quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Marcelo D2 • Desabafo

O vazio dos sonhos

É próprio do homem insensato sustentar-se das vãs esperanças e de mentira; e os sonhos dão asas à fantasia dos imprudentes.
Como quem se abraça com uma sombra e vai atrás do vento, assim é o que atende a enganosas visões.
As visões dos sonhos são a semelhança das coisas; são como a imagem de um homem diante do seu próprio rosto.
Que coisa será limpa para um imundo? É por um mentiroso que a verdade será dita?
A adivinhação errônea, os agouros falsos, e os sonhos dos malfeitores são vaidade.
E o teu coração, como o da mulher que está de parto, padecerá imaginações. Se pelo Altíssimo não te foi enviada alguma destas visões, não ponhas nela teu coração.

Eclesiastes, 34, 1-6, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Brincadeiras


Sem a presença da sinhá Ana Felipa o ambiente na casa era muito melhor, mesmo com a Esméria nervosa com tanto trabalho e com o Sebastião mantendo a ordem e mandando em todo mundo como se fosse branco. Tínhamos mais liberdade, principalmente eu e a sinhazinha, que podíamos acompanhar o Tico e o Hilário em brincadeiras que, se a sinhá Ana Felipa visse, brigaria com a sinhazinha e mandaria castigar os meninos. Todas as pessoas gostavam deles, menos ela, que não permitia que nenhuma de nós duas conversasse com eles, os negrinhos de boca suja, como ela dizia. Bem se via que era perseguição, e o sinhô José Carlos não disfarçava certo prazer nas ocasiões em que ficava contra ela, a favor dos meninos. Mas naqueles dias podíamos brincar à vontade, e uma das brincadeiras preferidas dos meninos, que logo caiu no gosto da sinhazinha, era caçar passarinhos. Eu acompanhava só para não deixá-la sozinha com os moleques, pois, mesmo sendo mais nova, eu me sentia responsável por ela, e, com certeza, seria castigada caso algo ruim acontecesse. Eu tentava ficar de longe, sem olhar, mas, mesmo não olhando, sabia exatamente quando eles matavam algum passarinho, pelo piado triste ou pela falta do piado. Era como se sentisse a dor e o desespero deles, como se parte de mim também sofresse com eles. De início, a sinhazinha soltava algumas palavras de pena, mas logo se acostumou e passou a gostar da ideia, pedindo aos meninos que segurassem as aves aprisionadas entre as mãos para que ela as acertasse com uma pedrada, sem risco de errar, a poucos metros de distância. Os meninos eram certeiros com o bodoque mesmo de longe, e ficavam orgulhosos quando conseguiam atingir os bichinhos bem entre os olhos. Se não morriam na hora, ficavam tontos e não conseguiam voar, sendo presa fácil para a sinhazinha. Eu me sentia muito mal com tudo aquilo e falava com ela, que nem ligava. As fugidas para as matas, atrás dos meninos e seus bodoques ou arapucas, eram seu passatempo preferido, substituindo até as bonecas. Chegou a me dar duas de presente, que a Esméria não me deixou levar para a senzala enquanto a sinhá Ana Felipa não autorizasse, com medo de que eu fosse castigada.
A Esméria me contou sobre alguns castigos a que os pretos eram submetidos, raramente os da senzala pequena, que, pelo bom tratamento recebido, acabavam se comportando melhor. Embora precisassem ter muita paciência para não aceitar provocações dos outros, que estavam sempre tentando criar confusão para que um escravo de casa fosse mandado para a pesca ou para a roça, dando oportunidade para que alguém da senzala grande ocupasse o seu lugar. Com medo dos castigos e querendo também acabar com a matança dos passarinhos, resolvi contar para a Esméria um acontecimento que provocou a minha primeira briga séria com a sinhazinha, mas que nem se comparava ao que poderia ter acontecido caso alguém nos denunciasse. Certo dia, na mata, o Tico perguntou se queríamos vê-lo fazendo xixi, e já foi logo desamarrando o cordão e abaixando a calça. Eu já tinha visto muitos membros, mas a sinhazinha não, e começou a rir, achando aquilo muito engraçado. Os meninos disseram que os membros também eram chamados de passarinhos e que, ao invés de beberem água, como os de verdade, cuspiam água. O Hilário também abaixou a calça e começou a fazer xixi, guiando o jato na direção de uma fila de formigas, fazendo um risco sobre o caminho que elas traçavam. Eu me lembrei dos riozinhos do Kokumo e da minha mãe e da volta que as formigas davam para evitá-los. O Tico fez a mesma coisa, e o membro dele começou a ficar duro e a crescer, não do mesmo jeito que os membros dos guerreiros em Savalu, mas ele perguntou se eu ou a sinhazinha queríamos segurar nele e ajudar na matança das formigas. Ela parecia que ia aceitar e já estava andando na direção dele quando, pela primeira vez, fiz o que ela não queria. Peguei em seu braço com toda a minha força e saí correndo, e enquanto ouvíamos as gargalhadas dos meninos, ela reclamava que o vestido estava se prendendo nos galhos e ficando todo rasgado. Mesmo assim, não parei até chegarmos à casa, com ela me chamando de preta fedida, dizendo que ia mandar o pai me castigar no tronco e que nunca mais ia querer saber de mim. De fato, ficou dois ou três dias sem falar comigo, mas depois se esqueceu da promessa e também dos passarinhos, o que deve ter coincidido com a conversa que a Esméria teve com ela e depois com os meninos. Eles me contaram que ela jurou que cortaria fora os membros deles, caso se atrevessem a mostrá-los de novo à sinhazinha.
Voltamos às bonecas, mas elas já não tinham mais muita graça, e de vez em quando a sinhazinha me pedia para falar sobre os membros dos homens, como é que eles faziam para ter aquilo, até que tamanho cresciam, se serviam para outras coisas além de fazer xixi. Eu não contei o que sabia e o que já tinha visto, pois se fosse pega falando daquelas coisas para ela, aí é que poderia mesmo ir para o tronco ou ficar sem a língua, como tinha acontecido com o velho Fulgêncio, preto forro que às vezes chegava até a porta da cozinha querendo alguma coisa para comer. A Antônia contou que o ex-dono dele tinha mandado cortar a sua língua porque falou o que não devia. A sinhazinha era dois anos mais velha do que eu, mas não sabia nada daquilo, que eu também preferia não ter sabido tão cedo, pelo menos, não nas circunstâncias do acontecido.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

