Quando me graduei na Rhode Island
College, uma voz em algum lugar distante no fundo da minha mente —
que sempre foi verdadeira, franca e, em retrospecto, maravilhosamente
consciente, ainda que eu nem sempre tivesse coragem de ouvir, mas,
uma vez que ouvia, servia-me com perfeição — guiou-me para que eu
me inscrevesse em um programa de verão de seis semanas no Circle in
the Square Theatre em Nova York. Fui aceita depois da audição
da Urta em Nova York.
Eu tinha uma bolsa de estudos
garantida para o programa de seis semanas, mas precisava de dinheiro
para viver na cidade durante aquele tempo. Uma mulher incrível, Iona
Dobbins, cuidava do Conselho Estadual de Artes de Rhode Island na
época. Ela se dedicava aos artistas e às artes. Chorei no
escritório dela, implorando por dinheiro. Ela ouviu minha história,
ofereceu-me um lenço e disse: “Vou arranjar o dinheiro para você.”
E arranjou. Ela me deu mil e duzentos dólares.
Isso me incentivou a ganhar o restante
do dinheiro necessário para ir para Nova York e estudar naquele
grande teatro.
No verão, um mês antes do começo do
programa, trabalhei em uma fábrica horrível. Aos atores que dizem:
“Ah, não me importo, não vou comprometer meu trabalho, mesmo que
eu tenha que viver na pobreza”, eu respondo: “Você nunca viveu
na pobreza. Se já foi pobre, quando criança ou adulto, sabe que não
é brincadeira.”
Trabalhei em fábricas que aceitavam
mão de obra inscrita em agências de emprego. Você se inscrevia
para trabalhar em qualquer lugar que precisasse de gente naquele dia.
Às seis da manhã, entrava em uma van lotada e era levado até à
fábrica. Em Central Falls, conheci pessoas que trabalhavam em
fábricas — pessoas com as quais cresci, imigrantes ilegais que
chegavam sem qualquer habilidade. Até minha mãe trabalhou em
algumas.
Trabalhei em uma fábrica que só
fazia caixas. Era só isso. Fazer caixas. O. Dia. Todo. Trabalhei em
outra fábrica e então comecei no P-PAC, o Providence Perfoming Arts
Center, como atendente de telemarketing, o que é horrível. As
pessoas gritam com você: “Pare de me ligar, porra! Não quero que
você me ligue. Blá-blá-blá.” É um ótimo treinamento para
atuar pelo tanto de humilhação e rejeição sofridos. Eu tinha uma
técnica: perguntava pelo homem da casa se uma mulher atendesse.
Usava minha voz mais sexy. Quase sempre a mulher perguntava: “Quem
é que está ligando?” Então eu as pegava. Conseguia mantê-las na
linha. Era o meu único truque.
Minha vida estava de pernas para o ar
no verão em que ganhei dinheiro suficiente para inteirar com o do
Conselho Estadual de Artes de Rhode Island e ir à Nova York. Enfim
aproveitaria meu tempo como atriz no Circle in the Square Theatre.
Quando cheguei lá, também consegui
um trabalho distribuindo panfletos de Tamara: The Living Play na
Times Square. Era quase como um teatro com direito a jantar. Você
entrava em um prédio na Quinta Avenida, e assistia à peça — um
misterioso assassinato — acontecendo bem ali, no cômodo em que
você estava. Então, cada personagem ia para um cômodo diferente, e
você tinha que decidir qual queria seguir. No fim, o mistério era
resolvido no mesmo cômodo onde começara. Durante o intervalo, o
jantar era servido.
Uma amiga, que também estudara na
Rhode Island College, era a gerente de marketing da peça: “Viola,
pago vinte dólares por hora em dinheiro para distribuir panfletos da
peça na Times Square.”
Aquele foi um dos meus trabalhos
durante o programa de seis semanas no Circle in the Square. Eu só
distribuía os panfletos — não consegui um papel na peça, porque
acabara de sair da faculdade, não tinha agente e mal chegara à Nova
York, vinda de uma cidadezinha qualquer de Rhode Island. Eu
definitivamente não era uma profissional ainda.
Eu me desenvolvi no Circle in the
Square. Amava, amava, amava Nova York! Morava em um loft em Gramercy
Park com duas mulheres que conhecia da Rhode Island College, Donna e
Mary. Nova York despertou uma parte de mim que estava sempre muito
amedrontada. A cidade me tirou da minha zona de conforto. Nova York
tinha uma energia diferente. As multidões, o cheiro, o barulho, os
prédios, a vida. Homens assobiando ao passar por você no metrô. Em
um dia, aprendi a usar o trem. Só aprendi. Fui a restaurantes e
delicatéssens administradas por pessoas de todas as partes do mundo.
