Num
esboço anterior desta carta, que acabei deletando, eu te contei como
virei escritor. Como eu, o primeiro de nossa família a ir para a
faculdade, desperdicei a chance com um diploma de Letras. Como fugi
da minha escola secundária de merda para passar meus dias em Nova
York perdido em pilhas de livros em bibliotecas, lendo textos
obscuros escritos por gente morta, que, em sua maioria, jamais sonhou
em ter alguém com um rosto como o meu sobrevoando suas frases – e
menos ainda que aquelas frases iriam me salvar. Mas nada disso
importa agora. O que importa é que tudo isso, mesmo que eu não
soubesse na época, me trouxe até aqui, até esta página, para te
contar tudo que você jamais vai saber.
O
que aconteceu é que um dia eu fui um menino, e um menino intacto. Eu
tinha oito anos quando fiquei parado no apartamento de um quarto em
Hartford olhando para o rosto adormecido da vó Lan. Apesar de ser
tua mãe, ela não se parece nada com você; a pele é três tons
mais escura, da cor da terra depois da chuva, estendida sobre um
rosto esquelético cujos olhos brilhavam como vidro lascado. Não sei
dizer o que me fez deixar a pilha de soldadinhos verdes e ir andando
até onde ela estava, debaixo de uma coberta sobre o piso de madeira,
braços cruzados sobre o peito. Os olhos se moviam sob as pálpebras
enquanto ela dormia. A testa, açoitada por linhas profundas,
assinalava seus cinquenta e seis anos. Uma mosca pousou ao lado da
boca, depois deslizou para a beira dos lábios arroxeados. A bochecha
esquerda fez um espasmo por segundos. A pele, com grandes marcas
negras de pústulas, se agitava à luz do sol. Eu nunca tinha visto
tanto movimento durante o sono antes – exceto por cães que correm
nos sonhos, nenhum de nós jamais vai ver.
Mas
era a imobilidade, percebo agora, que eu buscava, não do corpo dela,
que continuava funcionando enquanto ela dormia, mas da mente. Somente
nessas contrações silenciosas o cérebro dela, selvagem e explosivo
enquanto estava acordada, resfriava e se transformava em algo
semelhante à calma. Estou olhando uma desconhecida, pensei, cujos
lábios se enrugavam numa expressão de contentamento estranha à Lan
que eu conhecia acordada, aquela cujas frases saíam lentas e
nervosas, a esquizofrenia pior ainda depois da guerra. Mas eu sempre
a conheci selvagem. Desde que me lembro, ela tremeluzia diante de
mim, mergulhando na sensatez e depois saindo dela. E era por isso que
estudá-la agora, tranquila à luz da tarde, era como observar um
tempo passado.
Um
olho abriu. Envolto por uma película leitosa de sono, se arregalou
para conter minha imagem. Fiquei frente a frente comigo mesmo, fixo
pelos raios de luz que passavam pela janela. Então o segundo olho
abriu, esse ligeiramente róseo, porém mais claro. “Com fome,
Cachorrinho?”, ela perguntou, o rosto sem expressão, como se ainda
dormisse.
Fiz
que sim com a cabeça.
“O
que a gente devia comer num tempo desse?” Ela fez um gesto
abrangendo a sala.
Uma
pergunta retórica, decidi, e mordi meu lábio.
Mas
eu estava errado. “Eu disse O que a gente pode comer?” Ela
sentou, os cabelos que iam até os ombros espalhados atrás dela como
se ela fosse um personagem de desenho animado que acabou de ser
detonado com TNT. Ela engatinhou, se acocorou diante dos soldadinhos
de brinquedo, pegou um da pilha, segurou entre os dedos, e analisou.
As unhas, perfeitamente pintadas e feitas por você, com a tua
precisão de costume, eram a única coisa imaculada nela. Distintas e
com um brilho de rubi, se destacavam das articulações calejadas e
rachadas enquanto ela segurava o soldado, um operador de rádio, e o
examinava como se fosse um artefato recém-desenterrado.
