiras.
Nossa – disse Henry. – Acho que nunca mais vou ficar de saco cheio. Você não está cheio de mim, está?
De jeito nenhum – disse Meltzer, cafungando através da nota de cinquenta dólares com toda a força. – Vovô, de jeito nenhum…

Charles Bukowski, em Numa Fria