Recebi a melhor formação de atuação
que existe. Tive muitos professores incríveis. Ron Stetson, Dr.
Hutchinson, Rob Dimmick, Elaine Perry, David Burr. Mas Alan Langdon,
naquele programa de seis semanas no Circle in the Square Theatre, no
verão de 1988, foi o melhor que já tive. Voltei à vida sob a
tutela dos professores de lá, como Jacqueline Brooks. Grandes
atores, como Philip Seymour Hoffman, Felicity Huffman e Kevin Bacon,
estudavam lá. Tínhamos estudo de cena, de atuação, movimento,
voz, tudo sem barreiras e com muita coragem. Era compreensível que
um programa como esse nos impossibilitasse de nos esconder
emocionalmente.
Alan mesmo era, bem, um homem
estranho. Misterioso. Pensando agora, acho que ele era simplesmente
mais calado. Como artistas, estamos tão acostumados com
personalidades exibicionistas, que quase nos ofendemos quando alguém
não é assim. A extravagância de Alan estava em sua intensa
observação silenciosa.
Havia quase trinta jovens no meu
grupo, e mais de cem estudantes no total, e fazíamos duplas para as
cenas. Todos vinham de partes diferentes do país e estavam em
apartamentos em diferentes áreas da cidade. Íamos aos apartamentos
uns dos outros ou, às vezes, praticávamos uma cena em um pórtico
de entrada. Entrávamos, fazíamos a cena, e Alan só observava.
Então subia e ficava nos fundos do cômodo e se sentava de novo. Era
como se ele assistisse em silêncio diante de uma partida de futebol
e por dentro estivesse ansioso porque seu time estava prestes a
vencer. A cena terminava e havia sempre um silêncio cortante. Ele
então fazia uma série de perguntas ou algo para nos acordar.
Uma atriz — Emily — que tinha uma
voz muito, muito suave e sempre parecia ansiosa fazia parte do grupo
naquele verão. Ela sempre parecia assustada. Era muito doce e
educada, quase demais, até. Participava do programa não porque
queria ser atriz, mas para se encontrar. Ou se curar? De quê, não
sei. Um ator leva consigo sua história para o trabalho — passado,
presente, medos, conflitos, humor, traumas.
Emily decidiu fazer uma cena da peça
Agnes de Deus, de John Pielmeier. A história é sobre
uma jovem freira que engravida dentro do convento. Ela insiste que
não teve relação sexual e diz que Deus a engravidou. Não há
evidências de ninguém no monastério ou no quarto dela. Em
determinado momento, ela começa a sangrar pelas mãos, um estigma.
Parece que o bebê pode ser caso de concepção imaculada. A Madre
Superiora chama uma psiquiatra indicada pelo tribunal para fazer uma
avaliação. Mas o conflito na cena que Emily escolheu é entre a
insistência lógica da psiquiatra e a insistência passional da
jovem freira tão temente a Deus.
A cena começa com a atriz fazendo a
psiquiatra que prende Agnes (Emily) à parede, gritando:
— Agnes, de quem é esse bebê? Me
diga! Me diga!
Ela deveria gritar de volta: “É de
Deus!”
Emily sussurrou um “É de Deus”
quase inaudível.
Eu me encolhi, sabendo que Alan iria
fundo para descobrir o que a bloqueava.
Houve o silêncio de sempre depois da
cena. Alan olhou para Emily e enfim disse:
— Onde está sua voz?
A essa altura, ela estava tremendo.
Disse que não sabia. Alan insistiu:
— Você precisa saber. Quem pegou
sua voz?
Naquele verão, Emily e eu ficamos
muito próximas. Nós duas éramos extremamente tímidas e
desajustadas, e pessoas assim costumam se unir. Falávamos sobre a
vida o tempo todo, e ela só dizia que queria melhorar. Não sei
exatamente do quê. Mas até eu queria saber onde ela perdera a voz e
por que sempre parecia assustada, tensa.
Mostrando intensa emoção, ela disse,
por fim:
— Quando eu tinha 9 anos, meu pai me
prendia na cama, me espancava e me estuprava. Ele cobria minha boca.
A turma inteira ficou em silêncio.
Meu coração acelerou.
Alan perguntou se ela queria refazer a
cena. Emily queria. Ela estava lutando contra algo que não era a
atuação. Essa aula foi uma ferramenta para desbloquear uma dor
profunda, para salvar uma garotinha de 9 anos. O grito dela foi
semelhante ao som de um animal prestes a ser massacrado por uma
alcateia, invocando cada grama de força no corpo para lutar, para
viver. Também era o som da perda.
— É DE DEUS! ESTE BEBÊ PERTENCE A
DEUS!
Ela desmoronou no chão. Alan a
amparou. Estávamos todos em vários estágios de choque e lágrimas.
E eu? Eu fiquei com inveja. Todas as
minhas cenas eram carregadas de emoção, bem exploradas, eu achava.
Mas aquilo era outro nível. Eu estava ferida, e isso me levara até
ali, à atuação, a Nova York, a querer me curar e viver e me sentir
viva!
Stanislavski, Sanford Meisner, Stella
Adler, todos os professores do famoso Actors Studio, diziam para
estudar a vida. São os momentos que você estuda a vida que
são injetados em seu trabalho. Você está criando seres humanos.
Não está criando apenas um jeito diferente de andar, falar, sentir.
O Circle in the Square Theatre criou um lar para mim e o fez com
amor. Alan Langdon ainda dá aulas no Circle in the Square.
Depois de seis semanas no programa de
verão, eles ofereciam uma vaga no teatro para um dos estudantes.
Eles me ofereceram. Não aceitei, dizendo: “O Circle in the Square
é um ótimo programa de treinamento, mas quero um programa que me
permita arranjar um emprego.”
Eu queria um programa de formação em
que, assim que terminasse, estivesse trabalhando como atriz e tivesse
um agente. Sem agente, não dava para arranjar trabalhos. Queria
poder dizer que me formei e que agora estava trabalhando como atriz.
Queria a garantia de um salário para pagar minhas contas, para
colocar comida na mesa. Não queria voltar para Central Falls.
Perguntei a Mark, outro grande amigo
meu que estava no programa na época:
— Em qual programa posso entrar que,
ao final, fazemos audição para pessoas que podem nos dar um
emprego?
— Bem, seriam Juilliard, Yale e NYU,
Viola. Esses são os programas, e talvez Suny Purchase, onde os
alunos fazem audições no quarto ano — respondeu ele. —
Antigamente era chamados de audições da liga porque havia uma liga
de 13 escolas. Mas agora essas quatro convidam agentes e diretores de
toda parte para as audições do quarto ano.
Tirei um ano sabático e ao final me
candidatei à Juilliard, uma das quatro que Mark mencionou. Teria me
candidatado a todas as três, mas só tinha dinheiro para uma taxa de
inscrição.
Já me perguntaram se fiz contatos no
Circle in the Square, se formei uma rede de contatos por estar lá.
Acho que até havia uma rede desse tipo em Nova York, mas percebi que
não existe nada disso, nem uma cartilha ou um atalho para garantir a
sua entrada no mercado, exceto enfim conseguir um trabalho que leve
ao seguinte, e assim por diante.
Meu próximo passo após sair do
Circle in the Square seria tentar entrar em um dos programas que Mark
mencionou, mas eu havia perdido as datas das inscrições para
ingressar no ano seguinte. Foi aí que tomei a decisão de tirar um
ano sabático. Sabia que precisava crescer. O Circle in the Square
Theatre fica bem no meio de Manhattan. Pegava o metrô sozinha.
Morava em um apartamento na Gramercy Park com duas amigas da Rhode
Island College. Nunca tinha transado, nunca tinha tido um namorado,
nunca tinha morado sozinha. Nunca tinha viajado para o exterior.
Queria crescer. Queria experimentar a vida. Queria que minha vida
fosse tão expansiva quanto sentia que minha mente, minha imaginação
eram.
Eu me lembro de rezar. Eu era uma
pessoa que não ia à igreja. Mas, quando jovem, comecei a rezar toda
noite, antes de me deitar, com o objetivo de conseguir dormir, de
acalmar minha ansiedade. Rezava ainda mais quando meu pai espancava
MaMama, quando a coisa ficava muito feia. Rezava quando ele cortava o
braço dela. Rezava quando a furava na perna ou no pescoço com um
lápis. Era tudo o que eu conseguia pensar em fazer. Agora, aos 21
anos, rezava para que a minha vida se manifestasse de uma forma que
me fizesse digna de me tornar uma atriz profissional, viajar para
fora do país e arrumar um namorado.
Naquele ano, me tornei atriz
profissional. Minha primeira produção profissional foi em
Providence, Rhode Island, na Trinity Repertory Company, em Joe
Turner’s Come and Gone. Depois que voltei daquelas seis semanas
de formação em Nova York, atuei na Trinity Rep por um ano. O
diretor artístico era Adrian Hall. Tinha feito audições para ele,
eu o conhecia. Ele vira meu trabalho. Ele se aposentou durante o ano
sabático, mas fizemos umas três peças juntos. Depois que se
aposentou, a diretora Susan Lawson, cujo péssimo apartamento em Nova
York eu mais tarde sublocaria quando entrasse para a Juilliard,
assumiu a direção da peça.
Tinha um emprego de dia e outro à
noite. Voltei a trabalhar como atendente de telemarketing no
Providence Perfoming Arts Center durante o dia. As apresentações da
Trinity Rep eram à noite, o que deixava minhas manhãs livres. O
treinamento de humilhação/rejeição durante o dia; e então atuar
profissionalmente em uma peça à noite.
Danielle (então com 11 anos) e eu nos
tornamos ainda mais próximas durante meu ano sabático. Embora eu
tivesse colegas de quarto, às vezes ela dormia na minha casa. Ou eu
dormia na casa da minha mãe no chão com ela, porque o apartamento
dos meus pais era pequeno demais. Foi por isso que arranjei meu
próprio apartamento em Pawtucket. Minha colega de quarto era
uma pessoa muito gentil, amiga de uma amiga, e o apartamento era
lindo. No entanto, a senhorita era uma racista raivosa. Nunca conheci
ninguém como ela. Era brasileira e ficou horrorizada quando me
mudei, pois pensou que eu fosse prostituta ao me ver esperando o
ônibus.
Quando minha colega de quarto, que era
a única pessoa com quem ela falava, contou que eu era atriz, ela não
entendeu o que isso significava. Disse que eu não tinha permissão
para receber visitas, nem mesmo minha irmãzinha, porque crianças
negras destroem propriedades. Disse que tinha medo de ser estuprada e
morta por mim ou por qualquer homem negro que eu convidasse para o
apartamento. Ela deixava um taco de beisebol encostado perto da
porta. Muitos anos depois, quando já tinha me mudado para Los
Angeles, fui a Rhode Island visitar minha família e, durante um
passeio no shopping, vi uma mulher vendendo joias em um estande. Era
ela.
— De onde você é? — perguntei.
Ela respondeu:
— Do Brasil, querida.
E foi extraordinariamente gentil.
Coloco essa mulher na lista de racistas que gostam de negros desde
que estejam bem longe deles.
Mas então entendi que a discriminação
era parte da cultura norte-americana — do Norte e do Sul —,
influenciada pelas leis de Jim Crow. Quer você tenha uma educação
formal ou não, a terrível força do racismo o atinge como um
martelo. Permeou minha vida quando eu tinha 8 anos e aos 23 ainda me
atormentava. Quando se tem pouco dinheiro, não há como combatê-lo.
Onde eu poderia morar? Minha irmã Deloris estava vivendo com o
namorado, que logo se tornaria seu marido, em um apartamento de um
quarto. Minha irmã Dianne morava em Maryland, e minha irmã Anita
tinha dois filhos e enfrentava os próprios percalços.
Eu queria ter poder e recursos naquela
época para mandar aquela mulher racista enfiar o apartamento no
rabo, mas aí seria o MEU rabo no chão da casa dos meus pais. E isso
era como ser sentenciada a reviver a minha infância. Eu continuava
correndo.
Em Joe Turner’s Come and Gone,
há um papel de uma menina de 11 anos, Zonia. Danielle fez o teste e
conseguiu o papel. Isso em uma produção profissional dirigida por
Israel Hicks, provavelmente um dos melhores diretores de teatro da
indústria na época. Atores cheios de medo vinham de Nova York para
os testes. Era uma excelente produção. Danielle foi bem e conseguiu
boas resenhas do Boston Globe, do Providence Journal e
de muitos outros jornais. Ela também só tirava dez na escola.
Depois da aula, ela pegava o ônibus
de Central Falls para o centro de Providence para ensaiar e, quando
estávamos no período de produção, pegava o ônibus para chegar ao
teatro a tempo. Cara, ainda estávamos correndo atrás de ônibus o
tempo todo. Eu conseguia fazer Danielle correr com facilidade se a
incentivasse: “Danielle! A corredora mais rápida de Central
Falls.” À noite, depois da peça, quando estávamos exaustas, eu a
levava de volta para casa de ônibus e ficava com ela na casa dos
meus pais, porque já estava tarde demais para caminhar de volta para
o meu apartamento, que era perto dali.
Meus pais já não brigavam com a
mesma intensidade nessa época, embora o alcoolismo ainda estivesse
presente.
Enquanto ensaiava para Joe Turner’s
Come and Gone na Trinity Rep, dois acontecimentos importantes
ocorreram. Fiz teste para a Juilliard e conheci David, o homem da
minha vida pelos próximos sete anos. David estava na peça. Ele
interpretava Jeremy, e eu, Molly. Era um ator profissional vindo de
Boston. Para mim, era como conhecer o Marlon Brando negro. David era
um ótimo ator. Eu o vi. Ele veio até mim. Senti que estava
completa, absoluta e indubitavelmente apaixonada. Ele foi meu
primeiro namorado.
David era mais velho e muito negro.
Havia mergulhado na história negra, na consciência negra e na
literatura negra. O gênero musical preferido dele era jazz. Também
era um entusiasta do cinema. Começava assistindo a filmes de manhã
e só parava no dia seguinte. Suas habilidades com a harmônica ou
com o berimbau de boca eram espetaculares. Tudo a respeito do nosso
relacionamento me fazia sentir tão, tão… adulta. Depois da peça,
íamos ao bar ao lado. Nos conectamos tomando Long Island Iced Tea.
Eu gostava justamente porque tinha o mesmo gosto do chá gelado. Eu
só tomava um. Eu era uma garota adulta de 23 anos e uma atriz
profissional, usando os jargões da área, fazendo o que atores
profissionais fazem — me cercando de atores experientes.
Enquanto a peça estava em cartaz,
tínhamos alguns dias livres. Foi quando viajei para Nova York para a
audição da Juilliard.
Queria ser capaz de fazer audições.
Um ator não aparece simplesmente e diz: “Quero o papel.” Um
agente é um canal, a conexão entre o ator e o trabalho. Nem todos
os agentes são iguais. Alguns não conseguem uma audição para você
nem para uma mísera fala em um programa de TV. Meu objetivo era
frequentar a Juilliard e me graduar tendo um excelente agente.
Entrei no trem de Providence para Nova
York, pensando em arrasar na audição e voltar para minha chamada
das sete e meia da noite para Joe Turner’s Come and Gone na
Trinity Rep. No teatro, sete e meia da noite é sua chamada de meia
hora. Significa o horário que você tem que estar no teatro. É
quando o diretor de palco chama. É como bater ponto. Você tem que
estar no camarim às sete e meia da noite.
Eu não fazia ideia de que as audições
para entrar na Juilliard levavam três dias. Descobri isso muito mais
tarde, depois de trocar histórias de admissão com colegas. Eu
sequer sabia que o programa da Juilliard é de quatro anos. O da Yale
é de três. O da NYU é de três. Minha intenção era simplesmente
ir para uma faculdade onde pudesse continuar minha formação e
conseguir um agente… e eu queria melhorar.
Sem saber do processo de audição de
três dias, reservei uma data, pensando: Bem, vou lá e direi a eles:
“Vocês vão me dizer se entrei ou estou fora. Porque preciso
voltar. Preciso pegar o trem de volta.” Levei quatro horas e
meia para chegar, e meia hora da Penn Station até a Juilliard, que
fica em Midtown Manhattan, na Sixty-Fifth Street com a Broadway, e
levaria quatro horas e meia para voltar. Eu tinha apenas 45 minutos
para a audição.
Estava bem confiante de que ia entrar
na Juilliard, sem fazer ideia da complexidade envolvida no processo
de admissão. Sentia que tinha poder na minha atuação. Tinha a
sensação de que era boa. Quanto mais tempo passava no ambiente do
teatro, mais confiante ficava. E tinha facilidade em viver em Nova
York, mesmo tendo vindo de Central Falls.
No dia em que fui à audição na
Juilliard, meu tempo estava contado. Entrei no primeiro trem e
cheguei cedo. Pesava mais ou menos 74 quilos e estava nervosa,
sentada em uma sala com atores esguios que tinham frequentado boas
escolas desde os 2 anos, faziam aulas de dança desde que tinham
aprendido a andar, todos se aquecendo de acordo com as técnicas de
balé. Eu me sentei lá, esperando a minha vez. Não fazia ideia do
que vestir, então usei jeans largos, um suéter vermelho enorme e um
turbante com brilhos prateados, roxos e dourados. Era inexperiente
demais para saber que tudo aquilo poderia desviar a atenção para a
minha performance.
Meu material de audição eram as
falas de Celie, em A cor púrpura, e algo de As eruditas,
de Molière. Era necessário um material contemporâneo e um
clássico. Geralmente três minutos e meio, no máximo. Isso é um
verdadeiro monólogo. Às vezes, dava para ir um pouco além, mas
aquele era o padrão. Eu estava confiante com o meu material.
Na Juilliard, você faz audição para
três ou quatro professores e, se for bem, vai para a etapa seguinte
e faz outra audição. Então vai para a etapa seguinte, faz outra
audição, até que todo o corpo docente tenha visto você. Em
seguida, vêm as entrevistas. Os candidatos ficavam em hotéis,
reservando tempo para tudo aquilo. Eu só tinha 45 minutos e não
fazia ideia de quão pouco ortodoxo era aquilo. Fiz meus monólogos,
agradeci e voltei para a sala cheia de atores que pareciam ter se
preparado para aquele momento desde a infância.
O ambiente é uma hierarquia firme e
autoritária; o corpo docente é supremo, e é absolutamente rigoroso
sobre a formação clássica; você só fala se falarem com você.
Coloquei o turbante no cabelo outra vez e disse:
— Acho melhor informar que tenho 45
minutos. Estou em uma peça em Providence. Minha chamada é às sete
e meia. É uma viagem de quatro horas e meia de trem. Precisam me
dizer se estou dentro ou fora.
Ainda não acredito que falei isso.
Eles pareceram chocados, como se eu
tivesse dado um tapa na cara deles. Mas disseram:
— Tudo bem, só aguarde.
Eu me sentei na sala, me sentindo
deslocada. Todo mundo estava fazendo aquecimento vocal ao mesmo
tempo. Gritando, berrando, uivando. Fazendo posturas de yoga. Essa
merda toda. Fiquei sentada em silêncio no canto e olhei para o
corredor, enquanto os professores e o diretor carregavam cadeiras
para a grande sala de treinamento da Juilliard, a sala 103. Ouvi
sussurros: “O que está acontecendo? O que está acontecendo?”
Então alguém me chamou. Os professores aceleraram meu processo. Em
vez de esperar três dias, me pediram para fazer a audição de novo
para todos os professores de todos os departamentos em uma única
sala.
Quando me chamaram — “Tudo bem.
Viola, em cinco minutos” —, eu sabia que tinha toda a atenção
das pessoas naquela maldita sala. Fiz minha audição para todos
eles. Eles me entrevistaram. Inclusive o chefe do departamento, que a
propósito era um babaca; um grande diretor; um grande intérprete de
Shakespeare… mas um babaca. Michael Langham, que foi diretor do
Stratford Festival no Canadá por muitos anos, disse:
— Há coisas em que você precisa
trabalhar. Mas vemos seu talento como atriz, sua riqueza emocional.
— Obrigada. Obrigada. Obrigada.
Obrigada. Obrigada. Obrigada — respondi.
Pensando agora, o que eu queria dizer
mesmo era: Rápido, porra, me contem logo se entrei, porque
preciso pegar o trem. Preciso ir. Mas sabia que tinha entrado.
Corri para o trem e voltei a tempo da peça.
Entrar em uma faculdade é geralmente
uma história maravilhosa, que equivale a se apaixonar ou estar em
lua de mel. Há uma diferença entre se apaixonar e estar casada de
verdade. Quando recebi a carta de aceitação, já sabia que tinha
entrado. A magia e a alegria da audição eram um sonho em segundo
plano, esquecido havia muito. Queria ter podido me concentrar só no
fato de que minha audição tinha sido foda.
De volta a Providence, podia perceber
o quanto David amava Danielle. Ele amava crianças em geral. Já
tinha um filho de um relacionamento anterior. Durante os intervalos
dos ensaios, comíamos os sanduíches mais maravilhosos da Mark’s
Deli. Depois da apresentação, à noite, eu levava Danielle para
casa e andava de volta para o meu apartamento. Como Danielle era
menor de idade, outra atriz fazia o papel de Zonia em quatro
apresentações por semana. Elas revezavam. Nas noites em que
Danielle não se apresentava, eu ficava com David.
Por mais tentador que seja romantizar
essa época da minha vida, realmente não posso. Eu estava tão
incompleta... Pedi a Deus por um namorado, por um status de atriz
profissional e pela experiência de viajar para o exterior. Mas não
pedi sabedoria. Não pedi amor-próprio. E isso era visível.
Eu estava com um homem que nunca me
amou. Meu objetivo naqueles sete anos foi ganhar o amor dele. Eu
rezava, tentando me convencer de que AQUELE seria o dia em que ele
confessaria que não podia mais viver sem mim. AQUELE seria o dia em
que ele me olharia e diria que eu era linda. Praticamente lhe dei
passe-livre para relacionamentos com outras mulheres. Eu me sentia
sortuda só por tê-lo. Estava ferida a esse ponto. Ele nunca se
lembrava do meu aniversário, das minhas comidas preferidas, do
Natal, do Dia dos Namorados. Eu gostava mais dos marcos de conquista
externos do que da sensação interior de construir um lar com um
homem, a sensação de pertencer a si mesma.
Ele não era um ótimo namorado, mas
eu não exigia nada dele. Não estabelecia limites. Não o ensinei
como me tratar, então eu também não era a melhor namorada. Eu
costumava sentir inveja até de pessoas que estavam em
relacionamentos ruins.
Ouvia mulheres dizerem: “É, ele
estava me implorando para aceitá-lo de volta depois que me traiu.