Com
um rádio nas costas, o soldado está com um joelho no chão,
gritando eternamente no receptor. O uniforme sugere que ele combate
na Segunda Guerra Mundial. “Quem você ser, messeur?”, ela
pergunta ao sujeito de plástico numa mistura truncada de idiomas.
Num só movimento, ela colocou o rádio dele na orelha e escutou
atenta, olhando para mim. “Sabe o que estão me contando,
Cachorrinho?”, ela sussurrou em vietnamita. “Eles dizem...” Ela
mergulhou a cabeça para um lado, se encostou em mim, seu hálito uma
mescla de xarope para tosse Ricola e o aroma de carne do sono, a
cabeça do homenzinho verde engolida pela sua orelha. “Dizem que
bons soldados só vencem quando são alimentados pela avó.” Ela
deixou escapar uma única risadinha entrecortada, depois parou,
repentinamente sem expressão, e colocou o homem do rádio na minha
mão, fechando meus dedos sobre a palma. E do nada levantou e foi
para a cozinha, os chinelos batendo atrás dela. Agarrei a mensagem,
as antenas plásticas machucando a palma da minha mão enquanto o som
do reggae, abafado pelas paredes de um vizinho, entrava na sala.
Eu
tenho e tive muitos nomes. Cachorrinho foi o nome que a Lan me deu.
Que tipo de mulher dá nomes de flores para si e para a filha e
depois chama o neto de cachorro? Uma mulher que cuida dos seus. Como
você sabe, no vilarejo em que a Lan se criou, muitas vezes o menor
ou mais fraco do grupo, como era meu caso, ganhava o nome das coisas
mais desprezíveis: diabo, criança fantasma, focinho de porco,
macaquinho, cabeça de búfalo, bastardo – deles todos, cachorrinho
era o mais suave. Porque espíritos malignos, vagando pelo local em
busca de crianças saudáveis, bonitas, ouviriam o nome de algo
medonho sendo chamado para o jantar e passariam por cima da casa,
poupando a criança. Amar algo, portanto, é dar a ela o nome de algo
tão sem valor que pode ser deixado incólume – e vivo. Um nome,
tênue como o ar, pode também ser um escudo. Um escudo de
Cachorrinho.
Sentei
nas lajotas da cozinha e fiquei vendo a Lan colocar duas montanhas de
arroz fervendo numa tigela de porcelana com detalhes de videira em
índigo. Ela pegou um bule e derramou chá de jasmim sobre o arroz,
só o suficiente para alguns grãos flutuarem no pálido líquido
âmbar. Sentados no chão, passamos a tigela cheirosa e fervente de
um para o outro. O gosto é o que você imaginaria terem flores
amassadas – amargo e seco, deixando depois um sabor de brilho e
doçura. “Genuína comida de camponês”, Lan sorriu. “Isso é
nossa fast food, Cachorrinho. O nosso McDonald’s!” Ela inclinou o
corpo e deixou sair um peido gigante. Segui o exemplo e soltei um
também, e nós dois rimos de olhos fechados. Depois ela parou. “Coma
tudo.” Ela apontou com o queixo para a tigela. “Cada grão que
você deixar para trás é uma larva que você vai comer no inferno.”
Ela tirou o elástico que estava no pulso e prendeu o cabelo num
coque.
Dizem
que o trauma afeta não só o cérebro, mas também o corpo, as
articulações e a postura. As costas da Lan ficavam perpetuamente
encurvadas – a tal ponto que eu mal conseguia ver sua cabeça
quando ela ficava de pé na pia. Só se via o cabelo preso atrás,
sacudindo enquanto ela esfregava.
Ela
olhou para a prateleira da despensa, vazia a não ser por um pote
solitário de manteiga de amendoim já pela metade. “Eu tenho que
comprar mais pão".
Ocean
Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante