sábado, 13 de dezembro de 2025

Bocato e Nelson Faria | Um Café Lá Em Casa

Estufa

Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo…

Mário Quintana, em Caderno H

Téo e O Mini Mundo

Pergunte-se

Ao acordar, pergunte-se: “Faz diferença ser elogiado ou difamado por ser justo e correto?” Não. Esqueceu-se de como aqueles homens que elogiam e difamam com ar de superioridade se comportam na cama ou na mesa? Do que fazem, do que fogem e do que perseguem? De como pilham e roubam sem usar os pés e as mãos—com seus atributos mais valiosos, de onde, caso houvessem escolhido, emergiria a fidelidade, a modéstia, a verdade, a lei e um bom gênio interior?

Marco Aurélio, em Meditações

Os prazeres de uma vida normal

Pois e eu que durmo tão mal, dormi de oito da noite até seis da manhã. Dez horas: senti um orgulho pueril. Acordei com o corpo todo aumentado nas suas células. Ah, isso é vida normal, então? mas então é muito bom!
E eu que nunca fiz luxo para comer, andei há um tempo fazendo dieta para perder uns quilos a mais. Aí experimentei uma vida anormal para comer. Andava exasperada como se outros estivessem comendo o que era meu. Então, de raiva e fome, de repente comi o que bem quis. E como é bom comer, dá até vergonha. E certo orgulho também, o orgulho de se ser um corpo exigente. Ah que me perdoem os que não têm o que comer; o que vale é que esses não são os que me leem.
Outro prazer que é normal é quando escrevo o que se chama de inspirada. O pequeno êxtase da palavra fluir junto do pensamento e do sentimento: nessa hora como é bom ser uma pessoa!
E receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer dos outros existirem e de a gente se encontrar nos outros. Eu me encontro nos outros. Tudo o que dá certo é normal. O estranho é a luta que se é obrigado a travar para obter o que simplesmente seria o normal.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Capítulo 13 — O florescimento



Pule e você descobrirá como abrir as asas enquanto cai.
RAY BRADBURY

Quando me graduei na Rhode Island College, uma voz em algum lugar distante no fundo da minha mente — que sempre foi verdadeira, franca e, em retrospecto, maravilhosamente consciente, ainda que eu nem sempre tivesse coragem de ouvir, mas, uma vez que ouvia, servia-me com perfeição — guiou-me para que eu me inscrevesse em um programa de verão de seis semanas no Circle in the Square ­Theatre em Nova York. Fui aceita depois da audição da Urta em Nova York.
Eu tinha uma bolsa de estudos garantida para o programa de seis semanas, mas precisava de dinheiro para viver na cidade durante aquele tempo. Uma mulher incrível, Iona Dobbins, cuidava do Conselho Estadual de Artes de Rhode Island na época. Ela se dedicava aos artistas e às artes. Chorei no escritório dela, implorando por dinheiro. Ela ouviu minha história, ofereceu-me um lenço e disse: “Vou arranjar o dinheiro para você.” E arranjou. Ela me deu mil e duzentos dólares.
Isso me incentivou a ganhar o restante do dinheiro necessário para ir para Nova York e estudar naquele grande teatro.
No verão, um mês antes do começo do programa, trabalhei em uma fábrica horrível. Aos atores que dizem: “Ah, não me importo, não vou comprometer meu trabalho, mesmo que eu tenha que viver na pobreza”, eu respondo: “Você nunca viveu na pobreza. Se já foi pobre, quando criança ou adulto, sabe que não é brincadeira.”
Trabalhei em fábricas que aceitavam mão de obra inscrita em agências de emprego. Você se inscrevia para trabalhar em qualquer lugar que precisasse de gente naquele dia. Às seis da manhã, entrava em uma van lotada e era levado até à fábrica. Em Central Falls, conheci pessoas que trabalhavam em fábricas — pessoas com as quais cresci, imigrantes ilegais que chegavam sem qualquer habilidade. Até minha mãe trabalhou em algumas.
Trabalhei em uma fábrica que só fazia caixas. Era só isso. Fazer caixas. O. Dia. Todo. Trabalhei em outra fábrica e então comecei no P-PAC, o Providence Perfoming Arts Center, como atendente de telemarketing, o que é horrível. As pessoas gritam com você: “Pare de me ligar, porra! Não quero que você me ligue. Blá-blá-blá.” É um ótimo treinamento para atuar pelo tanto de humilhação e rejeição sofridos. Eu tinha uma técnica: perguntava pelo homem da casa se uma mulher atendesse. Usava minha voz mais sexy. Quase sempre a mulher perguntava: “Quem é que está ligando?” Então eu as pegava. Conseguia mantê-las na linha. Era o meu único truque.
Minha vida estava de pernas para o ar no verão em que ganhei dinheiro suficiente para inteirar com o do Conselho Estadual de Artes de Rhode Island e ir à Nova York. Enfim aproveitaria meu tempo como atriz no Circle in the Square Theatre.
Quando cheguei lá, também consegui um trabalho distribuindo panfletos de Tamara: The Living Play na Times Square. Era quase como um teatro com direito a jantar. Você entrava em um prédio na Quinta Avenida, e assistia à peça — um misterioso assassinato — acontecendo bem ali, no cômodo em que você estava. Então, cada personagem ia para um cômodo diferente, e você tinha que decidir qual queria seguir. No fim, o mistério era resolvido no mesmo cômodo onde começara. Durante o intervalo, o jantar era servido.
Uma amiga, que também estudara na Rhode Island College, era a gerente de marketing da peça: “Viola, pago vinte dólares por hora em dinheiro para distribuir panfletos da peça na Times Square.”
Aquele foi um dos meus trabalhos durante o programa de seis semanas no Circle in the Square. Eu só distribuía os panfletos — não consegui um papel na peça, porque acabara de sair da faculdade, não tinha agente e mal chegara à Nova York, vinda de uma cidadezinha qualquer de Rhode Island. Eu definitivamente não era uma profissional ainda.
Eu me desenvolvi no Circle in the Square. Amava, amava, amava Nova York! Morava em um loft em Gramercy Park com duas mulheres que conhecia da Rhode Island College, Donna e Mary. Nova York despertou uma parte de mim que estava sempre muito amedrontada. A cidade me tirou da minha zona de conforto. Nova York tinha uma energia diferente. As multidões, o cheiro, o barulho, os prédios, a vida. Homens assobiando ao passar por você no metrô. Em um dia, aprendi a usar o trem. Só aprendi. Fui a restaurantes e delicatéssens administradas por pessoas de todas as partes do mundo.
Recebi a melhor formação de atuação que existe. Tive muitos professores incríveis. Ron Stetson, Dr. Hutchinson, Rob Dimmick, Elaine Perry, David Burr. Mas Alan Langdon, naquele programa de seis semanas no Circle in the Square Theatre, no verão de 1988, foi o melhor que já tive. Voltei à vida sob a tutela dos professores de lá, como Jacqueline Brooks. Grandes atores, como Philip Seymour Hoffman, Felicity Huffman e Kevin Bacon, estudavam lá. Tínhamos estudo de cena, de atuação, movimento, voz, tudo sem barreiras e com muita coragem. Era compreensível que um programa como esse nos impossibilitasse de nos esconder emocionalmente.
Alan mesmo era, bem, um homem estranho. Misterioso. Pensando agora, acho que ele era simplesmente mais calado. Como artistas, estamos tão acostumados com personalidades exibicionistas, que quase nos ofendemos quando alguém não é assim. A extravagância de Alan estava em sua intensa observação silenciosa.
Havia quase trinta jovens no meu grupo, e mais de cem estudantes no total, e fazíamos duplas para as cenas. Todos vinham de partes diferentes do país e estavam em apartamentos em diferentes áreas da cidade. Íamos aos apartamentos uns dos outros ou, às vezes, praticávamos uma cena em um pórtico de entrada. Entrávamos, fazíamos a cena, e Alan só observava. Então subia e ficava nos fundos do cômodo e se sentava de novo. Era como se ele assistisse em silêncio diante de uma partida de futebol e por dentro estivesse ansioso porque seu time estava prestes a vencer. A cena terminava e havia sempre um silêncio cortante. Ele então fazia uma série de perguntas ou algo para nos acordar.
Uma atriz — Emily — que tinha uma voz muito, muito suave e sempre parecia ansiosa fazia parte do grupo naquele verão. Ela sempre parecia assustada. Era muito doce e educada, quase demais, até. Participava do programa não porque queria ser atriz, mas para se encontrar. Ou se curar? De quê, não sei. Um ator leva consigo sua história para o trabalho — passado, presente, medos, conflitos, humor, traumas.
Emily decidiu fazer uma cena da peça Agnes de Deus, de John ­Pielmeier. A história é sobre uma jovem freira que engravida dentro do convento. Ela insiste que não teve relação sexual e diz que Deus a engravidou. Não há evidências de ninguém no monastério ou no quarto dela. Em determinado momento, ela começa a sangrar pelas mãos, um estigma. Parece que o bebê pode ser caso de concepção imaculada. A Madre Superiora chama uma psiquiatra indicada pelo tribunal para fazer uma avaliação. Mas o conflito na cena que Emily escolheu é entre a insistência lógica da psiquiatra e a insistência passional da jovem freira tão temente a Deus.
A cena começa com a atriz fazendo a psiquiatra que prende Agnes (Emily) à parede, gritando:
Agnes, de quem é esse bebê? Me diga! Me diga!
Ela deveria gritar de volta: “É de Deus!”
Emily sussurrou um “É de Deus” quase inaudível.
Eu me encolhi, sabendo que Alan iria fundo para descobrir o que a bloqueava.
Houve o silêncio de sempre depois da cena. Alan olhou para Emily e enfim disse:
Onde está sua voz?
A essa altura, ela estava tremendo. Disse que não sabia. Alan insistiu:
Você precisa saber. Quem pegou sua voz?
Naquele verão, Emily e eu ficamos muito próximas. Nós duas éramos extremamente tímidas e desajustadas, e pessoas assim costumam se unir. Falávamos sobre a vida o tempo todo, e ela só dizia que queria melhorar. Não sei exatamente do quê. Mas até eu queria saber onde ela perdera a voz e por que sempre parecia assustada, tensa.
Mostrando intensa emoção, ela disse, por fim:
Quando eu tinha 9 anos, meu pai me prendia na cama, me espancava e me estuprava. Ele cobria minha boca.
A turma inteira ficou em silêncio.
Meu coração acelerou.
Alan perguntou se ela queria refazer a cena. Emily queria. Ela estava lutando contra algo que não era a atuação. Essa aula foi uma ferramenta para desbloquear uma dor profunda, para salvar uma garotinha de 9 anos. O grito dela foi semelhante ao som de um animal prestes a ser massacrado por uma alcateia, invocando cada grama de força no corpo para lutar, para viver. Também era o som da perda.
É DE DEUS! ESTE BEBÊ PERTENCE A DEUS!
Ela desmoronou no chão. Alan a amparou. Estávamos todos em vários estágios de choque e lágrimas.
E eu? Eu fiquei com inveja. Todas as minhas cenas eram carregadas de emoção, bem exploradas, eu achava. Mas aquilo era outro nível. Eu estava ferida, e isso me levara até ali, à atuação, a Nova York, a querer me curar e viver e me sentir viva!
Stanislavski, Sanford Meisner, Stella Adler, todos os professores do famoso Actors Studio, diziam para estudar a vida. São os momentos que você estuda a vida que são injetados em seu trabalho. Você está criando seres humanos. Não está criando apenas um jeito diferente de andar, falar, sentir. O Circle in the Square Theatre criou um lar para mim e o fez com amor. Alan Langdon ainda dá aulas no Circle in the Square.
Depois de seis semanas no programa de verão, eles ofereciam uma vaga no teatro para um dos estudantes. Eles me ofereceram. Não aceitei, dizendo: “O Circle in the Square é um ótimo programa de treinamento, mas quero um programa que me permita arranjar um emprego.”
Eu queria um programa de formação em que, assim que terminasse, estivesse trabalhando como atriz e tivesse um agente. Sem agente, não dava para arranjar trabalhos. Queria poder dizer que me formei e que agora estava trabalhando como atriz. Queria a garantia de um salário para pagar minhas contas, para colocar comida na mesa. Não queria voltar para Central Falls.
Perguntei a Mark, outro grande amigo meu que estava no programa na época:
Em qual programa posso entrar que, ao final, fazemos audição para pessoas que podem nos dar um emprego?
Bem, seriam Juilliard, Yale e NYU, Viola. Esses são os programas, e talvez Suny Purchase, onde os alunos fazem audições no quarto ano — respondeu ele. — Antigamente era chamados de audições da liga porque havia uma liga de 13 escolas. Mas agora essas quatro convidam agentes e diretores de toda parte para as audições do quarto ano.
Tirei um ano sabático e ao final me candidatei à Juilliard, uma das quatro que Mark mencionou. Teria me candidatado a todas as três, mas só tinha dinheiro para uma taxa de inscrição.
Já me perguntaram se fiz contatos no Circle in the Square, se formei uma rede de contatos por estar lá. Acho que até havia uma rede desse tipo em Nova York, mas percebi que não existe nada disso, nem uma cartilha ou um atalho para garantir a sua entrada no mercado, exceto enfim conseguir um trabalho que leve ao seguinte, e assim por diante.
Meu próximo passo após sair do Circle in the Square seria tentar entrar em um dos programas que Mark mencionou, mas eu havia perdido as datas das inscrições para ingressar no ano seguinte. Foi aí que tomei a decisão de tirar um ano sabático. Sabia que precisava crescer. O Circle in the Square Theatre fica bem no meio de Manhattan. Pegava o metrô sozinha. Morava em um apartamento na Gramercy Park com duas amigas da Rhode Island College. Nunca tinha transado, nunca tinha tido um namorado, nunca tinha morado sozinha. Nunca tinha viajado para o exterior. Queria crescer. Queria experimentar a vida. Queria que minha vida fosse tão expansiva quanto sentia que minha mente, minha imaginação eram.
Eu me lembro de rezar. Eu era uma pessoa que não ia à igreja. Mas, quando jovem, comecei a rezar toda noite, antes de me deitar, com o objetivo de conseguir dormir, de acalmar minha ansiedade. Rezava ainda mais quando meu pai espancava MaMama, quando a coisa ficava muito feia. Rezava quando ele cortava o braço dela. Rezava quando a furava na perna ou no pescoço com um lápis. Era tudo o que eu conseguia pensar em fazer. Agora, aos 21 anos, rezava para que a minha vida se manifestasse de uma forma que me fizesse digna de me tornar uma atriz profissional, viajar para fora do país e arrumar um namorado.
Naquele ano, me tornei atriz profissional. Minha primeira produção profissional foi em Providence, Rhode Island, na Trinity Repertory Company, em Joe Turner’s Come and Gone. Depois que voltei daquelas seis semanas de formação em Nova York, atuei na Trinity Rep por um ano. O diretor artístico era Adrian Hall. Tinha feito audições para ele, eu o conhecia. Ele vira meu trabalho. Ele se aposentou durante o ano sabático, mas fizemos umas três peças juntos. Depois que se aposentou, a diretora Susan Lawson, cujo péssimo apartamento em Nova York eu mais tarde sublocaria quando entrasse para a Juilliard, assumiu a direção da peça.
Tinha um emprego de dia e outro à noite. Voltei a trabalhar como atendente de telemarketing no Providence Perfoming Arts Center durante o dia. As apresentações da Trinity Rep eram à noite, o que deixava minhas manhãs livres. O treinamento de humilhação/rejeição durante o dia; e então atuar profissionalmente em uma peça à noite.
Danielle (então com 11 anos) e eu nos tornamos ainda mais próximas durante meu ano sabático. Embora eu tivesse colegas de quarto, às vezes ela dormia na minha casa. Ou eu dormia na casa da minha mãe no chão com ela, porque o apartamento dos meus pais era pequeno demais. Foi por isso que arranjei meu próprio apartamento em ­Pawtucket. Minha colega de quarto era uma pessoa muito gentil, amiga de uma amiga, e o apartamento era lindo. No entanto, a senhorita era uma racista raivosa. Nunca conheci ninguém como ela. Era brasileira e ficou horrorizada quando me mudei, pois pensou que eu fosse prostituta ao me ver esperando o ônibus.
Quando minha colega de quarto, que era a única pessoa com quem ela falava, contou que eu era atriz, ela não entendeu o que isso significava. Disse que eu não tinha permissão para receber visitas, nem mesmo minha irmãzinha, porque crianças negras destroem propriedades. Disse que tinha medo de ser estuprada e morta por mim ou por qualquer homem negro que eu convidasse para o apartamento. Ela deixava um taco de beisebol encostado perto da porta. Muitos anos depois, quando já tinha me mudado para Los Angeles, fui a Rhode Island visitar minha família e, durante um passeio no shopping, vi uma mulher vendendo joias em um estande. Era ela.
De onde você é? — perguntei.
Ela respondeu:
Do Brasil, querida.
E foi extraordinariamente gentil. Coloco essa mulher na lista de racistas que gostam de negros desde que estejam bem longe deles.
Mas então entendi que a discriminação era parte da cultura norte-americana — do Norte e do Sul —, influenciada pelas leis de Jim Crow. Quer você tenha uma educação formal ou não, a terrível força do racismo o atinge como um martelo. Permeou minha vida quando eu tinha 8 anos e aos 23 ainda me atormentava. Quando se tem pouco dinheiro, não há como combatê-lo. Onde eu poderia morar? Minha irmã Deloris estava vivendo com o namorado, que logo se tornaria seu marido, em um apartamento de um quarto. Minha irmã Dianne morava em Maryland, e minha irmã Anita tinha dois filhos e enfrentava os próprios percalços.
Eu queria ter poder e recursos naquela época para mandar aquela mulher racista enfiar o apartamento no rabo, mas aí seria o MEU rabo no chão da casa dos meus pais. E isso era como ser sentenciada a reviver a minha infância. Eu continuava correndo.
Em Joe Turner’s Come and Gone, há um papel de uma menina de 11 anos, Zonia. Danielle fez o teste e conseguiu o papel. Isso em uma produção profissional dirigida por Israel Hicks, provavelmente um dos melhores diretores de teatro da indústria na época. Atores cheios de medo vinham de Nova York para os testes. Era uma excelente produção. Danielle foi bem e conseguiu boas resenhas do Boston Globe, do Providence Journal e de muitos outros jornais. Ela também só tirava dez na escola.
Depois da aula, ela pegava o ônibus de Central Falls para o centro de Providence para ensaiar e, quando estávamos no período de produção, pegava o ônibus para chegar ao teatro a tempo. Cara, ainda estávamos correndo atrás de ônibus o tempo todo. Eu conseguia fazer Danielle correr com facilidade se a incentivasse: “Danielle! A corredora mais rápida de Central Falls.” À noite, depois da peça, quando estávamos exaustas, eu a levava de volta para casa de ônibus e ficava com ela na casa dos meus pais, porque já estava tarde demais para caminhar de volta para o meu apartamento, que era perto dali.
Meus pais já não brigavam com a mesma intensidade nessa época, embora o alcoolismo ainda estivesse presente.
Enquanto ensaiava para Joe Turner’s Come and Gone na Trinity Rep, dois acontecimentos importantes ocorreram. Fiz teste para a Juilliard e conheci David, o homem da minha vida pelos próximos sete anos. David estava na peça. Ele interpretava Jeremy, e eu, Molly. Era um ator profissional vindo de Boston. Para mim, era como conhecer o Marlon Brando negro. David era um ótimo ator. Eu o vi. Ele veio até mim. Senti que estava completa, absoluta e indubitavelmente apaixonada. Ele foi meu primeiro namorado.
David era mais velho e muito negro. Havia mergulhado na história negra, na consciência negra e na literatura negra. O gênero musical preferido dele era jazz. Também era um entusiasta do cinema. Começava assistindo a filmes de manhã e só parava no dia seguinte. Suas habilidades com a harmônica ou com o berimbau de boca eram espetaculares. Tudo a respeito do nosso relacionamento me fazia sentir tão, tão… adulta. Depois da peça, íamos ao bar ao lado. Nos conectamos tomando Long Island Iced Tea. Eu gostava justamente porque tinha o mesmo gosto do chá gelado. Eu só tomava um. Eu era uma garota adulta de 23 anos e uma atriz profissional, usando os jargões da área, fazendo o que atores profissionais fazem — me cercando de atores experientes.
Enquanto a peça estava em cartaz, tínhamos alguns dias livres. Foi quando viajei para Nova York para a audição da Juilliard.
Queria ser capaz de fazer audições. Um ator não aparece simplesmente e diz: “Quero o papel.” Um agente é um canal, a conexão entre o ator e o trabalho. Nem todos os agentes são iguais. Alguns não conseguem uma audição para você nem para uma mísera fala em um programa de TV. Meu objetivo era frequentar a Juilliard e me graduar tendo um excelente agente.
Entrei no trem de Providence para Nova York, pensando em arrasar na audição e voltar para minha chamada das sete e meia da noite para Joe Turner’s Come and Gone na Trinity Rep. No teatro, sete e meia da noite é sua chamada de meia hora. Significa o horário que você tem que estar no teatro. É quando o diretor de palco chama. É como bater ponto. Você tem que estar no camarim às sete e meia da noite.
Eu não fazia ideia de que as audições para entrar na Juilliard levavam três dias. Descobri isso muito mais tarde, depois de trocar histórias de admissão com colegas. Eu sequer sabia que o programa da Juilliard é de quatro anos. O da Yale é de três. O da NYU é de três. Minha intenção era simplesmente ir para uma faculdade onde pudesse continuar minha formação e conseguir um agente… e eu queria melhorar.
Sem saber do processo de audição de três dias, reservei uma data, pensando: Bem, vou lá e direi a eles: “Vocês vão me dizer se entrei ou estou fora. Porque preciso voltar. Preciso pegar o trem de volta.” Levei quatro horas e meia para chegar, e meia hora da Penn Station até a Juilliard, que fica em Midtown Manhattan, na Sixty-Fifth Street com a Broadway, e levaria quatro horas e meia para voltar. Eu tinha apenas 45 minutos para a audição.
Estava bem confiante de que ia entrar na Juilliard, sem fazer ideia da complexidade envolvida no processo de admissão. Sentia que tinha poder na minha atuação. Tinha a sensação de que era boa. Quanto mais tempo passava no ambiente do teatro, mais confiante ficava. E tinha facilidade em viver em Nova York, mesmo tendo vindo de Central Falls.
No dia em que fui à audição na Juilliard, meu tempo estava contado. Entrei no primeiro trem e cheguei cedo. Pesava mais ou menos 74 quilos e estava nervosa, sentada em uma sala com atores esguios que tinham frequentado boas escolas desde os 2 anos, faziam aulas de dança desde que tinham aprendido a andar, todos se aquecendo de acordo com as técnicas de balé. Eu me sentei lá, esperando a minha vez. Não fazia ideia do que vestir, então usei jeans largos, um suéter vermelho enorme e um turbante com brilhos prateados, roxos e dourados. Era inexperiente demais para saber que tudo aquilo poderia desviar a atenção para a minha performance.
Meu material de audição eram as falas de Celie, em A cor púrpura, e algo de As eruditas, de Molière. Era necessário um material contemporâneo e um clássico. Geralmente três minutos e meio, no máximo. Isso é um verdadeiro monólogo. Às vezes, dava para ir um pouco além, mas aquele era o padrão. Eu estava confiante com o meu material.
Na Juilliard, você faz audição para três ou quatro professores e, se for bem, vai para a etapa seguinte e faz outra audição. Então vai para a etapa seguinte, faz outra audição, até que todo o corpo docente tenha visto você. Em seguida, vêm as entrevistas. Os candidatos ficavam em hotéis, reservando tempo para tudo aquilo. Eu só tinha 45 minutos e não fazia ideia de quão pouco ortodoxo era aquilo. Fiz meus monólogos, agradeci e voltei para a sala cheia de atores que pareciam ter se preparado para aquele momento desde a infância.
O ambiente é uma hierarquia firme e autoritária; o corpo docente é supremo, e é absolutamente rigoroso sobre a formação clássica; você só fala se falarem com você. Coloquei o turbante no cabelo outra vez e disse:
Acho melhor informar que tenho 45 minutos. Estou em uma peça em Providence. Minha chamada é às sete e meia. É uma viagem de quatro horas e meia de trem. Precisam me dizer se estou dentro ou fora.
Ainda não acredito que falei isso.
Eles pareceram chocados, como se eu tivesse dado um tapa na cara deles. Mas disseram:
Tudo bem, só aguarde.
Eu me sentei na sala, me sentindo deslocada. Todo mundo estava fazendo aquecimento vocal ao mesmo tempo. Gritando, berrando, uivando. Fazendo posturas de yoga. Essa merda toda. Fiquei sentada em silêncio no canto e olhei para o corredor, enquanto os professores e o diretor carregavam cadeiras para a grande sala de treinamento da Juilliard, a sala 103. Ouvi sussurros: “O que está acontecendo? O que está acontecendo?” Então alguém me chamou. Os professores aceleraram meu processo. Em vez de esperar três dias, me pediram para fazer a audição de novo para todos os professores de todos os departamentos em uma única sala.
Quando me chamaram — “Tudo bem. Viola, em cinco minutos” —, eu sabia que tinha toda a atenção das pessoas naquela maldita sala. Fiz minha audição para todos eles. Eles me entrevistaram. Inclusive o chefe do departamento, que a propósito era um babaca; um grande diretor; um grande intérprete de Shakespeare… mas um babaca. Michael Langham, que foi diretor do Stratford Festival no Canadá por muitos anos, disse:
