Quem matou os mortos na guerra...

Com Torrente, apresentação da Morte do Decano no Instituto Cervantes. Duzentas pessoas na sala, duzentos fervores. Falei mais tempo do que devia e menos rigorosamente do que desejava. Ainda assim, duas ou três frases podem ter ficado na memória dos assistentes. Embora um poucochinho pelos cabelos, consegui introduzir aquela ideia minha, luminosa de tão óbvia que é, de que os mortos na guerra não servem para romances policiais porque ninguém está interessado em saber quem os matou e porquê…

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

Esplendor


O sol reverbera
Em todo esplendor nas folhas:
As árvores gratas.

あるいは太陽が輝いている
ページ全体の素晴らしさ:
心地よい木々として

Elilson José Batista, em O Sol dá têmpera à espada-de-são-jorge

Tea

Lady Millicent recebe suas amigas Agatha, Pamela e Fiona para chá na sua casa em Mayfair. O mordomo traz uma bandeja com o bule, as xícaras, o açucareiro, leite, rodelas de limão, sanduíches finos de pepino, scones e creme. Lady Millicent oferece:
MILLICENT — Tea?
TODAS — Yes. Oh yes. Lovely.
MILLICENT (servindo Agatha) — E pensar que quase ficamos sem chá...
AGATHA (assustando-se e quase derrubando a xicara) — O quê?!
MILLICENT — Vocês não souberam? Os plantadores de chá da Índia estiveram perto da falência.
PAMELA — O Times não deu nada!
MILLICENT — Foi há muito tempo. A Índia ainda era nossa. Destruímos a sua indústria de tecidos, para não competirem com a indústria inglesa, e a Índia teve que se dedicar exclusivamente à agricultura. Incentivamos os nativos a plantar chá, para nós, e ópio, para a China.
FIONA (tapando o riso malicioso com a pontas dos dedos) — Imaginem se fosse o contrário. O que você estaria nos servindo hoje, Millicent?
AGATHA — Cale-se, Fiona. Millicent, não nos deixe em suspense. O que aconteceu com os agricultores da Índia à beira da falência? Só a ideia de ficar sem chá...
MILLICENT — Foram salvos pela Coroa inglesa.
FIONA — Mas Margaret Thatcher não era contra os subsídios que premiavam a ineficiência?
AGATHA — Fiona, acho que vamos ter que jogá-la pela janela. A Coroa inglesa, na época, não era Margaret Thatcher. Era a Rainha Victoria, ou alguém parecido. Continue, Millicent.
MILLICENT — A agricultura da Índia quase faliu porque a China não queria comprar mais ópio.
PAMELA — Meu Deus, por quê?
MILLICENT — Preconceito. Estavam morrendo chineses demais. Ou alguma outra exótica razão oriental. O fato é que a Coroa forçou a China a aceitar o ópio da Índia. Foi lá, matou alguns milhares de chineses e acabou com a rebelião. Os chineses concordaram em continuar comprando ópio da Índia, que pode continuar produzindo o nosso chá. Como se sabe, não há nada para convencer as pessoas das vantagens do comércio livre como uma canhoneira, ou duas.
AGATHA (hesitando, antes de dar o primeiro gole) — Quantos chineses morreram, Millicent?
MILLICENT — Entre os que morreram das canhoneiras e os que morreram do ópio, alguns poucos milhões. Por que, Agatha querida?
AGATHA — Quero ter certeza que não tem nenhum chinês morto na minha xícara.
MILLICENT — Ora, Agatha. Com todos os goles de chá que os ingleses tomaram desde então, nossa conta de mortos na China foi saldada há muito. Não há mais chineses mortos em nosso chá.
AGATHA (tomando o primeiro gole) — Ainda bem. Sei que me fariam mal.
MILLICENT (para Pamela) — Açúcar?
PAMELA — Obrigada. Não dispenso o açúcar. Não sei como as pessoas podiam viver sem açúcar.
FIONA — Mas alguma vez não existiu açúcar?
MILLICENT — Aqui mesmo, na Inglaterra, durante muito tempo, não existia o açúcar.
FIONA — Nem para o chá?!
MILLICENT — Principalmente para o chá. Foi para assegurar o suprimento de açúcar para o chá, depois que tomamos gosto, que a cultura da cana cresceu no Novo Mundo. E foi para a cultura da cana crescer que importaram escravos da África. Pode-se dizer que a escravatura se deve ao gosto por chá com açúcar.
FIONA — De certa maneira, então, a escravatura é culpa da Pamela.
AGATHA — Por favor, Fiona. Quantos negros, Millicent?
MILLICENT — Você quer dizer, quantos negros morreram de maus-tratos e doenças para que houvesse açúcar para o nosso chá? É difícil dizer. Alguns milhões. Por que, Agatha querida?
AGATHA (continuando a tomar seu chá) — Por nada. Prefiro o meu sem açúcar.
MILLICENT (para Fiona) — Scones?
FIONA (hesitando antes de pegar um scone) — Você tem alguma história sobre os scones para contar, Millicent?
MILLICENT — Nenhuma, Fiona.
FIONA — Ninguém morreu para que existissem estes scones?
MILLICENT — Que ideia, Fiona. Eu mesma os fiz, e não há uma gota de sangue na minha cozinha.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

Diário de Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa


18.

Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever – dormir — que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?
Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir connosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um acto, uma realidade minha que me diferença deles. Na alma sou seu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas, e se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para Rua dos Douradores.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e C.ª será um dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irónica, mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Peabody


Quando Anse, por fim, mandou-me chamar, por sua própria conta, eu disse: “Ele acabou gastando inteiramente a mulher.” E eu disse: “Que coisa”, e no começo pensei em não ir, porque, se ainda pudesse fazer alguma coisa, eu teria de arrancá-la à força, Deus me perdoe. Pensei que talvez haja no céu a mesma ética estúpida da Faculdade de Medicina, e que provavelmente Vernon Tull me mandaria chamar outra vez, no exato momento, como Vernon sempre faz, tirando do dinheiro de Anse maior proveito do que tira de seu próprio dinheiro. Mas quando o dia, já avançado, não me permitiu prever o tempo, eu compreendi que o chamado viera de Anse e de mais ninguém. Compreendi que só um homem infeliz teria necessidade de médico quando irromper um ciclone. E eu sabia que, se ocorrera a Anse a ideia de chamar um médico, é porque já seria tarde demais.
Quando cheguei à nascente e desci e atei as rédeas da parelha, o sol já se escondera atrás de um barranco de nuvens negras semelhantes ao cume de um maciço montanhoso, semelhantes a um carregamento de cinzas ali derramado, e não ventava. Ouvi a serra de Cash a quilômetro e meio de distância, antes de chegar lá. Anse estava em pé rio alto do morro acima da vereda.
Onde está o cavalo?”, pergunto.
Jewel levou-o”, ele diz. “Ninguém mais conseguiria. Acho que você tem de ir a pé.”
Eu, subir a pé, com meus cento e dez quilos”, digo. “Subir este maldito morro?”
Ele está de pé, junto a uma árvore. Pena que o Senhor tenha feito o erro de dar raízes às árvores e pés e pernas aos Anse Bundrens que Ele espalha no mundo. Se Ele fizesse ao contrário, não haveria risco algum de esta região ficar algum dia desflorestada. Ou qualquer outra. “Que quer que eu faça?”, digo. “Que fique aqui parado, até que o vento me carregue, quando aquela nuvem despencar?” Mesmo a cavalo seriam necessários quinze minutos para cruzar o pasto até o alto da elevação e chegar à casa. A vereda parece um membro torto atirado contra a vertente. Anse não vai à cidade há doze «no». Eu só que- ria saber como é que sua mãe subiu até lá para trazê-lo ao mundo, visto que ele é o filho de sua mãe.
Vardaman vai trazer a corda”, ele diz.
Dentro em pouco Vardaman aparece com a corda do arado. Entende a ponta a Anse e desce pela vereda, desenrolando-a.
Segure firme”, eu digo. “Já registrei esta visita nos meus livros, de forma que, chegue ou não lá em cima, você terá de me pagar”.
Eu aguento firme”, diz Anse. “Pode subir.”
O diabo me leve se eu sei por que não desisto. Um homem de setenta anos, com mais de 110 quilos, tendo de subir a uma maldita montanha e depois descer, agarrado a uma corda. Acho que é porque tenho de atingir os cinquenta mil dólares anotados nos livros, antes de me aposentar.
Por que diabo sua mulher foi cair doente?”, eu digo, “e logo no alto de uma condenada montanha?
Sinto muito”, ele diz.
Larga a corda, deixa-a cair e se vira para a casa. Ela ainda está banhada pela fraca luz do dia, da cor de barras de enxofre. As tábuas parecem tiras de enxofre. Cash não olha para baixo. Vernon Tull diz que ele leva cada tábua ao peitoril da janela, para que ela a veja e aprove. O rapaz toma a nossa dianteira. Anse volta-se e olha-o.
Onde está a corda?”, pergunta.
Está onde você deixou-a”, digo. “Mas não se preocupe com a corda. Terei de descer desse despenhadeiro. Não quero que a tempestade me apanhe aqui em cima. Assim que terminar a consulta sairei correndo, tangido pelo diabo.”
A moça está em pé ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabeça e nos encara. Há dez dias está como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse durante tanto tempo, ela não se decide a fazer a mudança, se é que se trata de mudança. Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora, sei que não passa de função do espírito — também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade.
Ela olha para nós. Apenas seus olhos parecem mover-se.
É como se nos tocasse, não com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali. Não olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz. Debaixo do cobertor ela está reduzida a um feixe de varas podres.
Então, Miss Addie”, eu digo. A moça não para o leque. “Como vai, irmã?”, eu digo. Sua cabeça descarnada no travesseiro olha para o rapaz. “Você escolheu uma bela ocasião para me trazer aqui, na iminência de uma tempestade.” Em seguida, mando Anse e o rapaz saírem. Ela acompanha com os olhos o rapaz sair do quarto. Ainda não se moveu, à exceção dos olhos.
Ele e Anse estão no alpendre, quando eu saio, o rapaz sentado nos degraus, Anse em pé, junto a um esteio, mas sem se escorar, os braços caídos, o cabelo revolto e emaranhado no alto da cabeça qual um galo molhado. Vira a cabeça, pestaneja na minha direção.
Por que não me mandou chamar mais cedo?”, eu digo.
Com uma coisa e outra, o tempo foi passando”, ele diz. “Eu e os rapazes queríamos colher o milho, Dewey Dell cuidava bem dela, e os vizinhos vinham ajudar, até que eu pensei...”
O dinheiro que vá para o inferno” eu digo. “Você já me viu perseguir alguém antes de me poder pagar?”
Não foi por causa do dinheiro”, ele diz. “Eu apenas pensei... Ela está nas últimas, não é?”
O maldito moleque está sentado no degrau de cima, parecendo menor à luz cor de enxofre. Esta região tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios, nossa terra: opacos, vagarosos, violentos; modelando e criando a vida do homem à sua implacável e soturna imagem.
Eu já sabia”, disse Anse. “Sempre tive certeza. Ela meteu isso na cabeça.”
Maldita coisa”, eu digo. “Com um insignificante...” Ele continua sentado no degrau de cima, pequeno, imóvel no macacão desbotado. Quando eu entrei, olhou-me, depois a Anse. Mas agora parou de nos olhar. Limita-se a ficar sentado.
Você avisou-a?”, pergunta Anse.
Para quê?”, eu digo. “Para que diabos iria avisá-la?”
Ela já sabe. Eu sabia que, quando ela visse você, ficaria sabendo, como se a coisa estivesse escrita. Não é preciso dizer-lhe. Ela meteu...”
Atrás de nós, a moça diz: “Pai.” Olho para ela, em pleno rosto.
Melhor que você saia logo”, digo.
Quando entramos no quarto ela está vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. “Ela quer que o senhor vá embora”, diz a moça.
Ora, Addie”, diz Anse, “depois que ele veio de Jefferson para sarar você?”
Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. Já observei isto em outras mulheres. Já as vi expulsar do quarto as pessoas que iam levar-lhes simpatia e piedade, além de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram de besta de carga. Eis o que elas entendem por amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo de esconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco às salas de cirurgia, e devolvemos conosco, de maneira estúpida e furiosa, à terra.
Saio do quarto. Além do alpendre, a serra de Cash ronca firme na tábua. Um minuto depois ela o chama, em voz áspera e forte.
Cash”, diz. “Escuta, Cash!”

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

Teofania

Sabe-se que um deus só vem porque quer
e que é capaz de desaparecer
a seu bel-prazer, por mero capricho.
Nisso ele se assemelha mais a um bicho

selvagem, feito serpente ou veado,
do que a gente. Uns são intempestivos.
É no momento menos indicado
que nos capturam e mantêm cativos.

Assim é o Amor, por exemplo. Não
há quem não reconheça a divindade
de tal deus. Não: os próprios cristãos dão
a mão à palmatória e têm saudade

do realismo do mundo pagão
quando o veem chegar como quem não quer
nada e ofuscar tudo. Outros são
diferentes. Todos vêm por prazer,

isso é claro mas, por exemplo, o Sono
não deixa de abraçar-nos todo dia
enquanto somos jovens: dir-se-ia
ser nosso escravo e não suave dono.

Mas isso não se deve nem pensar
pois se ele ouvir o nosso pensamento
e resolver provar-nos a contento
ser mesmo deus, desaparecerá,

pois que ele é deus mostra-o nem tanto o fato
de que vem sem ser chamado e escraviza,
em teatros, aulas, ônibus, vigílias,
o desejo que almeja dominá-lo

quanto a própria insônia, teofania
negativa do Sono, quando somem
as doces nuvens e as torres macias
do príncipe dos deuses e dos homens

e não se abrem as águas da lagoa
ou os portões de chifre ou de marfim
e nossa imaginação se esboroa
em prosa e a noite cansa até o fim.

Não se iludam. Nem o mais poderoso
dos soporíferos substituiria
ver abolirem-se as categorias
pela espontânea ação de um deus gasoso.

Tais deuses só na velhice sabemos
o que são. O jovem nem desconfia
ser divino o próprio Tesão ou mesmo,
tremo só de lembrar, a Poesia.

Antonio Cícero, em Guardar

Uma galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
Eu também! jurou a menina com ardor.
A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga – e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

Clarice Lispector, em Todos os contos

1561 – Barquisimeto

Restabelecem a ordem

Abandonado pelos seus, que preferiram o perdão ou as mercês reais, Lope de Aguirre crava punhaladas em sua filha Elvira, Para que não venha a ser colchão de velhacos, e enfrenta seus verdugos. Corrige-lhes a pontaria, assim não, assim não, mau tiro, e cai sem encomendar-se a Deus.
Quando Felipe II lê a carta, sentado em seu trono muito longe daqui, a cabeça de Aguirre está cravada em uma estaca, para advertência de todos os peões do desenvolvimento europeu.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

A chinela turca


Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos louros e os mais pensativos olhos azuis, que este nosso clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração, deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as cousas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro.
Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel.
Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? — perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom.
Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau — respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho —; sei que foi um vento rijo. Vai sair?
Vou ao Rio Comprido.
Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não?
Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:
Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um drama.
Um drama! — exclamou o bacharel.
Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.
Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do rio da Prata. Havia porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves, algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultrarromântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a ideia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estreia, prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia consigo.
Agradeço-lhe as suas boas intenções — disse Lopo Alves —, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.
Duarte procurou desviar aquele cálix de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava 21h55, enquanto o major folheava paternalmente as 180 folhas do manuscrito.
Isto vai depressa — disse Lopo Alves —; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete?
Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.
O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas 180 páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano no sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de 17 anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.
Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjecturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fulgiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.
Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra da calçada.
Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.
Por que não fez ele isso há mais tempo? — disse o rapaz suspirando.
O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.
A esta hora! — exclamou Duarte.
A esta hora — repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. — A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave.
Um delito!
Creio que me conhece...
Não tenho essa honra.
Sou empregado na polícia.
Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata?
Pouca cousa: um furto. O senhor é acusado de haver subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.
O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora.
Há de perdoar-me — disse o representante da autoridade. — A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viageiras, esteve, há cerca de três anos, no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.
Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.
Ah! ah! — disse o homem gordo. — Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano.
Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal de conjecturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.
Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia...
Nós não somos da polícia — interrompeu friamente o homem magro.
Ah!
Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu faremos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?
Não, senhor.
Há de entender logo mais.
Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos.
Chegamos — disse o homem gordo.
Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas — provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro — seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais.
Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado. Os bronzes, charões, tapetes, espelhos — a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões.
Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o princípio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjecturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.
Há de ser isso — concluiu Duarte —; mas quem será esse pretendente derrotado?
Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as ideias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter 55 anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara.
Conhece-me? — perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.
Não, senhor.
Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto...
Oh! decerto! — interrompeu Duarte.
Um simples pretexto — continuou o velho — para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela.
O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:
Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e que estou fazendo nesta casa?
Vai sabê-lo — respondeu tranquilamente o velho.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro.
Chinela de criança, não lhe parece? — disse o velho.
Suponho que sim.
Pois supõe mal; é chinela de moça.
Será; nada tenho com isso.
Perdão! tem muito, porque vai casar com a dona.
Casar! — exclamou Duarte.
Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.
Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina.
Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, desleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido a Terra.
Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.
Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora.
Meu caro doutor, esta é a noiva.
A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.
Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo — continuou impassivelmente o velho —: a primeira é casar; a segunda escrever o seu testamento; a terceira engolir certa droga do Levante...
Veneno! — interrompeu Duarte.
Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.
Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.
O senhor — continuou o velho — tem uma fortunazinha de 150 contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.
O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direito ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menor; travou-lhe da mão e disse:
Levante-se!
Não! não quero! não me casarei!
E isto? — disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.
Mas então é um assassinato?
É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha!
Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:
Quer fugir?
Oh! sim! — exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.
Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo.
Oh! padre! — disse baixinho o bacharel.
Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.
A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.
Que é isso? — perguntou ele rindo.
Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.
Olhou para trás; não viu ninguém; o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.
Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Commercio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves.
O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:
Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.
Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.
Então! Que tal lhe pareceu?
Ah! excelente! — respondeu o bacharel, levantando-se.
Paixões fortes, não?
Fortíssimas. Que horas são?
Deram duas agora mesmo.
Duarte acompanhou o major até a porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, ao cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: “Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.”

Machado de Assis, em A Época, 14 de novembro de 1875

dando um jeito

nesta manhã fumegante Hades bate palma com suas mãos de Herpes e
uma mulher canta pelo meu rádio, sua voz vem escalando
pela fumaça e pelas emanações do vinho...

é um momento solitário, ela canta, e você não é
meu e isso me deixa tão mal,
essa coisa de ser eu...

consigo escutar carros na autoestrada, é como um mar distante
com sedimentos de pessoas
e por sobre o meu outro ombro, lá longe na 7th street
perto da Western
está o hospital, aquela casa do suplício –
lençóis e urinóis e braços e cabeças e
expirações;
tudo é tão docemente medonho, tão contínua e
docemente medonho: a arte da consumação: a vida comendo
a vida...
certa vez num sonho eu vi uma cobra engolindo sua própria
cauda, ela engoliu e engoliu até completar
meia-volta, e ali parou e
ali ficou, ela estava estufada de si
mesma. que situação.
só temos nós mesmos para ir em frente, e é o
bastante...

desço a escada pra pegar outra garrafa, ligo a
tevê a cabo e eis Greg Peck fingindo ser
F. Scott e ele está muito empolgado e está lendo seu
manuscrito para sua dama.
desligo o
aparelho.
que tipo de escritor é esse? lendo suas páginas para
uma dama? isso é uma violação...

volto ao andar de cima e meus dois gatos me seguem, eles são
bons camaradas, não temos desentendimentos, não
temos discussões, ouvimos a mesma música, nunca votamos para
presidente.
um dos meus gatos, o grande, salta no encosto
da minha cadeira, se esfrega em meus ombros e meu
pescoço.

não adianta”, digo a ele, “não
vou ler pra você
esse poema.”

ele salta para o chão e sai pela
sacada e seu amigo
segue atrás.
eles sentam e olham a noite; nós temos o
poder da sanidade aqui.

nestas primeiras horas da manhã, quando quase todo mundo
está dormindo, pequenos insetos noturnos, coisas aladas
entram e circulam e giram.
a máquina zumbe seu zumbido elétrico, e tendo
aberto e provado a nova garrafa eu bato o próximo
verso. você
pode lê-lo para sua dama e ela provavelmente lhe dirá
que é bobagem. ela estará
lendo Suave é a
noite.

Charles Bukowski, em Você fica tão sozinho às vezes que até faz sentido