Ele chorava, repetindo o quanto me amava e me queria, então o
aceitei de volta.” E eu pensava: Ele chorou e disse que a queria
e a amava? Nunca ouvi aquilo em sete anos. Mas não era David.
Era eu.
Antes de David, eu tinha conhecido
outra pessoa no caminho para o trabalho. Ele se tornou “Meu
Primeiro Namorado Sobre Quem Nunca Falo”. O nome dele era Carl, um
homem genioso. Nossa conexão começou com ele me dizendo no ponto de
ônibus que eu era bonita, e eu sorri. Eu nunca sabia onde ele
estava, o que fazia, onde trabalhava, nada. Eu me lembro pouco dele
porque não ficamos juntos por muito tempo. Transei com ele quatro
vezes. Fico envergonhada porque tenho valores puritanos que na época
não admitia. Me envergonho também porque, da última vez em que
estive com ele, fui até sua casa para dizer: “Terminamos.” Ele
queria transar e eu definitivamente não queria. Estava menstruada.
Uma briga começou. Ele ficava puxando minha calça para baixo.
Pensei em dar um soco nele, mas não dei. Talvez, se agisse assim,
estaria reconhecendo que o que estava acontecendo era estupro. Então
cedi e depois fui embora, envergonhada. Foi como me senti, mas por
fora o que deixei transparecer foi uma jovem que estava no controle
da situação. Compartimentalizei o trauma e o filtrei para mentir a
mim mesma e me manter segura. Outro segredo sujo, outra vergonha.
Por que não soquei a cara dele? Por
que não lutei da mesma forma que a Viola de 6 anos tinha feito com
um menino que tentou beijá-la e tocá-la na casa dele? A Viola de 6
anos socou aquele garoto o mais forte que conseguiu. Sem remorso.
Diabos! Ele me chutou com força depois, mas me levantei, chorando, e
acabei com ele de novo! Em algum momento, acho que senti que ela
estava errada. Que em minha jornada “para o topo”, para ser mais
“evoluída”, deixei a briguenta para trás. Abri mão das minhas
garras.
David era um ator de fora da cidade.
As regras de equidade ditavam que o teatro tinha que dar a ele um
apartamento durante a temporada da peça. Eu tinha outro lugar para
ficar, para descansar minha cabeça. No tempo com ele me conectei com
outra parte da minha alma que me definia — minha negritude. David
era corajoso e não se desculpava por ser negro. Uma vez, viu uma
enquete no programa Tony Brown’s Journal da PBS que dizia
que 80% das pessoas brancas sentiam que as negras não eram
patriotas. Isso o irritou tanto que David estudou cada guerra travada
pelos Estados Unidos e o envolvimento afro-americano nelas. Cada uma
das guerras que lutamos. Mesmo durante a Era Jim Crow, quando não
estávamos nem perto de ter os mesmos direitos que os brancos. Aquilo
era patriotismo! Se isso não dizia muito sobre nosso amor e
comprometimento pelo país, nada mais dizia. Ele também estudou
música e história negra.
Pouco antes de eu ir para a Juilliard,
David foi a Los Angeles para atuar na peça de Shakespeare
Medida por medida no teatro The Old Globe, em La Jolla. Em
seguida, se mudou de volta para Rhode Island para se tornar um membro
da companhia na Trinity Rep. Durante meus anos na Juilliard, toda vez
que ia para casa nos fins de semana ou durante os feriados, ficava
com David em seu apartamento.
David era um ator muito dedicado. Eu
era uma atriz iniciante e, na época, uma estudante de atuação.
Durante meu ano sabático, trabalhei na P-PAC vendendo ingressos por
telefone enquanto fazia uma peça atrás da outra na Trinity Rep.
Enfim, era uma atriz com trabalhos, não dava para juntar dinheiro,
mas ganhava o suficiente para viver. Rhode Island não era um lugar
caro para morar. Eu não tinha carro, mas alugava um apartamento que
dividia com uma colega de quarto. Podia comprar comida. Conseguia
fazer tudo o que era necessário para sobreviver. Eu era uma atriz
muito ocupada.
Mas não queria ficar em Rhode Island.
Queria crescer, viajar. No fim do meu ano sabático, me demiti da
Trinity Rep e fui para Edimburgo, na Escócia, onde apresentei três
peças no Fringe Festival. Um dos meus mentores, o Dr. Bill
Hutchinson, preencheu a inscrição para que entrássemos. Fui para
Boston tirar meu primeiro passaporte e fiquei maravilhada com como
meus sonhos estavam se concretizando. É o maior festival de teatro
do mundo.
Emily Baker, que conheci no programa
de seis semanas no Circle in the Square me emprestou dinheiro para eu
participar. Ela escrevera uma peça sobre a experiência de ter sido
abusada pelo pai, e queria que eu atuasse. A outra peça em que atuei
no festival foi uma comédia escrita por um professor de teatro da
Rhode Island College. Interpretei o papel da esposa de Sócrates, que
faz terapia porque o marido nunca falava com ela. Ele só pensava, o
tempo todo. A terceira peça era de outro professor/diretor da RIC.
Assumi o papel da serpente, numa reinterpretação de Adão e Eva.
Voei pela British Airways e fiquei em um apartamento na Sir Arthur
Conan Doyle Drive, em Edimburgo.
Do apartamento nós fazíamos uma
longa caminhada até o teatro. Durante o dia, visitávamos o castelo
de Mary, a rainha da Escócia, explorávamos a cidade, comíamos
peixe com fritas e vinagre de malte. À noite, nos apresentávamos
e víamos outras apresentações. Uma delas, do Traverse Theatre, na
Escócia, era sobre homens em uma prisão sul-africana. Eles ficavam
nus o tempo todo. Às vezes, simulando sexo. Em certa altura, usavam
um balde para fazer suas necessidades e, mais tarde, jogavam o
conteúdo uns nos outros. Ou havia cocô de verdade no palco, ou era
feito de argila. Eu tinha que me forçar a acreditar que era feito de
argila. De jeito nenhum eles conseguiriam fazer tudo naquele timing.
Era instigante, e a surpresa eram as
pessoas idosas na plateia, que gostavam muito da peça. Vi uma
produção de Salomé do renomado auteur Steven
Berkoff. Meu favorito foi o Festival de España, de Barcelona. Era
uma extravagância pagã com fogos de artifício em uma escola só de
meninos. A escola parecia um castelo. Os atores se vestiam como
metade homens, metade bestas, com fogo saindo das ventas. Alguns
vestiam fantasias de feras, fingindo pendurar roupas feitas de fogo
em varais feitos de fogo. Símbolos fálicos enormes disparavam fogos
de artifício no céu, que explodiam da maneira mais magnífica. Meu
amigo Doug Cooney e eu nos entreolhamos boquiabertos. Doug era um
estudante de teatro na Rhode Island College e interpretava Sócrates
em uma de nossas peças. Acho que corremos pelas ruas rindo,
revigorados, maravilhados pelo que tínhamos acabado de assistir. Era
o puro poder sobrenatural do talento artístico, uma droga que dá
vida, injetada por Deus. Na presença dela, você sente que pode
voar!
A noite era o meu momento favorito. Em
meio a todos aqueles atores em um apartamento grande, falando,
conversando, rindo, tomando uísque, jogando cartas, partilhando
sobre o processo de atuação, lentamente passei a me sentir parte de
alguma coisa. Costumava me conectar a uma ou duas pessoas num grupo,
mas daquela vez estávamos todos juntos.
Voei para San Diego depois do Fringe
Festival para ficar uma semana com David, que estava com uma peça em
cartaz. Então pegaria um ônibus de San Diego para Los Angeles e
ficaria no apartamento do meu amigo Gary planejando meu voo para Nova
York para o meu primeiro dia na Juilliard na manhã seguinte. Peguei
então o ônibus de San Diego para Los Angeles. No meio da
viagem, o ônibus parou de repente, a polícia entrou e retirou 80%
das pessoas de dentro por não terem a identificação adequada.
Chegamos a LA e vi meu amigo Gary acenando muito.
— Oi, Gary!
— Pegue suas malas e corra!
Se não tivesse acontecido comigo, eu
diria que era mentira, mas uma onda de pessoas sem-teto começou a
nos cercar e agarrar. Estavam tentando pegar meus braços e malas.
Gary entrou no carro. Joguei minhas malas para dentro e pulei quase
no mesmo instante em que o carro começou a se mover.
Alguém deveria ter me dito: “Viola,
não comece sua nova vida assim. Não aperte start na sua nova vida
agora.” Mas decidi que voaria para Nova York, colocaria minhas
coisas no apartamento de Susan Lawson — que havia sublocado — e
iria para a minha orientação.
Peguei um táxi no aeroporto e, quando
chegamos ao prédio, pensei: Ah, tudo bem. Por fora é uma merda,
mas é o apartamento da Susan Lawson. Subi as escadas com todas
as minhas malas até o quarto andar. Quando abri a porta, fiquei na
soleira por vinte minutos, sem brincadeira.
Foi uma experiência traumática, como
ter transtorno dissociativo. Joguei minhas coisas no apartamento.
Totalmente deprimida, quase catatônica, peguei o metrô para ir à
orientação na Juilliard.
Eu estava prestes a entrar na barriga
do monstro. Juilliard estava prestes a acabar com o meu mundo. Eu
ficaria cara a cara não com Deus, mas comigo mesma.