Há coisas em que você precisa trabalhar. Mas vemos seu talento como atriz, sua riqueza emocional.
Obrigada. Obrigada. Obrigada. Obrigada. Obrigada. Obrigada — respondi.
Pensando agora, o que eu queria dizer mesmo era: Rápido, porra, me contem logo se entrei, porque preciso pegar o trem. Preciso ir. Mas sabia que tinha entrado. Corri para o trem e voltei a tempo da peça.
Entrar em uma faculdade é geralmente uma história maravilhosa, que equivale a se apaixonar ou estar em lua de mel. Há uma diferença entre se apaixonar e estar casada de verdade. Quando recebi a carta de aceitação, já sabia que tinha entrado. A magia e a alegria da audição eram um sonho em segundo plano, esquecido havia muito. Queria ter podido me concentrar só no fato de que minha audição tinha sido foda.
De volta a Providence, podia perceber o quanto David amava Danielle. Ele amava crianças em geral. Já tinha um filho de um relacionamento anterior. Durante os intervalos dos ensaios, comíamos os sanduíches mais maravilhosos da Mark’s Deli. Depois da apresentação, à noite, eu levava Danielle para casa e andava de volta para o meu apartamento. Como Danielle era menor de idade, outra atriz fazia o papel de Zonia em quatro apresentações por semana. Elas revezavam. Nas noites em que Danielle não se apresentava, eu ficava com David.
Por mais tentador que seja romantizar essa época da minha vida, realmente não posso. Eu estava tão incompleta... Pedi a Deus por um namorado, por um status de atriz profissional e pela experiência de viajar para o exterior. Mas não pedi sabedoria. Não pedi amor-próprio. E isso era visível.
Eu estava com um homem que nunca me amou. Meu objetivo naqueles sete anos foi ganhar o amor dele. Eu rezava, tentando me convencer de que AQUELE seria o dia em que ele confessaria que não podia mais viver sem mim. AQUELE seria o dia em que ele me olharia e diria que eu era linda. Praticamente lhe dei passe-livre para relacionamentos com outras mulheres. Eu me sentia sortuda só por tê-lo. Estava ferida a esse ponto. Ele nunca se lembrava do meu aniversário, das minhas comidas preferidas, do Natal, do Dia dos Namorados. Eu gostava mais dos marcos de conquista externos do que da sensação interior de construir um lar com um homem, a sensação de pertencer a si mesma.
Ele não era um ótimo namorado, mas eu não exigia nada dele. Não estabelecia limites. Não o ensinei como me tratar, então eu também não era a melhor namorada. Eu costumava sentir inveja até de pessoas que estavam em relacionamentos ruins.
Ouvia mulheres dizerem: “É, ele estava me implorando para aceitá-lo de volta depois que me traiu. Ele chorava, repetindo o quanto me amava e me queria, então o aceitei de volta.” E eu pensava: Ele chorou e disse que a queria e a amava? Nunca ouvi aquilo em sete anos. Mas não era David. Era eu.
Antes de David, eu tinha conhecido outra pessoa no caminho para o trabalho. Ele se tornou “Meu Primeiro Namorado Sobre Quem Nunca Falo”. O nome dele era Carl, um homem genioso. Nossa conexão começou com ele me dizendo no ponto de ônibus que eu era bonita, e eu sorri. Eu nunca sabia onde ele estava, o que fazia, onde trabalhava, nada. Eu me lembro pouco dele porque não ficamos juntos por muito tempo. Transei com ele quatro vezes. Fico envergonhada porque tenho valores puritanos que na época não admitia. Me envergonho também porque, da última vez em que estive com ele, fui até sua casa para dizer: “Terminamos.” Ele queria transar e eu definitivamente não queria. Estava menstruada. Uma briga começou. Ele ficava puxando minha calça para baixo. Pensei em dar um soco nele, mas não dei. Talvez, se agisse assim, estaria reconhecendo que o que estava acontecendo era estupro. Então cedi e depois fui embora, envergonhada. Foi como me senti, mas por fora o que deixei transparecer foi uma jovem que estava no controle da situação. Compartimentalizei o trauma e o filtrei para mentir a mim mesma e me manter segura. Outro segredo sujo, outra vergonha.
Por que não soquei a cara dele? Por que não lutei da mesma forma que a Viola de 6 anos tinha feito com um menino que tentou beijá-la e tocá-la na casa dele? A Viola de 6 anos socou aquele garoto o mais forte que conseguiu. Sem remorso. Diabos! Ele me chutou com força depois, mas me levantei, chorando, e acabei com ele de novo! Em algum momento, acho que senti que ela estava errada. Que em minha jornada “para o topo”, para ser mais “evoluída”, deixei a briguenta para trás. Abri mão das minhas garras.
David era um ator de fora da cidade. As regras de equidade ditavam que o teatro tinha que dar a ele um apartamento durante a temporada da peça. Eu tinha outro lugar para ficar, para descansar minha cabeça. No tempo com ele me conectei com outra parte da minha alma que me definia — minha negritude. David era corajoso e não se desculpava por ser negro. Uma vez, viu uma enquete no programa Tony Brown’s Journal da PBS que dizia que 80% das pessoas brancas sentiam que as negras não eram patriotas. Isso o irritou tanto que David estudou cada guerra travada pelos Estados Unidos e o envolvimento afro-americano nelas. Cada uma das guerras que lutamos. Mesmo durante a Era Jim Crow, quando não estávamos nem perto de ter os mesmos direitos que os brancos. Aquilo era patriotismo! Se isso não dizia muito sobre nosso amor e comprometimento pelo país, nada mais dizia. Ele também estudou música e história negra.
Pouco antes de eu ir para a Juilliard, David foi a Los Angeles para ­atuar na peça de Shakespeare Medida por medida no teatro The Old Globe, em La Jolla. Em seguida, se mudou de volta para Rhode Island para se tornar um membro da companhia na Trinity Rep. Durante meus anos na Juilliard, toda vez que ia para casa nos fins de semana ou durante os feriados, ficava com David em seu apartamento.
David era um ator muito dedicado. Eu era uma atriz iniciante e, na época, uma estudante de atuação. Durante meu ano sabático, trabalhei na P-PAC vendendo ingressos por telefone enquanto fazia uma peça atrás da outra na Trinity Rep. Enfim, era uma atriz com trabalhos, não dava para juntar dinheiro, mas ganhava o suficiente para viver. Rhode Island não era um lugar caro para morar. Eu não tinha carro, mas alugava um apartamento que dividia com uma colega de quarto. Podia comprar comida. Conseguia fazer tudo o que era necessário para sobreviver. Eu era uma atriz muito ocupada.
Mas não queria ficar em Rhode Island. Queria crescer, viajar. No fim do meu ano sabático, me demiti da Trinity Rep e fui para Edimburgo, na Escócia, onde apresentei três peças no Fringe Festival. Um dos meus mentores, o Dr. Bill Hutchinson, preencheu a inscrição para que entrássemos. Fui para Boston tirar meu primeiro passaporte e fiquei maravilhada com como meus sonhos estavam se concretizando. É o maior festival de teatro do mundo.
Emily Baker, que conheci no programa de seis semanas no Circle in the Square me emprestou dinheiro para eu participar. Ela escrevera uma peça sobre a experiência de ter sido abusada pelo pai, e queria que eu atuasse. A outra peça em que atuei no festival foi uma comédia escrita por um professor de teatro da Rhode Island College. Interpretei o papel da esposa de Sócrates, que faz terapia porque o marido nunca falava com ela. Ele só pensava, o tempo todo. A terceira peça era de outro professor/diretor da RIC. Assumi o papel da serpente, numa reinterpretação de Adão e Eva. Voei pela British Airways e fiquei em um apartamento na Sir Arthur Conan Doyle Drive, em Edimburgo.
Do apartamento nós fazíamos uma longa caminhada até o teatro. Durante o dia, visitávamos o castelo de Mary, a rainha da Escócia, explorávamos a cidade, comíamos peixe com fritas e vinagre de malte. À noite, nos apresentáva­mos e víamos outras apresentações. Uma delas, do Traverse Theatre, na Escócia, era sobre homens em uma prisão sul-africana. Eles ficavam nus o tempo todo. Às vezes, simulando sexo. Em certa altura, usavam um balde para fazer suas necessidades e, mais tarde, jogavam o conteúdo uns nos outros. Ou havia cocô de verdade no palco, ou era feito de argila. Eu tinha que me forçar a acreditar que era feito de argila. De jeito nenhum eles conseguiriam fazer tudo naquele timing.
Era instigante, e a surpresa eram as pessoas idosas na plateia, que gostavam muito da peça. Vi uma produção de Salomé do renomado ­auteur Steven Berkoff. Meu favorito foi o Festival de España, de Barcelona. Era uma extravagância pagã com fogos de artifício em uma escola só de meninos. A escola parecia um castelo. Os atores se vestiam como metade homens, metade bestas, com fogo saindo das ventas. Alguns vestiam fantasias de feras, fingindo pendurar roupas feitas de fogo em varais feitos de fogo. Símbolos fálicos enormes disparavam fogos de artifício no céu, que explodiam da maneira mais magnífica. Meu amigo Doug Cooney e eu nos entreolhamos boquiabertos. Doug era um estudante de teatro na Rhode Island College e interpretava Sócrates em uma de nossas peças. Acho que corremos pelas ruas rindo, revigorados, maravilhados pelo que tínhamos acabado de assistir. Era o puro poder sobrenatural do talento artístico, uma droga que dá vida, injetada por Deus. Na presença dela, você sente que pode voar!
A noite era o meu momento favorito. Em meio a todos aqueles atores em um apartamento grande, falando, conversando, rindo, tomando uísque, jogando cartas, partilhando sobre o processo de atuação, lentamente passei a me sentir parte de alguma coisa. Costumava me conectar a uma ou duas pessoas num grupo, mas daquela vez estávamos todos juntos.
Voei para San Diego depois do Fringe Festival para ficar uma semana com David, que estava com uma peça em cartaz. Então pegaria um ônibus de San Diego para Los Angeles e ficaria no apartamento do meu amigo Gary planejando meu voo para Nova York para o meu primeiro dia na Juilliard na manhã seguinte. Peguei então o ônibus de San ­Diego para Los Angeles. No meio da viagem, o ônibus parou de repente, a polícia entrou e retirou 80% das pessoas de dentro por não terem a identificação adequada. Chegamos a LA e vi meu amigo Gary acenando muito.
Oi, Gary!
Pegue suas malas e corra!
Se não tivesse acontecido comigo, eu diria que era mentira, mas uma onda de pessoas sem-teto começou a nos cercar e agarrar. Estavam tentando pegar meus braços e malas. Gary entrou no carro. Joguei minhas malas para dentro e pulei quase no mesmo instante em que o carro começou a se mover.
Alguém deveria ter me dito: “Viola, não comece sua nova vida assim. Não aperte start na sua nova vida agora.” Mas decidi que voaria para Nova York, colocaria minhas coisas no apartamento de Susan Lawson — que havia sublocado — e iria para a minha orientação.
Peguei um táxi no aeroporto e, quando chegamos ao prédio, pensei: Ah, tudo bem. Por fora é uma merda, mas é o apartamento da Susan Lawson. Subi as escadas com todas as minhas malas até o quarto andar. Quando abri a porta, fiquei na soleira por vinte minutos, sem brincadeira.
Foi uma experiência traumática, como ter transtorno dissociativo. Joguei minhas coisas no apartamento. Totalmente deprimida, quase catatônica, peguei o metrô para ir à orientação na Juilliard.
Eu estava prestes a entrar na barriga do monstro. Juilliard estava prestes a acabar com o meu mundo. Eu ficaria cara a cara não com Deus, mas comigo mesma.