O Realismo de Leffel

Natureza-morta (s.d.), de David Leffel

Verbo irregular

pra sempre é passado
é mais uma promessa apostando corrida
com todas as outras
na escadaria da igreja da penha

voltaria atrás
de joelhos
pra chegar primeiro
no futuro

porque se o tempo cura tudo
e o tal futuro a deus pertence
não vou duvidar
que milagres acontecem

mas pra sempre vou achar
não quero me especializar
em ter certezas, em fabricar
situações definitivas
toda vez que me vierem à cabeça
seus lábios de algodão
doce se dissolvendo
nos meus.

Bruna Beber, em Rapapés & apupos

Canto de Muro | Depoimento



Now that this book is printed, and about
to be given to the world, a sense of its
short comings, both in style and contents,
weighs very heavily.
H. Rider Haggard: King Solomons’s Mines

Para muito leitor parecerá estranha esta atividade inesperada num velho professor provinciano, convertido à sedução da História Natural e aos encantos divulgativos de leituras recentes. Canto de Muro, entretanto, é um livro de poucos meses, vivido em muito mais de quarenta anos.
Muito antes de 1918, segundanista de Medicina, no Rio de Janeiro, andava eu colecionando insetos, criando escorpiões (chamados no Nordeste “lacraus”), aranhas caranguejeiras e formigas saúvas, na grande chácara que meu pai possuía no bairro do Tirol, na cidade do Natal. Ali moraram Sofia, na mangueira escura e copada, o sapo Fu, pássaros agora fixados, o senhor Ka, no estábulo, e, nas gaiolas, a coruja Maroca e o Xexéu imitador. Ali ocorreu a nuvem de borboletas, creio que nos finais de 1919, tido como presságio de grande seca. O bacurau-mede-léguas vivia próximo, e no quintal ondulavam a jararaca e a cobrinha-de-coral. No quarto da lenha penduravam-se os morcegos. No tabuleiro derredor, o povo da rainha Ata. No canto de muro, perto do tanque, morada de Dica, estavam as telhas com as baratas, e no alpendre velho, onde apodrecia o carro, dormiam os filhos de Musi. Gô corria por este mundo, e o seu caso fatal, deixando o rabo numa ratoeira e a cabeça noutra, sucedeu numa mercearia do meu primo, Bonifácio Dario, onde está o Edifício Natal, na Praça Augusto Severo. Os dois urubus, um morto e outro atropelado pelo automóvel, foram vítimas do veículo em que viajavam meu pai e o Coronel Manuel Maurício Freire, na reta da Tabajara, caminho para a cidade da Santa Cruz.
Minha curiosidade fez muitas vítimas para a lupa e o microscópio, com corantes e fixadores inauditos. Os cadernos se foram enchendo de notas mas nunca delas me aproveitei. Quase todos os episódios ocorreram na saudosa Vila Cascudo, paraíso perdido em 1932. A pesquisa sobre morcegos, frutívoros ou hematófogos, é da praça Sete de Setembro, assim como o estudo no estômago do senhor Ka. O caso da raposa e o avião passou-se entre a Fazenda Taborda e a Vila de Parnamirim, em 1943. O namoro dos pombos foi observado duma janela do apartamento do meu filho, no Recife, julho de 1957. À batalha da jararaca com a acauã assistiu meu pai nos arredores do Acari. O grilo, as lavadeiras, o bem-te-vi, o caminho novo das saúvas são fatos de minha atual residência, na Avenida Junqueira Aires. Os xexéus e as tapiucabas foram vistos no Engenho Mangabeira, do Coronel Filipe Ferreira, em Arez. O duelo e o bailado de Titius foram presenciados no Tirol, assim como a briga das caranguejeiras.
Verificações posteriores foram feitas com aparelhagem emprestada pelo Dr. Onofre Lopes, então diretor da Faculdade de Medicina, e colaboração do Dr. Grácio Barbalho, professor de Bioquímica.
Nunca deixei de interessar-me pelo assunto, lendo o possível e tomando notas desinteressadas. Os caderninhos do Tirol estavam esquecidos e eu mesmo perdi o que tratava das lesmas, minhocas, e de um grande gafanhoto de jurema. Ainda possuo as observações pessoais sobre a pesca do voador e a caça das ribaçãs, parcialmente aproveitadas no trabalho que presentemente me ocupa, da etnografia geral, pesquisas e notas do curso na Faculdade de Filosofia do Natal.
Em fins de dezembro de 1956, meu filho adoeceu gravemente no Recife. Dáhlia e Anna Maria, mulher e filha, foram para junto dele. Fiquei sozinho e desesperado de angústia. Inexplicavelmente, pensei nos meus bichos de outrora e no convívio inesquecido da longínqua chácara do Tirol. Escrevi o primeiro capítulo. José Pires de Oliveira, então gerente do Banco do Estado de São Paulo, tomou-se de amores, contagiando-me o entusiasmo e prestando-se a repetir experiências. Na ansiedade em que vivia, o esforço foi uma derivação sublimadora e o livro nasceu com violência. Revi o material, atualizando documentação e verificações. Num clima de inquietação e susto Canto de Muro se ergueu, página a página.
Fernando Luís veio convalescer no Natal. O livro estava pronto e nele não passa uma figura humana, um problema, a sombra do Homo sapiens. Não pensava publicá-lo, e se o fizesse seria sob pseudônimo. Os meus amigos José Olympio e Daniel Pereira aceitaram, generosamente, todas as condições, livro com nome suposto, sigilo, animando-me. Mas minha mulher, filhos, o Bambi (José Pires de Oliveira) e, por fim, Daniel Pereira, teimavam gentilmente em que eu assinasse o livro. Acabaram vencendo.
Nenhum outro possui, como este, a tonalidade emocional. Por isso, relativamente aos já publicados, no es que fuera mejor ni peor – es otra cosa!
377, Av. Junqueira Aires, Natal

Luís da Câmara Cascudo, em Canto de Muro

Atento

Em uma conversa, devemos dar atenção ao que é dito, assim como refletir sobre o efeito de cada ato. Neste último caso, olhe adiante para as consequências; com relação às palavras, fique atento aos seus significados.

Marco Aurélio, em Meditações

o remorso de baltazar serapião | quatro


passava o curandeiro cheio de sabedoria e conselhos de boticário. alinhámo-nos em minutos para que nos verificasse as alterações de postura, cor e odores. ele rodava muito lento cerca de cada um e desconfiava de tudo, parecia procurar falhas como se fosse do espírito de cada pessoa. escarafunchava buracos todos, descobria-nos coisas nunca vistas na pele mais escondida. mas era pelo feitio exterior, como qualquer nódoa nas mãos que não saísse com água, que ele nos estudava. depois tirava instrumentos de bater ou apertar, passava as mãos sobre nós a magoar nas zonas doridas, e zangava-se pela nossa falta de atenção, já nem sabíamos como nos aleijáramos. ficávamos à espera que nos desempenasse braços, peito e pernas, que nos tapasse feridas abertas, que nos descobrisse parasitas ou outras coisas esquecidas no corpo. e ele lá nos mandava ao boticário também, a tirar da cabeça coisas para beber e comer de necessidade para a saúde, porque nos dava frio aos pulmões e respirar podia ser difícil, ou porque o estômago rejeitasse os melhores frutos que comesse. o curandeiro vinha sempre para esticar o pé à minha mãe, puxava-lho, ela a gritar, a desentortá-lo um bocado, como dizia, e que pena não poder fazê-lo mais vezes se, na insistência, o pé tornaria ao seu lugar. mas ela duvidava de medo, também atazanada com ele a mexer-lhe nos olhos, deitando-lhe vapores e bufando para dentro. o meu pai perdia muitas vezes a paciência, dizia que merda para aquelas coisas e, furioso, saía-nos da beira. o curandeiro gritava-lhe de alto, que às ordens de visita de dom afonso não haveria de ser mal obediente o meu pai. por isso, o sarga voltava mansinho de obrigação e permitia que o curandeiro lhe enfiasse dedo nos ouvidos a doer-lhe, como se fizesse de propósito. se o senhor sarga não ficar quieto ainda lhe dói mais, dizia quase sorrindo de dentes incrivelmente brancos. o curandeiro, eu notei, sabia que ao meu pai aproveitava muito a tortice de minha mãe. com o pé em modos de pouco andar, ela haveria de estar sempre por ali, e mais que a fúria do meu pai pudesse acontecer um dia, à minha mãe não lhe valeria corrida alguma. haveria de estar parada por natureza, à mercê da sabedoria do marido. e mais nada se intrometeria entre administração tão correcta de um casamento.
o aldegundes pedia ao curandeiro pela sarga constantemente. que fosse a vê-la, tão bom se nos dissesse como engordá-la, ainda que as nossas rações fossem nenhumas de tanta pobreza, e que a erva lhe parecesse sempre um tão desinteressante prato. mas ele não estava pelos animais, e só a insistência do aldegundes e a anuência do meu pai o levavam a olhar para a vaca e dizer que estava muito velha, já era bênção suficiente que não morresse. mais do que isso ele não fazia, nunca tocaria no animal, se depois seguia directo para a casa de dom afonso, a vê-lo e à dona catarina, para lhe descobrir chatos nas partes da natureza, como eu saberia mais tarde pela brunilde, também contaminada pela praga, a coçar-se feia de gestos pelo caminho, à vista de todos. não se apanham chatos durante a virgindade, é o que se notava, e ela com catorze anos estava solteira de noivos e maridos mas nada de castidades. o curandeiro podia garanti-lo, informado das necessidades femininas dela, algumas dores que lhe deram tempos antes, segredadas para que não fossem uma gravidez indesejada. e não era.
o aldegundes apartou-se embicado de arrelio e não quis falar com ninguém. estava predisposto a deixar de ser amigo de todos, se a sarga ficaria ali para correr quaisquer perigos sem apoio. agora que a tiraríamos do seu poiso e a teríamos fora da casa, encostada a uma parede debaixo de uns tristes tapumes, e se não nos batíamos por que engordasse de forças e aspecto era porque a deixávamos a morrer do azar da nossa tão grande desumanidade. o senhor santiago, o curandeiro, fungou-lhe para cima e ordenou-lhe que crescesse de atitudes e responsabilidades, não fosse perpetuar indecentemente a fama do pai de dormir com vacas. e era o que se dizia, que dormia com as vacas e a uma até lhe pediu os filhos que tinha, por isso a tratava em casa como membro da família. assim terminou a visita. todos nós para cada lado tombados de tanto nos enfiar dedos e mãos, irritados, maltratados de termos uma vida cheia de maleitas de corpo e imprecações de cabeça.
foi o curandeiro que levou recado à minha amada. assim eu a tinha, posta no coração de tanta ansiedade e fascínio de beleza. e ele convinha, muito douto e sabedor, mesmo tocado de alguma nobreza pela amizade que lhe vinha dos senhores dom afonso e dona catarina a salvo nos seus cuidados, e lá me dizia, estás bom de corpo e cabeça, darás bom juízo a uma rapariga tão criada. eu encolhia os ombros de alegria e pedia-lhe informações. ele não me contava nada, e verdade bastava-me que me dissesse dela a saúde e a curiosidade em saber com quem se casaria. e assim era. perante a minha insistência, ele acedeu a dizer-lhe que eu a amava e que, turvado desses sentimentos por si, estaria disposto a elevá-la num matrimónio onde a respeitasse como poucos maridos o fariam. aconselhou-me dos chatos e dos preparos para a noite de conhecimento. como eu deveria estar sem ameaças dessas pragas, para não imprimir uma dor logo no tempo de ensino de como se dormia com um homem. que fosse delicado com ela e não quisesse que a rapariga soubesse demasiado à primeira. tantos homens estragam as mulheres por ganância de fazer tudo na primeira noite. dão-lhes prática em demasia que lhes puxa ossos para além do possível, até lhes tiram carne a caminho de entrarem, o que as desfigura de apetites maiores para muito tempo ou mesmo para sempre. tens de lhe dar tempo, deixar que aprenda e ganhe alguma confiança, de outro modo fugirá de ti o resto da vida, assustada com o tanto que a quiseste ter. e eu fazia contas à vontade e ao desejo, e tentava começar a acalmar quando ainda só me apetecia metê-la debaixo de mim e enervar-me ainda mais. mas era natural que estivesse louco por conhecê-la e que acalmar me doesse, pois que sem sacrifício nem mereceria tão perfeita moça.
era o que revia, à noite, nas palhas da cama achegadas de lado para lado na minha impaciência. o aldegundes a dormir de paz e eu no escuro a medir o arfar da sarga e a pensar como mudaria tudo. como aquele arfar sairia de dentro de casa e naquele mesmo lugar gemeríamos casados de fresco, e como ali onde ainda estava se escutaria tudo para deixar os meus pais envergonhados de velhice e o aldegundes acordado de juventude. era só o que eu queria, que o curandeiro lhe dissesse e ela se apaixonasse por mim, lavada de amores para se prender aos meus planos e melhor obedecer ao nosso casamento.

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

O Flautista

Fortaleza. Eu ia fazer uma fala. Aí me disseram que antes haveria um pequeno concerto de uma orquestra de flautas de crianças pobres: sorriso no rosto, camiseta abóbora, flautinhas na mão. O regente era um mocinho magro. No fim, o Marcelo — esse era o seu nome — me convidou a visitar a orquestrinha na cidade de Aquiraz, bairro Tapera, a uma hora de Fortaleza.
O concerto aconteceria numa chácara, à noite. Mangueiras enormes, céu estrelado. Tocaram a sua alegria. Aí o Marcelo se juntou conosco. Pedimos que contasse sua história.
Família muito pobre. Pai bravo e batedor. Comiam os peixes que tarrafeavam num rio. E era preciso trabalhar para ajudar. Marcelo trabalhava numa padaria. Ganhava dez reais por mês. E ainda tarrafeava, depois de terminado o trabalho na padaria.
O seu grande sonho era ser músico, baterista. Pois um dia correu a notícia de que iriam formar uma banda. Quem quisesse que se candidatasse. O Marcelo se candidatou. Mas o homem que fez a apresentação do projeto nada falou sobre baterias. Em vez disso, tocou uma flautinha. O Marcelo se esqueceu da bateria e se apaixonou pela flauta.
O pai disse um “não” grosso e definitivo quando soube das intenções do filho. “Flauta é coisa de vagabundo. Filho meu não toca flauta...” Marcelo soube então que seu namoro com a flauta teria de ser como os namoros antigos, escondido.
A inscrição pra valer terminava às cinco da tarde. Marcelo, nessa hora, estava na padaria. Só pôde sair muito mais tarde, de bicicleta. No caminho, por aflição, caiu da bicicleta. Os peixes se espalharam e ele ficou todo escalavrado.
E foi assim que chegou ao lugar da inscrição com duas horas de atraso. Mas o homem da inscrição ficou com dó dele e o inscreveu. Ele tinha onze anos. Acontecia que a flauta custava dez reais, o salário de todo um mês. Precisava ajuntar dinheiro. Passou a caminhar olhando para o chão, em busca de moedas perdidas. Por um ano, juntou moedas de um centavo. Completou os dez reais. Comprou a flauta de plástico. Como não podia estudar em casa, pela braveza do pai, passou a estudar no alto de um cajueiro, de noite, longe de casa. No cajueiro guardava a flauta. Mas, num dia de chuva, ficou com medo de que a flauta se estragasse com a água. Escondeu-a em casa. No fim do dia, voltando do trabalho, o pai o esperava. Havia encontrado a flauta. O pai acendeu uma fogueira e a queimou, aplicando-lhe a seguir uma surra. Mas ele não desistiu.
Mais um ano juntando centavos até comprar nova flauta. Aí ele arranjou uma aluna. Pela aluna ganhava dez reais por mês! Uma fortuna. Outra aluna, e mais outra. Nove alunas! Noventa reais. O pai passou a gostar de flauta.
Foi então que o Marcelo teve a ideia de ensinar flauta para as crianças — sem nada ganhar. E assim surgiu a orquestra de flautas. Naquela noite, debaixo da mangueira, ele tinha dezoito anos. “Eu tenho um sonho”, ele disse. “Gostaria de ter uma flauta de verdade, transversal. Mas ela custa muito caro. Vai levar muito tempo para ajuntar o dinheiro...”
Aí uma professora que estava na roda abriu-se num sorriso e disse: “Marcelo, eu tenho uma flauta guardada numa caixa de veludo. Flauta que ninguém toca... A flauta é sua!”.
Isso aconteceu faz tempo. O Marcelo entrou para a universidade, tornou-se flautista e regente. E continua ensinando música para as crianças por puro prazer, sem ganhar dinheiro. E não sei por que, o fato é que me elegeu seu padrinho... Tanta gente bonita e esforçada por esse Brasil imenso. Dá esperança.

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Alceu Valença | La Belle De Jour (mon bel amoureux)

Natal

A grande ocorrência
Que nos conta o sino
É que, na indigência
Nasceu um menino.

Mil e novecentos
E cinquenta e três
Anos são peremptos
Dessa meninez.

Muito tempo faz...
Mas ninguém olvida
Que é um dia de paz...
Porque fez-se a vida!
12.1953

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor 

1553 – Potosí

O alcaide e a bela

Se Potosí tivesse hospital e ela passasse pela porta, os doentes ficariam curados.
Mas esta cidade ou amontoado de casas nascido há menos de seis meses não tem hospital.
Cresceu loucamente o acampamento mineiro, que já soma vinte mil almas. Brotam novos tetos, cada amanhecer, ao impulso dos aventureiros que de todas as partes acodem, dando cotoveladas e estocadas, em busca de fortuna fácil. Nenhum homem se arrisca pelas ruelas de terra sem armar-se de espada e malha de couro, e estão as mulheres condenadas a viver atrás dos pórticos. Mais perigo correm as menos feias: e entre elas, a mais bela solteira não tem mais remédio que esconder-se do mundo. Só sai ao amanhecer, muito escoltada, para ir à missa: porque ao vê-la qualquer um teria vontade de bebê-la inteirinha, de um gole ou aos pouquinhos.
O alcaide-mor da vila, dom Diego de Esquivel, pôs-lhe o olho. Dizem que por isso anda sorrindo de orelha a orelha, e todo mundo sabe que ele não tinha tornado a sorrir desde aquela distante vez que tentou fazê-lo, na infância, e seus músculos ficaram doendo.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Cuidado na escolha dos homens


VII

1. Em todos os casos, deve-se ter cuidado na escolha dos homens, e ver se eles são dignos de que lhes concedamos uma parte de nossa vida, ou se vamos perder nosso próprio tempo e o deles também: pois alguns até nos consideram em dívida para com eles por causa dos nossos serviços a eles.
2. Atenodoro disse que “não jantaria com um homem que não lhe fosse grato por isso”: ou seja, imagino, que muito menos iria jantar com aqueles que retribuem à mesa os serviços dos amigos e consideram os pratos como donativos, como se eles se excedessem para fazer honra aos outros. Tire desses homens suas testemunhas e espectadores: eles não terão prazer na gula solitária. Você deve decidir se a sua disposição é mais adequada para a ação vigorosa ou para a especulação tranquila e a contemplação, e deve adotar aquilo para o qual a disposição do seu gênio o inclina. Isócrates colocou as mãos sobre Éforo e o afastou do fórum, pensando que ele seria mais útil na compilação de crônicas; pois nenhum bem se faz forçando a alma a se engajar em um trabalho não apropriado: quando a Natureza resiste, o esforço é vão.
3. Mas nada agrada tanto à alma como uma amizade fiel e agradável: que bênção é quando há alguém cujo peito está pronto para receber com segurança todos os seus segredos, cujo conhecimento de suas ações você teme menos do que a sua própria consciência, cuja conversa afasta suas ansiedades, cujos conselhos auxiliam seus planos, cuja alegria dissipa sua tristeza, cuja própria visão o encanta! Devemos escolher para nossos amigos homens que estejam, tanto quanto possível, livres de grandes ambições: pois os vícios são contagiosos, e passam de um homem para o seu próximo, e ferem aqueles que os tocam.
4. Como, portanto, em tempos de epidemia, temos de ter cuidado para não nos sentarmos ao lado de pessoas infectadas e em quem a doença está enraivecida, porque, ao fazê-lo, correremos o perigo e pegaremos a peste do seu próprio hálito; assim, também, ao escolhermos as disposições de nossos amigos, devemos ter o cuidado de selecionar aqueles que estão o mais longe possível de serem contaminados pelo mundo; pois a maneira de criar a doença é misturar o que é sadio com o que é enfermo. Não lhe aconselho, porém, a seguir ou atrair ninguém, a não ser um homem sábio; pois onde encontrará aquele que durante tantos séculos procuramos em vão? no lugar do melhor homem possível, leve aquele que for menos mau.
5. Dificilmente você encontraria tempo que lhe permitisse fazer uma escolha mais feliz do que se pudesse procurar um homem bom entre os Platões e Xenofontes e o resto dos discípulos de Sócrates, ou se lhe tivesse sido permitido escolher um da época de Catão: uma época que carregou muitos homens dignos de nascer no tempo de Catão (assim como também carregou muitos homens piores do que jamais foram conhecidos antes, planejadores dos crimes mais tenebrosos: pois precisava de ambas as classes para fazer Catão ser compreendido: queria tanto homens bons, para que ele pudesse ganhar a aprovação deles, quanto homens maus, contra os quais ele poderia provar o seu valor): mas nos dias de hoje, quando há tanta escassez de homens bons, você deve ser menos reticente na sua escolha.
6. Acima de tudo, porém, evite homens desanimadores que resmungam de tudo o que acontece, encontrando algo de que se queixar em tudo. Embora ele possa continuar leal e amigável para contigo, a paz de espírito de alguém é destruída por um companheiro, cuja alma está azedada e que encontra cada incidente com um gemido.

Sêneca, em Sobre a Tranquilidade da Alma

Papai Noel, por Laerte

Autocrítica no entanto benévola

Tem que ser benévola, porque, se fosse aguda, isso talvez me fizesse nunca mais escrever. E eu quero escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que, se voltar a escrever, será de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa.
Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, por exemplo, não importa no caso se boas ou más: mas falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria e a alegria chega a ser dolorosa – pois esse ponto é o aguilhão da vida.
E tantas vezes não consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto dizemos: “Ah!” Às vezes esse encontro consigo mesmo se consegue através do encontro de um ser com outro ser.
Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente que quero o máximo – e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve, haver um modo em mim de chegar a isso.
Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver, evoluindo. Uma vez senti, no entanto, que seria conseguido através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza de alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como “Deus escreve direito por linhas tortas”, através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

“Eu tenho que comprar mais pão”


Num esboço anterior desta carta, que acabei deletando, eu te contei como virei escritor. Como eu, o primeiro de nossa família a ir para a faculdade, desperdicei a chance com um diploma de Letras. Como fugi da minha escola secundária de merda para passar meus dias em Nova York perdido em pilhas de livros em bibliotecas, lendo textos obscuros escritos por gente morta, que, em sua maioria, jamais sonhou em ter alguém com um rosto como o meu sobrevoando suas frases – e menos ainda que aquelas frases iriam me salvar. Mas nada disso importa agora. O que importa é que tudo isso, mesmo que eu não soubesse na época, me trouxe até aqui, até esta página, para te contar tudo que você jamais vai saber.
O que aconteceu é que um dia eu fui um menino, e um menino intacto. Eu tinha oito anos quando fiquei parado no apartamento de um quarto em Hartford olhando para o rosto adormecido da vó Lan. Apesar de ser tua mãe, ela não se parece nada com você; a pele é três tons mais escura, da cor da terra depois da chuva, estendida sobre um rosto esquelético cujos olhos brilhavam como vidro lascado. Não sei dizer o que me fez deixar a pilha de soldadinhos verdes e ir andando até onde ela estava, debaixo de uma coberta sobre o piso de madeira, braços cruzados sobre o peito. Os olhos se moviam sob as pálpebras enquanto ela dormia. A testa, açoitada por linhas profundas, assinalava seus cinquenta e seis anos. Uma mosca pousou ao lado da boca, depois deslizou para a beira dos lábios arroxeados. A bochecha esquerda fez um espasmo por segundos. A pele, com grandes marcas negras de pústulas, se agitava à luz do sol. Eu nunca tinha visto tanto movimento durante o sono antes – exceto por cães que correm nos sonhos, nenhum de nós jamais vai ver.
Mas era a imobilidade, percebo agora, que eu buscava, não do corpo dela, que continuava funcionando enquanto ela dormia, mas da mente. Somente nessas contrações silenciosas o cérebro dela, selvagem e explosivo enquanto estava acordada, resfriava e se transformava em algo semelhante à calma. Estou olhando uma desconhecida, pensei, cujos lábios se enrugavam numa expressão de contentamento estranha à Lan que eu conhecia acordada, aquela cujas frases saíam lentas e nervosas, a esquizofrenia pior ainda depois da guerra. Mas eu sempre a conheci selvagem. Desde que me lembro, ela tremeluzia diante de mim, mergulhando na sensatez e depois saindo dela. E era por isso que estudá-la agora, tranquila à luz da tarde, era como observar um tempo passado.
Um olho abriu. Envolto por uma película leitosa de sono, se arregalou para conter minha imagem. Fiquei frente a frente comigo mesmo, fixo pelos raios de luz que passavam pela janela. Então o segundo olho abriu, esse ligeiramente róseo, porém mais claro. “Com fome, Cachorrinho?”, ela perguntou, o rosto sem expressão, como se ainda dormisse.
Fiz que sim com a cabeça.
O que a gente devia comer num tempo desse?” Ela fez um gesto abrangendo a sala.
Uma pergunta retórica, decidi, e mordi meu lábio.
Mas eu estava errado. “Eu disse O que a gente pode comer?” Ela sentou, os cabelos que iam até os ombros espalhados atrás dela como se ela fosse um personagem de desenho animado que acabou de ser detonado com TNT. Ela engatinhou, se acocorou diante dos soldadinhos de brinquedo, pegou um da pilha, segurou entre os dedos, e analisou. As unhas, perfeitamente pintadas e feitas por você, com a tua precisão de costume, eram a única coisa imaculada nela. Distintas e com um brilho de rubi, se destacavam das articulações calejadas e rachadas enquanto ela segurava o soldado, um operador de rádio, e o examinava como se fosse um artefato recém-desenterrado.
Com um rádio nas costas, o soldado está com um joelho no chão, gritando eternamente no receptor. O uniforme sugere que ele combate na Segunda Guerra Mundial. “Quem você ser, messeur?”, ela pergunta ao sujeito de plástico numa mistura truncada de idiomas. Num só movimento, ela colocou o rádio dele na orelha e escutou atenta, olhando para mim. “Sabe o que estão me contando, Cachorrinho?”, ela sussurrou em vietnamita. “Eles dizem...” Ela mergulhou a cabeça para um lado, se encostou em mim, seu hálito uma mescla de xarope para tosse Ricola e o aroma de carne do sono, a cabeça do homenzinho verde engolida pela sua orelha. “Dizem que bons soldados só vencem quando são alimentados pela avó.” Ela deixou escapar uma única risadinha entrecortada, depois parou, repentinamente sem expressão, e colocou o homem do rádio na minha mão, fechando meus dedos sobre a palma. E do nada levantou e foi para a cozinha, os chinelos batendo atrás dela. Agarrei a mensagem, as antenas plásticas machucando a palma da minha mão enquanto o som do reggae, abafado pelas paredes de um vizinho, entrava na sala.

Eu tenho e tive muitos nomes. Cachorrinho foi o nome que a Lan me deu. Que tipo de mulher dá nomes de flores para si e para a filha e depois chama o neto de cachorro? Uma mulher que cuida dos seus. Como você sabe, no vilarejo em que a Lan se criou, muitas vezes o menor ou mais fraco do grupo, como era meu caso, ganhava o nome das coisas mais desprezíveis: diabo, criança fantasma, focinho de porco, macaquinho, cabeça de búfalo, bastardo – deles todos, cachorrinho era o mais suave. Porque espíritos malignos, vagando pelo local em busca de crianças saudáveis, bonitas, ouviriam o nome de algo medonho sendo chamado para o jantar e passariam por cima da casa, poupando a criança. Amar algo, portanto, é dar a ela o nome de algo tão sem valor que pode ser deixado incólume – e vivo. Um nome, tênue como o ar, pode também ser um escudo. Um escudo de Cachorrinho.

Sentei nas lajotas da cozinha e fiquei vendo a Lan colocar duas montanhas de arroz fervendo numa tigela de porcelana com detalhes de videira em índigo. Ela pegou um bule e derramou chá de jasmim sobre o arroz, só o suficiente para alguns grãos flutuarem no pálido líquido âmbar. Sentados no chão, passamos a tigela cheirosa e fervente de um para o outro. O gosto é o que você imaginaria terem flores amassadas – amargo e seco, deixando depois um sabor de brilho e doçura. “Genuína comida de camponês”, Lan sorriu. “Isso é nossa fast food, Cachorrinho. O nosso McDonald’s!” Ela inclinou o corpo e deixou sair um peido gigante. Segui o exemplo e soltei um também, e nós dois rimos de olhos fechados. Depois ela parou. “Coma tudo.” Ela apontou com o queixo para a tigela. “Cada grão que você deixar para trás é uma larva que você vai comer no inferno.” Ela tirou o elástico que estava no pulso e prendeu o cabelo num coque.
Dizem que o trauma afeta não só o cérebro, mas também o corpo, as articulações e a postura. As costas da Lan ficavam perpetuamente encurvadas – a tal ponto que eu mal conseguia ver sua cabeça quando ela ficava de pé na pia. Só se via o cabelo preso atrás, sacudindo enquanto ela esfregava.
Ela olhou para a prateleira da despensa, vazia a não ser por um pote solitário de manteiga de amendoim já pela metade. “Eu tenho que comprar mais pão".

Ocean Vuong, em Sobre a terra somos belos por um instante

domingo, 22 de dezembro de 2024

Raridade: João Gilberto | Garota de Ipanema

Le don dú poème

um poema começa
por onde ele termina:
a margem de dúvida
um súbito inciso de gerânios
comanda seu destino

e, no entanto ele começa
(por onde ele termina) e a cabeça
grisalha (branco topo ou cucúrbita
albina laborando signos) se
curva sob o dom luciferino –

domo de signos: e o poema começa
mansa loucura cancerígena
que exige estas linhas do branco
(por onde ele termina).

Haroldo de Campos, em A educação dos cinco sentidos

Falta

Os ricos, vedes bem o que eles possuem; o que não vedes é o que lhes falta.

Santo Agostinho, em Confissões