quarta-feira, 16 de abril de 2025

Peabody


Quando Anse, por fim, mandou-me chamar, por sua própria conta, eu disse: “Ele acabou gastando inteiramente a mulher.” E eu disse: “Que coisa”, e no começo pensei em não ir, porque, se ainda pudesse fazer alguma coisa, eu teria de arrancá-la à força, Deus me perdoe. Pensei que talvez haja no céu a mesma ética estúpida da Faculdade de Medicina, e que provavelmente Vernon Tull me mandaria chamar outra vez, no exato momento, como Vernon sempre faz, tirando do dinheiro de Anse maior proveito do que tira de seu próprio dinheiro. Mas quando o dia, já avançado, não me permitiu prever o tempo, eu compreendi que o chamado viera de Anse e de mais ninguém. Compreendi que só um homem infeliz teria necessidade de médico quando irromper um ciclone. E eu sabia que, se ocorrera a Anse a ideia de chamar um médico, é porque já seria tarde demais.
Quando cheguei à nascente e desci e atei as rédeas da parelha, o sol já se escondera atrás de um barranco de nuvens negras semelhantes ao cume de um maciço montanhoso, semelhantes a um carregamento de cinzas ali derramado, e não ventava. Ouvi a serra de Cash a quilômetro e meio de distância, antes de chegar lá. Anse estava em pé rio alto do morro acima da vereda.
Onde está o cavalo?”, pergunto.
Jewel levou-o”, ele diz. “Ninguém mais conseguiria. Acho que você tem de ir a pé.”
Eu, subir a pé, com meus cento e dez quilos”, digo. “Subir este maldito morro?”
Ele está de pé, junto a uma árvore. Pena que o Senhor tenha feito o erro de dar raízes às árvores e pés e pernas aos Anse Bundrens que Ele espalha no mundo. Se Ele fizesse ao contrário, não haveria risco algum de esta região ficar algum dia desflorestada. Ou qualquer outra. “Que quer que eu faça?”, digo. “Que fique aqui parado, até que o vento me carregue, quando aquela nuvem despencar?” Mesmo a cavalo seriam necessários quinze minutos para cruzar o pasto até o alto da elevação e chegar à casa. A vereda parece um membro torto atirado contra a vertente. Anse não vai à cidade há doze «no». Eu só que- ria saber como é que sua mãe subiu até lá para trazê-lo ao mundo, visto que ele é o filho de sua mãe.
Vardaman vai trazer a corda”, ele diz.
Dentro em pouco Vardaman aparece com a corda do arado. Entende a ponta a Anse e desce pela vereda, desenrolando-a.
Segure firme”, eu digo. “Já registrei esta visita nos meus livros, de forma que, chegue ou não lá em cima, você terá de me pagar”.
Eu aguento firme”, diz Anse. “Pode subir.”
O diabo me leve se eu sei por que não desisto. Um homem de setenta anos, com mais de 110 quilos, tendo de subir a uma maldita montanha e depois descer, agarrado a uma corda. Acho que é porque tenho de atingir os cinquenta mil dólares anotados nos livros, antes de me aposentar.
Por que diabo sua mulher foi cair doente?”, eu digo, “e logo no alto de uma condenada montanha?
Sinto muito”, ele diz.
Larga a corda, deixa-a cair e se vira para a casa. Ela ainda está banhada pela fraca luz do dia, da cor de barras de enxofre. As tábuas parecem tiras de enxofre. Cash não olha para baixo. Vernon Tull diz que ele leva cada tábua ao peitoril da janela, para que ela a veja e aprove. O rapaz toma a nossa dianteira. Anse volta-se e olha-o.
Onde está a corda?”, pergunta.
Está onde você deixou-a”, digo. “Mas não se preocupe com a corda. Terei de descer desse despenhadeiro. Não quero que a tempestade me apanhe aqui em cima. Assim que terminar a consulta sairei correndo, tangido pelo diabo.”
A moça está em pé ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabeça e nos encara. Há dez dias está como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse durante tanto tempo, ela não se decide a fazer a mudança, se é que se trata de mudança. Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora, sei que não passa de função do espírito — também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade.
Ela olha para nós. Apenas seus olhos parecem mover-se.
É como se nos tocasse, não com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali. Não olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz. Debaixo do cobertor ela está reduzida a um feixe de varas podres.
Então, Miss Addie”, eu digo. A moça não para o leque. “Como vai, irmã?”, eu digo. Sua cabeça descarnada no travesseiro olha para o rapaz. “Você escolheu uma bela ocasião para me trazer aqui, na iminência de uma tempestade.” Em seguida, mando Anse e o rapaz saírem. Ela acompanha com os olhos o rapaz sair do quarto. Ainda não se moveu, à exceção dos olhos.
Ele e Anse estão no alpendre, quando eu saio, o rapaz sentado nos degraus, Anse em pé, junto a um esteio, mas sem se escorar, os braços caídos, o cabelo revolto e emaranhado no alto da cabeça qual um galo molhado. Vira a cabeça, pestaneja na minha direção.
Por que não me mandou chamar mais cedo?”, eu digo.
Com uma coisa e outra, o tempo foi passando”, ele diz. “Eu e os rapazes queríamos colher o milho, Dewey Dell cuidava bem dela, e os vizinhos vinham ajudar, até que eu pensei...”
O dinheiro que vá para o inferno” eu digo. “Você já me viu perseguir alguém antes de me poder pagar?”
Não foi por causa do dinheiro”, ele diz. “Eu apenas pensei... Ela está nas últimas, não é?”
O maldito moleque está sentado no degrau de cima, parecendo menor à luz cor de enxofre. Esta região tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios, nossa terra: opacos, vagarosos, violentos; modelando e criando a vida do homem à sua implacável e soturna imagem.
Eu já sabia”, disse Anse. “Sempre tive certeza. Ela meteu isso na cabeça.”
Maldita coisa”, eu digo. “Com um insignificante...” Ele continua sentado no degrau de cima, pequeno, imóvel no macacão desbotado. Quando eu entrei, olhou-me, depois a Anse. Mas agora parou de nos olhar. Limita-se a ficar sentado.
Você avisou-a?”, pergunta Anse.
Para quê?”, eu digo. “Para que diabos iria avisá-la?”
Ela já sabe. Eu sabia que, quando ela visse você, ficaria sabendo, como se a coisa estivesse escrita. Não é preciso dizer-lhe. Ela meteu...”
Atrás de nós, a moça diz: “Pai.” Olho para ela, em pleno rosto.
Melhor que você saia logo”, digo.
Quando entramos no quarto ela está vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. “Ela quer que o senhor vá embora”, diz a moça.
Ora, Addie”, diz Anse, “depois que ele veio de Jefferson para sarar você?”
Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. Já observei isto em outras mulheres. Já as vi expulsar do quarto as pessoas que iam levar-lhes simpatia e piedade, além de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram de besta de carga. Eis o que elas entendem por amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo de esconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco às salas de cirurgia, e devolvemos conosco, de maneira estúpida e furiosa, à terra.
Saio do quarto. Além do alpendre, a serra de Cash ronca firme na tábua. Um minuto depois ela o chama, em voz áspera e forte.
Cash”, diz. “Escuta, Cash!”

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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