Viola Davis, in Em busca de mim

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Guilherme Arantes | Libido da Alma

Cachorradas



Eu sempre alugo um vídeo pornô, quando não encontro filmes do Gordo e o Magro disponíveis nas locadoras. À exceção de algumas gargantas antigas, ou uns três filmes do diretor cult John Stagliano, é tudo a mesma chanchada. A gente continua alugando de teimoso. O poeta que escreveu “Já li todos os livros”, podem crer, assinaria embaixo da frase: “Quem viu um vídeo erótico viu todos”. Meu amigo Luís Alfredo, mais sério do que eu, acha que continuamos garimpando nas prateleiras dos clubes por motivos meio proustianos, à recherche de alguma coisa que nunca mais encontraremos, talvez mais sonhada do que vivida no duro (epa!). Mas é nessa procura aí que reside a força irresistível do cinema. Agora mesmo estou envergando minha fantasia de Indiana Jones e partindo pra Vídeo Shop da Tijuca, em busca da xota perdida.
Confesso aos leitores que fui recentemente à boca-do-lixo pra tentar vender um roteirozinho de minha modesta autoria, coisa simples, meio soft, com bestialismo, sodomia e corrupção de menores. Acho que os produtores não vão se zangar se eu contar a muvuca pra vocês. Em primeira mão:
Em Brasília, às três da tarde de uma quarta-feira, rolava a maior suruba superfaturada na mansão de um ex-ministro. Devido aos preços exorbitantes, um popular (que havia entrado de penetra) não conseguia comer ninguém. Uma sugestão: o popular deverá ser protagonizado por João Canabrava, da Escolinha do Professor Raimundo.
Continuando: Canabrava começava a se desesperar porque não conseguia afogar o ganso, graças ao altíssimo cachê cobrado por lobistas e socialites, quando um juiz togado e um perito da Polícia Federal deram a dica:
Olha, naquele quarto escuro em frente, por apenas trinta mil dólares, há uma profissional que pode quebrar o teu galho.
Mas eu não tenho essa grana!
A gente te empresta a juros da Febraban, desde que você se comprometa a distribuir nosso fumo na tua repartição.
Após alguma barganha, as partes chegaram a um acordo, sem precisar recorrer ao Supremo.
Canabrava entrou no aposento às escuras, tateou o contorno de uma cama e... um orifício! Saudoso como estava, foi logo invadindo o Kuwait. A suruba foi interrompida por ganidos e uivos lancinates. As luzes do quarto se acenderam. Uma cadelinha em pânico, com laço de fita cor-de-rosa e olhos onde se misturavam dor e prazer, encostava na parede a estrela do xerife em fogo.
Também assustado, Canabrava chiou:
Pera lá, trinta mil dólares pelo cu da cachorra?
Foi aí que o tal ex-ministro apareceu:
Pra que esse escândalo, meu filho? Reconheço que foi um pouco heterodoxo, mas a bichinha também é um ser humano.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

Menos

ah se pelo menos
eu te amasse menos
tudo era mais fácil.

Paulo Leminski, em Toda Poesia

Espiões de Deus



Desde o começo, foi um troço sujo. Os primeiros espiões de que temos notícia foram os que Josué infiltrou em Jericó. Encontraram um “lugar seguro”, como dizem no jargão atual da espionagem; era a casa da prostituta. O segundo relato mais antigo está no Livro X da Ilíada. É um episódio sórdido de infiltração e contrainfiltração na noite, terminando numa carnificina abafada. Não à toa os estudiosos consideram essa narrativa como um acréscimo posterior, um pequeno melodrama não de Homero. Mas o fascínio do gênero é perene. Entre as primeiras obras literárias maduras nos EUA está O espião. James Fenimore Cooper, neste romance, põe à luz um tema tipicamente moderno: o agente duplo pretenso ou efetivo. No contexto da Revolução Americana, em que os adversários falavam a mesma língua e muitas vezes tinham laços de parentesco, existia quase por definição uma ambivalência do agente secreto. O mesmo aconteceu durante a Guerra Civil, cujos espiões secretos e mensageiros clandestinos encarnavam em si mesmos e em suas atividades obscuras o dilaceramento da lealdade dividida.
O germe da duplicidade é o demônio que habita todo agente. Como poderia ser diferente? O ofício de quem espiona se baseia na intimidade com a parte que está sendo espionada. O agente precisa se fundir com a cidade inimiga. O decifrador se insinua com seu próprio ser nos meandros do coração do codificador. (As longas “Reflections on Espionage” [Reflexões sobre a espionagem], poema sutil e engenhoso de John Hollander, trazem uma alegoria dessa intimidade especular entre o montador e o desmontador das tramoias.) Apanhado na rede enigmática de seu próprio “disfarce”, exposto, desmascarado, muitas vezes a saída do agente secreto é aceitar a proposta de uma dupla traição. Então começa a trabalhar para o lado que o capturou, mantendo nas aparências sua lealdade inicial. “Foi convertido”, como dizem.
Mas novas piruetas podem se seguir. Um agente duplo, com efeito, pode ser exatamente isso: pode estar entregando materiais genuínos para as duas partes, e assim se torna uma das pontezinhas ou sinapses neuronais que mantêm o indispensável contato mesmo entre os inimigos nacionais mais encarniçados. Não raro os dois patrões, ou “controles”, sabem que estão sendo mutuamente traídos, mas que há alguma vantagem nisso. Ao agente é concedida a imunidade desprotegida da terra de ninguém. Outras vezes, apenas um dos patrões sabe que seu agente é um “convertido”. (Durante a Segunda Guerra Mundial, esse conhecimento permitia que os “espias” aliados infiltrassem dados falsos nas principais artérias da rede de contrainformação alemã.) Mas existem muitos casos em que nenhuma das duas partes, neste mútuo engano, jamais pode saber com certeza onde reside a lealdade ou a traição do agente. Um agente aparentemente duplo — estaria o jovem Stálin trabalhando igualmente para a czarista Okhrana e para os bolcheviques? Estaria passando mais coisas para um lado do que para o outro? Teria retornado a seus primeiros recrutadores, depois de tê-los traído para os segundos? — escava e penetra irreversivelmente o labirinto de seus próprios objetivos secretos. E, como pergunta Joseph Conrad em O agente secreto, o próprio espião lembrará a quem é leal?
Essa pergunta, que pode ser tomada como símbolo das incertezas da identidade humana, daquela capacidade de enganar a si mesmo e de exercer uma memória seletiva que faz com que os homens vacilem ou tropecem ao descer a espiral de sua interioridade, ganha nova resposta na espionagem e na literatura de espionagem do século xx. Mesmo o agente triplo, que vende seus dois empregadores a um terceiro interessado, mesmo o espia mais venal e camaleônico (espiar, “olhar privadamente”, é a arte do voyeur), realmente tem uma causa última a que dá sua adesão. Na hora nauseante antes do alvorecer, enquanto aguarda a leve batida discreta do torturador à porta, ele é leal não às nações ou aos governos que o compram e o vendem, e sim à sua profissão, à fina teia urdida, incessantemente rompida, incessantemente reparada, que une numa mesma intimidade de desconfiança todos os agentes, todos os homens com minicâmeras em salas de arquivos às escuras, todos os calígrafos escrevendo com tinta invisível, qualquer que seja a bandeira sob a qual exercem seu ofício. Nenhum espião jamais quer sair do frio. Seu único lar é a tundra do ofício compartilhado. Seu único vínculo afetivo é o da estima profissional como há entre a caça e o caçador.
Nos sentimentos britânicos, esse terrível paradoxo adquiriu uma faceta obsessiva. A infiltração de Kim Philby nos mais altos escalões do serviço secreto britânico, a serviço da inteligência soviética, e as traições correlatas de Guy Burgess e Donald Maclean, cuja fuga para Moscou foi urdida por Philby, tornam-se cada vez mais intrigantes à medida que passa o tempo. Em parte isso se deve ao implacável descaramento do golpe, junto com a ineficiência da reação oficial. (Ou pior: terá havido uma conivência ou um acobertamento em escalões ainda mais altos?) O desastre Philby, sórdido, estabanado, de alto custo — o serviço secreto americano jamais voltou a se sentir à vontade para trabalhar em plena coordenação com seus “primos de primeiro grau” —, veio a simbolizar algumas falhas nevrálgicas de imaginação e técnica nos assuntos públicos britânicos.
Mas existem razões mais profundas para o mal-estar. Com sua instrução e a posição social da família, com suas maneiras e estilo de vida, Philby e seus subordinados encarnavam a casta superior cuja absoluta fidelidade, cuja devoção inquestionada ao serviço público fornecia a própria base para a confiança britânica no governo de uma elite diletante. Judas pertencera aos clubes certos. Pior: fizera parte do comitê da casa. O choque da revelação atingiu o âmago. E fez com que E. M. Forster apresentasse uma das mais surpreendentes proposições modernas: a de que um autêntico cavalheiro e humanista é aquele que prefere trair o país a trair um amigo (a inferência sendo que o amigo também é um “cavalheiro”, e que trair um rude plebeu não colocaria nenhum problema que se compare). O drama de Philby confere uma densidade especial — embora, no caso mais recente, com uma exuberância um tanto sentimental — aos romances de espionagem de John le Carré. É este o tema da peça atual de Alan Bennett, The Old Country [O velho país], na qual sir Alec Guinness está primoroso no papel de Philby em seu retiro moscovita. E é, inevitavelmente, o pano de fundo do vigésimo romance de Graham Greene, O fator humano (Simon & Schuster, 1978), que, pelo que podemos entender, começou muitos anos atrás como uma reflexão sobre Philby.
Graham Greene é, faz muito tempo, um mestre da política da tristeza. Nisto é herdeiro de Conrad, a quem o novo romance vai buscar sua desolada epígrafe: “Só sei que quem cria um vínculo está perdido. O germe da corrupção lhe entrou na alma”. Maurice Castle (o nome aponta para Forster e também para Kafka) criou um vínculo. Ama sua esposa negra Sarah e o enteado negro Sam. O plano de fugirem da África do Sul, das leis raciais que impediriam o casamento e a vida juntos, era muito arriscado. Não conseguiriam sem a ajuda de Carson, obscuramente entregue à morte numa prisão sul-africana, e de seus associados contra o apartheid, inclusive comunistas. Essa dívida une ainda mais Castle a Sarah. Castle honra a dívida desonrando seu cargo e a confiança depositada nele. Faz-se agente duplo.
Castle ocupa um nicho vagamente elevado num dos velhos becos do serviço secreto britânico. Mantém sob melancólica vigilância as ex-colônias africanas. Detesta as políticas sul-africanas e passa para seus contatos soviéticos qualquer informação capaz de ajudar a inibir a difusão do apartheid e a repressão ainda maior à resistência dos liberais e esquerdistas dentro da África do Sul. Quando Sarah fala em “nosso povo”, Castle é tomado por uma súbita sensação de lar, mais próxima, mais vital para seu íntimo, para o coração que vem envelhecendo, do que sua identidade de inglês de nascimento ou do que a função oficial que desempenha. Descobre-se um vazamento no departamento de Castle. O serviço de contrainformação desconfia de uma “toupeira” — termo usado para designar um traidor no meio do serviço secreto, alguém entocado ali dentro trabalhando a mando de uma agência de espionagem estrangeira. A lógica da suspeita, de início informal, e que depois adquire uma coerência falaciosa, aponta para Davis, o assistente distraído e levemente descuidado de Castle. O coronel Daintry quer provas sólidas antes de prosseguir, mas dr. Percival, que cuida dos problemas de saúde na “firma” (a equipe de espionagem), é menos sentimental. Davis morre envenenado.
Enquanto isso, Castle recebe ordens de colaborar diretamente com o mesmo homem do serviço secreto sul-africano que antes perseguira a ele e Sarah. Tio Remus é o codinome de um desses planos antissubversivos, mutuamente vantajosos, em que a África do Sul e os eua defendem seus interesses comuns contra os comunistas. Castle transmite um último dossiê com informações essenciais e, sabendo que os sapadores estão chegando perto, resolve detonar a situação. Está cansado da Inglaterra. No final do romance, a linha telefônica, por onde ouvira brevemente a voz de Sarah, fica muda. Temos a impressão de que vai demorar muito até que Castle volte a ver a esposa e Sam, e será um período bem difícil. No limbo de seu apartamento em Moscou, ele está lendo Robinson Crusoé. Quanto tempo o náufrago ficou abandonado na solidão da lembrança? “Vinte e oito anos, dois meses e dezenove dias…” Mas Moscou é uma ilha ainda mais distante.
Ao longo de todo o romance, estamos no espaço restrito e limitado que Greene adotou em sua obra. O tom é de fim. Castle é estéril. Os espiões e contraespiões britânicos operam numa base de poder ou importância drasticamente reduzida. Os sonhos marxistas se transformaram em pesadelo ou se mumificaram num conjunto de atitudes e metáforas tão vazias, tão corrosivas quanto as do liberalismo ocidental clássico. (Aqui Greene é ainda mais desencantado do que Le Carré, que fez do “centro faltante” um elemento constante de suas tramas.) Qualquer élan que exista consiste ou na brutalidade deliberada do boss (a agência do serviço secreto sul-africano) ou na pressão indiferente da ingenuidade americana. Em Daintry, o elevado código do cavalheiro e servidor público inglês mirrou e virou ineficiência. (A única passagem mais faiscante no livro mostra um Daintry atrapalhado e aturdido com o casamento de sua filha com alguém de posição inferior, por obra da esposa mandona da qual ele tinha se separado muito tempo antes.) Em dr. Percival, esse mesmo código degenerou numa imperturbável propensão homicida.
Dos clubes estiolados em St. James’s, das livrarias com sua coleção de edições eróticas, dos bairros residenciais regados a uísque, Greene cria imagens de toda uma sociedade cansada, arfando rumo a algum futuro levemente sórdido — visão esta que já se encontrava em Brighton Rock, em 1938. Um diálogo entre Castle e Davis, no começo da novela, contém o discreto sarcasmo da narrativa inteira:

Qual foi a informação mais secreta que você já teve, Castle?
Uma vez eu soube a data aproximada de uma invasão.
Da Normandia?
Não, não. Só dos Açores.

Esse “aproximada” é de mestre.
Mas, mesmo sendo uma obra enxuta e muito bem montada, não é uma das grandes coisas de Greene. O texto é cheio de autorreferências. Para dar corpo à caracterização e aos temas apenas indicados, o leitor precisa se lembrar de episódios muito similares, trechos de diálogos, o movimento das emoções em Nosso homem em Havana e O cônsul honorário. Como ocorre com frequência em Greene, o tratamento do amor conjugal, central para a traição de Castle, é precário. O diálogo entre Sarah e Castle é canhestro; a dolorosa intimidade entre ambos é sugerida, jamais realizada. São as vinhetas rápidas que se destacam: Bellamy (“Philby”) indo visitar Castle em Moscou.
O tema de longe mais interessante em O fator humano é a sugestão de Greene de que o catolicismo e a espionagem oferecem um instrumento de consolo e verdade que nem o protestantismo, nem o racionalismo secular (seu infeliz fruto) conseguem igualar. É preciso que se espreite a alma; é preciso que haja ouvintes ocultos que possam punir e consolar. O agente que apresenta um relatório a seu controle e o católico ajoelhado diante do confessor estão no mesmo barco arriscado. Mas nessa travessia, com seu desnudamento do espírito, com sua aceitação da penitência, encontra-se a solidariedade. Greene utiliza esse paralelo. Uma vez Castle viu um padre de verdade, um servo do Senhor, trabalhando nos cortiços de Soweto, e sabe que o comunismo também tem uma face humana — que alguma verdade última na visão comunista sobreviveu a Praga e a Budapeste, tal como o catolicismo sobreviveu aos Bórgias. E na cena essencial do livro, uma cena composta para lembrar explicitamente a obra máxima de Greene, O poder e a glória, Castle, que não segue religião nenhuma, tenta surripiar o consolo do confessionário. Como Kierkegaard, Greene sabe que o mais solitário dos homens é aquele que não tem nenhum segredo — ou, mais precisamente, aquele que não tem ninguém a quem possa trair um segredo. Assim, há uma estranha afinidade em todas as traições e uma teologia ressoando na misteriosa advertência de Lear a Cordélia: sejamos “espiões de Deus” e cantemos como os passarinhos na gaiola.
Essa noção tem um fascínio sombrio, como aquelas fantasias de identidade clandestina que tantos de nós usam para amparar nossos devaneios. É o pobre Davis que deixa escapar a verdade: “Que profissão danada de idiota é a nossa” (onde “profissão” traz, como sempre em Greene, o atrativo de suas raízes etimológicas). Mas é exatamente essa percepção que Greene, Le Carré e a vasta tribo que enxameia em torno deles procuram evitar. Existem aparelhos capazes, dizem, de detetar o calor do exaustor de um tanque a 25 mil metros. O jornalismo investigativo e o espírito agora universal da fofoca inundam as bancas de jornal com informações ultraconfidenciais. Revistas populares trazem diagramas mostrando como montar bombas nucleares. Existe alguma coisa realmente nova ou decisiva no material que os espiões mascateiam para seus clientes? Josué precisava de quatro olhos disfarçados para lhe dizer que Jericó tinha muros e que seus moradores não receberiam bem uma invasão? Talvez toda a indústria da espionagem tenha se convertido numa brincadeira frívola, numa amarelinha mortífera numa casa de espelhos.
Gostaria que todas as mentiras fossem desnecessárias”, confidencia Castle a Boris, seu controle soviético. “E gostaria que estivéssemos do mesmo lado.” Talvez estejamos, e talvez Greene nos sussurre que este, porém, é o lado dos perdedores. Confiteor.
8 de maio de 1978

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

Ah!

Ah! jamais ter necessidade de pronunciar essa interjeição…

Mário Quintana, em Caderno H

Seô Habão


[…]

Vai, e eu, por um raio de momento, eu tinha concebido que carecesse de tirar a vida a Zé Bebelo, por maior sossego de meu reger, no futuramente; e agora eu estava quase triste, com pena de ver que ele ia-sembora. O divertido havia de ser, sim isso, de levar Zé Bebelo comigo, de sotenente, através desse através. Ah, homem como aquele, não se matava. Homem como aquele, pouco obedecia. A ele mandei fornecer mais um cavalo, e um cargueiro ― com mantimento, coisas, munição melhor. Dali a hora, mesmo, ele pegou caminho. Para o sul. Vi quando ele se despediu e tocou ― com o bom respeito de todos ― ; e fiquei me alembrando daquela vez, de quando ele tinha seguido sozinho para Goiás, expulso, por julgamento, deste sertão. Tudo estava sendo repetido. Mas, da vez dessa, o julgamento era ele, ele mesmo, quem tinha dado e baixado. Zé Bebelo ia s embora, conseguintemente. Agora, o tempo de todas as doideiras estava bicho livre para principiar.
De seguida, parado persisti, para um prazo de fôlego. Aí vendo que o pessoal meu já me obedecia, prático mesmo antes da hora. Como que corriam e mexiam, se aprontando para saída, sacudiam no ar os baixeiros, selavam os cavalos. Tantos e tantos, eu sabia o nome e o defeito maior de cada um daqueles homens, e tantos seus braços e tantos rifles e coragens. Aí eu mandava. Aí eu estava livre, a limpo de meus tristes passados. Aí eu desfechava. Sinal como que me dessem essas terras todas dos Gerais, pertencentes. Por perigos, que por diante estivessem, eu aumentava os quilates de meu regozijo. A fé, quando eu mandasse uma coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer jeito. ― Tenho resoluto que! ― e montei, com a vontade muito confiada. Dali a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata. Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o trinca-ferro. Uma arara chiou cheio; levou bala, quase. Atrás de mim, os cabras deram vivas. Eles vinham, em vinham. Eu contava, prazido, o tôo dos cascos.
Dei galope. No Valado chegamos, conforme íamos retornar, por assim. De galope, como está dito. Gente, gentinha, nos rodeou, roceiros em seu serviço. Aquele seô Habão, incluso, muito estarrecido. Esbarramos parada. O que eu carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. Era primeira viagem saída, de nova jagunçagem; e as extraordinárias cousas, para que todos admirassem e vissem, eu estava em precisão de fazer. E vi um itambé de pedra muito lisa; subi lá. Mandei os homens ficassem em baixo, eles outros esperavam. Minha influência de afã, alegria em artes, não padecesse de se estorvar em monte de pessoas nenhumas. De despiço, olhei: eles nem careciam de ter nomes ― por um querer meu, para viver e para morrer, era que valiam. Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo.
Fiquei lá em cima, um tempo. Quando desci, umas coisas eu resolvia. Aonde se ia; em cata do Hermógenes? Ah, não. Antes, primeiro, para o Chapadão do Urucúia, onde tanto boi berra. Ao que me seguissem. Ah, mas, assim, não. O que foi o que eu pensei, mas que não disse: ― Assim não...
E veio perante minha presença o seó Habão, mais antecipado que todos; macio, atarefadinho, ele já me sussurrava. Homem, esse! Ele queria me oferecer dinheiro, com seus meios queria me facilitar. Ah, não! de mim ele é que tinha de receber, tinha de tomar. Agarrei o cordão de meu pescoço, rebentei, com todas aquelas verónicas. As medalhas, umas delas que eu tinha de em desde menino. Fiz gesto: entreguei, na mão dele. O senhor havia de gostar de ver o ar daquele seó Habão, forçado de aceitar pagamento do que nem eram correntias moedas de tesouro do rei, mas costumeiras prendas de louvor aos santos. Ele estava em todos tremóres ― conforme esses homens que não têm vergonha de mostrar medo, em desde que possam pedir à gente perdão com muita seriedade. Digo ao senhor: ele beijou minha mão! Ele devia de estar imaginando que eu tinha perdido o siso. Assim mesmo, me agradeceu bem, e guardou com muito apreço as medalhas na algibeira; até porque, não podia obrar de outra forma. Matar aquele homem, não adiantava. Para o começo de concerto deste mundo, que é que adiantava? Só se a gente tomasse tudo o que era dele, e fosse largar o cujo bem longe de lá, em estranhas terras, adonde ele fosse preta-e-brancamente desconhecido de todos: então, ele havia de ter de pedir esmolas... Isso, naquela hora, pensei. Ah, não. E nem não adiantava: mendigo mesmo, duro tristonho, ele havia ainda de obedecer de só ajuntar, ajuntar, até à data de morrer, de migas a migalhas...
As verônicas e os breves ele vendesse ou avarasse para os infernos. Comigo só o escapulário ainda ficou. Aquele escapulário, dito, que conservava pétalas de flôr, em pedaço de toalha de altar recosturadas, e que consagrava um pedido de benção à minha Nossa Senhora da Abadia. Que, mesmo, mais tarde, tornei a pendurar, num fio oleado e retrançado. Esse eu fora não botava, ah, agora podia desdeixar não; inda que ele me reprovasse, em hora e hora, tantos meus malfeitos, indas que assim requeimasse a pele de minhas carnes, que debaixo dele meu peito todo torcesse que nem pedaço quebrado de má cobra.
E, num reverter de mão, eu já estava pensando! o que eu ia fazer com ele, com o seô Habão, por alguma alvíssara de mercê. Porque, em fato, ele merecia, e eu a ele devia. Porque ele tinha vesprado em reconhecer meu poder, antes de outro qualquer; e mesmo um barão de presente dele tinha sido, e era, aquele meu formoso cavalo Siruiz, em qual eu estava amontado.
Aí, me lembrei, de uma coisa, e isso era próprio encargo para ele, cabendo em sua marca de qualidade. Me lembrei da pedra! a pedra de valor, tão bonita, que do Arassuaí eu tinha trazido, fazia tanto tempo. Tirei o embrulhinho, da bolsa do cinto. Apresentei a ele. Eu falei!
Seô Habão, o senhor escute, o senhor cumpra! pega este, mimo, zelando com os dedos todos de suas mãos... Já e já, o senhor viaje, num bom animal, siga rumo dos Buritís Altos, cabeceira de vereda, para a Fazenda Santa Catarina...
E mais disse! que era para entregar, de minha parte, à moça da casa, que Otacília se chamava, a qual era minha sempre nôiva. Mas não dando razão de nomear minha pessoa pelos altos títulos, nem citando chefia de jagunços... Mas somente prezar que eu era Riobaldo, com meus homens, trazendo glória e justiça em território dos Gerais de todos esses grandes rios que do poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto Deus dura!
Ah, não: em Deus não falasse. Seó Habão pós atenção; perturbado mas sisudo, ele cogitava. O que ele dizia, carecia de ser repetido, esfiando o assunto nas pontas dos dedos, tostões. Ser rico é um diverso dissabór? Que um pudesse se acautelar assim, me atanazava. Quem era? O que por primeira vez reparei: que ele tinha as orêlhas muito grandes, tão grandonas; até, sem querer, eu tive de experimentar com a mão o tamanho medido das minhas. Melhor trazer esse sujeito comigo, perto mais perto, para poder vigiar, por todas as partes? Melhor, não; o melhor seria desmanchar a presença dele em definitivas distâncias. ― Não vou comer teus peitos, teu nariz, teus duros olhos moles... ― eu pensei. Mas ele também tinha alguma espécie de chefia. Eu virei a cara, andei três passos, dando com Diadorim. ― O que eu tolero e desentendo, esse homem: que é, porque, dele, não se consegue ter raiva nem ter pena... ― falei. Mas vi um adêjo sombrio no meu amigo, condenado que era de tristeza que não quer ceder suas lágrimas. O quanto, por causa da pedra de topázio? ― eu reconheci. Eu não tinha tido dó de Diadorim.
Deistá, tem tempo, Diadorim, tem tempo... ― pensei, a meio. Da amizade de Diadorim eu possuía completa certeza. E mais não me amofinei. De manhã cedo, o senhor esbarra para pensar que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à gente, muito forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E eu estava naquelas impaciências.Trasmente que, em Otacília, mesmo, verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter saudade. Otacília estava sendo uma incerteza ― assunto longe começado.Visse, o que desse, viesse. O seó Habão ia, levava a pedra de topázio, a vida do mundo ia vivendo, coração dá tantas mudanças; meus dízimos eu pagava. O pássaro que se separa de outro, vai voando adeus o tempo todo. Ah, não, eu não ― rio, riachos! ― não me amofinava. Aquela tristeza de Diadorim eu não aceitei, nem ceitil não recebi. Ingratidão, para o mais-tarde.
Mas o seô Habão não queria ter terminado! negócio que carecia ainda de algum ponto. Dei licença. Ele perguntou, sonseante! ...se eu não prazia de enviar por ele algum recado também para o senhor meu pai, Selorico Mendes, dono do São Gregório, e de outras boas e ricas fazendas?... Eu achei graça, acenei que sim! disse que fosse, reproduzisse a minha saudação... E então foi que o seô Habão levantou a cara, aquietado ― até mediante sorriso. De sorte que, para corrigir em siso a tranquilidade daquilo, eu determinei! ― O senhor vá logo, logo, de rota abatida... E de lá não quero nenhuma resposta... ― enquanto ri, de ver como ele me obedecia expresso, sem necessidade de caráter.
Onde que, mal dele livre me vi, gritei, despachado, pelos demais. Dand ordens! ― A rodar por aí, me trazerem os homens!
Ques homens? Os todos que fossem e houvesse. ― Quem tiver instrumento ― a toque! Quem gostar de dansar, arre melhor! Pr apreparo, trazer as mulheres também... Com que as músicas, de lá, lá, lá... Tudo tinha de semelhar um social. Ao pois, quem era que ordenava, se prazia e mandava? Eu, senhor, eu! por meu renome, o Urutú-Branco... Ah, não. Festa? Eu já estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela porção de homens, e formar todos de guerreiros. A com a gente, a que viessem. Aquilo valia? Os outros não falaram, decerto não acharam ou acharam. Ou quanto mais que, eles, os meus, só mesmo o mover por me agradar, só, era o que de si desejavam; e aquela minha lei era divertida. Saíram, espalhados sendo, em caçar, em boa alarida.
[...]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas