quinta-feira, 16 de maio de 2024

João Bosco | Vir-a-Ser

O ponta driblador e o filósofo


Laroiê, Agô.

Elegbara – o dono do corpo – é o senhor da irreverência, capitão das artimanhas e encantador das serpentes do tempo; o que bate suas asas e produz o desassombro do acaso. Elegbara é o meu amigo Exu, aquele que um verso de Ifá define como o menino querido de Olodumare.
Quando a razão observa a natureza, surge a ciência. Quando é a poesia que olha o que nos cerca, surge o orixá, o encantado, o caboclo de pena e o catiço da rua. Os dois olhares não se excluem, antes se complementam. Exu é, por isso, o olhar da poesia sobre o princípio ativo que gera o movimento e permite a vida. É o que rompe, com a velocidade do dínamo, o estado de letargia das coisas e pessoas e confere vivacidade ao que estava morto ou não nasceu. Elegbara se torna, desta maneira, o axé que possibilita que as coisas aconteçam; ele só não é a própria realidade porque precede a ela.
Meu compadre é o que transita serelepe entre o ayê e o orum – o visível e o invisível –, é o senhor de tudo que se transmite, relata ou malandramente se insinua. É a possibilidade de dizer e o silêncio do não dito – feito o ponta esquerda que pode driblar buscando a linha de fundo ou cortar pra dentro e bater com a perna trocada. Vais apostar em que, meu lateral?
Exu é palavra áspera, poema amoroso, grito de denúncia e canto doce que rompe de beleza as manhãs do tempo. Exu está no ato de escrever e no ato da leitura; é o signo e o significado de todas as formas de comunicação estabelecidas entre os homens.
Ele é, também, o pânico dos medíocres, a ameaça fatal aos que se acomodam em uma existência mesquinha e limitadora. Exu não gosta dos que buscam o conforto sem sobressaltos, dos que veem na segurança acumulativa e nas conquistas individuais o destino último do ser humano. Exu ameaça tudo isso, já que inaugura nas nossas vidas o acaso que rompe planos minuciosamente elaborados. É ele que canta seu fundamento na caída dos búzios e dos dados e, quando cisma, desarticula tudo para que nos confrontemos com a necessidade de fundar a existência em bases diferentes: “Recrie a vida!”; é o recado de sua flauta em nossos ouvidos.
Os que demonizam meu compadre acertam, porém, em um detalhe: o homem é perigoso. Perigoso porque escapa das limitações do raciocínio cartesiano – que tem pânico do inesperado – e não compactua com fórmulas que reduzem a vida a um jogo de cartas marcadas, com desfecho previsível.
Como poderemos, na limitação de nossa tosca e arrogante visão racionalista, entender Exu, o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje? Como lidar com aquele que sentado bate com a cabeça no teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro?
Exu é Pastinha na ginga, Garrincha no drible, Dino no sete cordas, Grande Otelo na tela, o jagunço na travessia, o sincopado do escurinho com fama de brigão, a pimenta no caruru de Dona Flor, Tia Eulália no miudinho, a rima de Aniceto na roda de partido alto, o mote de Zé Limeira, o trenzinho de seu Heitor Villa-Lobos, o manto do Bispo do Rosário, a vida severina, o infinito enquanto dure do poeta e o provisório que se perpetua na poesia.
Posso até imaginar a cena de um verdadeiro encontro de civilizações no mais improvável dos filmes: o filósofo Heráclito diz que viver é a arte de esperar o inesperado. Um moleque, preto retinto, filá na cabeça, pés ligeiros e pau duro, solta uma gargalhada alegre e responde ao grego, entre um gole e outro de marafo, enquanto descarna um bode, prepara o couro e dança no aço da navalha:
Só percebeu isso agora, meu bom?

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros

Bicudinho, de Caco Galhardo

Os Nascimentos | 1533 – Barcelona

As guerras santas

Da América chegam os heraldos da boa-nova. O imperador fecha os olhos e assiste o avanço das velas e sente o cheiro do breu e do sal. Respira o imperador como o mar, maré cheia, maré vazia; e sopra para apressar os navios inchados de tesouros.
A Providência acaba de dar-lhe de presente um novo reino, onde o ouro e a prata abundam como o ferro em Vizcaya. O assombroso tesouro está a caminho. Com ele poderá tranquilizar os banqueiros que o enforcam e poderá finalmente pagar os seus soldados, lanceiros suíços, mercenários alemães, infantes espanhóis, que não veem uma moeda nem em sonhos. O resgate de Atahualpa financiará as guerras santas contra a meia-lua do Islã, que chegou às portas de Viena, e contra os hereges que seguem Lutero na Alemanha. O imperador armará uma grande frota para varrer do Mediterrâneo o sultão Solimão e o velho pirata Barba Roxa.
O espelho devolve ao imperador a imagem do deus da guerra: a armadura adamascada, com rendas cinzeladas ao bordo da gola e da couraça, o casco de plumas, o rosto iluminado pelo sol da glória: as sobrancelhas ao ataque sobre os olhos melancólicos, o barbudo queixo lançado para a frente. O imperador sonha com Argel e escuta o chamado de Constantinopla. Tunes, caída em mãos infiéis, também espera pelo general de Jesus Cristo.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Acerca do caráter

A perfeição do caráter moral consiste em vivenciar cada dia como se fosse o último, sem agitações violentas, letargia ou hipocrisia.

Marco Aurélio, in Meditações

Da bem-aventurança involuntária


Com tais enigmas e amarguras no coração Zaratustra viajou através do mar. Mas, quando estava a quatro dias de distância das ilhas bem-aventuradas e de seus amigos, havia superado toda a sua dor —: vitorioso e firme, ele novamente dominava seu destino. Naquele momento, Zaratustra assim falou à sua exultante consciência:

Sozinho estou novamente e quero estar, sozinho com o puro céu e o livre mar; e novamente é tarde a meu redor.
Foi à tarde que encontrei meus amigos da primeira vez, e à tarde também de outra vez: — na hora em que toda a luz fica mais sossegada.
Pois o que de felicidade ainda se acha a caminho entre céu e terra, busca então abrigo numa alma luminosa: de felicidade toda a luz ficou agora mais sossegada.
Ó tarde da minha vida! Um dia, também a minha felicidade desceu ao vale para buscar abrigo: então achou essas almas abertas e hospitaleiras.
Ó tarde da minha vida! O que não dei para possuir uma coisa: essa viva plantação de meus pensamentos e essa luz matinal de minha mais alta esperança!
Companheiros buscou um dia o criador, e filhos de sua esperança: e eis que não podia encontrá-los, a menos que primeiramente os criasse.
Assim, estou em meio a minha obra, indo para meus filhos e deles voltando: por seus filhos deve Zaratustra consumar a si mesmo.
Pois no fundo se ama apenas a seu filho e sua obra; e, onde há grande amor a si mesmo, ele é sinal de gravidez: assim enxerguei.
Meus filhos ainda verdejam em sua primeira primavera, próximos um do outro e juntamente sacudidos pelos ventos, árvores de meu jardim e de meu melhor terreno.
E, em verdade, onde árvores tais se acham juntas, ali existem ilhas bem-aventuradas.
Mas um dia quero arrancá-las e pôr cada uma separada da outra: para que aprenda a solidão, a obstinação e a cautela.
Retorcida, curvada, com flexível dureza ficará ela então junto ao mar, um vivo farol da vida invencível.
Ali, onde as tempestades se precipitam no mar e a tromba das montanhas aspira a água, cada um fará suas vigílias do dia e da noite, para seu exame e conhecimento.
Conhecido e provado deverá ser, para sabermos se é de minha espécie e origem — se é senhor de uma longa vontade, silencioso mesmo quando fala, e complacente de modo que tome ao dar: —
de modo que um dia se torne meu companheiro e crie e celebre juntamente com Zaratustra —: alguém que escreva minha vontade em minhas tábuas: para a mais plena consumação de todas as coisas.
E por ele e seus iguais devo eu próprio consumar-me: por isso agora evito minha felicidade e me ofereço a toda infelicidade — para meu último exame e conhecimento.
E, em verdade, era tempo de eu ir; e a sombra do andarilho, o momento mais longo e a hora mais silenciosa — todos me diziam: “É mais que tempo!”.
O vento soprava pelo buraco da fechadura e me dizia: “Vem!”. A porta se abria de par em par e me dizia: “Vai!”.
Mas eu estava agrilhoado ao amor por meus filhos: o desejo me punha esse laço, o desejo de amor, para que eu me tornasse presa de meus filhos e me perdesse para eles.
Desejar — para mim isso já significa: haver me perdido. Eu vos tenho, meus filhos! Nesse ter, tudo deve ser certeza e nada deve ser desejo.
Mas o sol de meu amor se achava sobre mim, me incubava; em seu próprio sumo cozia Zaratustra — e sombras e dúvidas se afastaram voando acima de mim.
Eu já ansiava por inverno e gelo: “Oh, que o inverno e o gelo me fizessem novamente estalar e ranger!” — suspirei: e uma gélida bruma subia de mim.
Meu passado rompeu seus túmulos, mais de uma dor enterrada viva despertou —: apenas havia dormido, oculta em pano mortuário.
Assim tudo me gritava em sinais: “É tempo!”. — Mas eu — não escutava: até que, por fim, meu abismo se agitou e meu pensamento me mordeu.
Ah, pensamento abismal que é meu pensamento! Quando acharei a força para ouvir-te cavar e não mais tremer?
Até à garganta me vêm as batidas do coração, quando te ouço cavar! Mesmo teu silêncio me quer sufocar, ó abismal silencioso!
Jamais ousei chamar-te para cima: era bastante que comigo — te carregasse! Ainda não era forte o bastante para a derradeira exuberância e petulância de leão.
Já bastante terrível sempre me foi teu peso: mas um dia acharei ainda a força e a voz de leão que te chamem para cima!
Quando eu me houver superado nisso, então me superarei também em algo maior; e uma vitória será o selo de minha consumação! —
Entretanto vagueio por mares incertos; o acaso me lisonjeia, o de língua macia; olho para a frente e para trás — e ainda não enxergo fim.
Ainda não chegou a hora de minha derradeira luta — ou estará chegando agora? Em verdade, com insidiosa beleza me olham o mar e a vida ao redor!
Ó tarde de minha vida! Ó felicidade anterior ao anoitecer! Ó porto em alto-mar! Ó paz na incerteza! Como desconfiei de todos vós!
Em verdade, tenho desconfiança de vossa insidiosa beleza! Semelho o amante que desconfia do sorriso aveludado demais.
Tal como ele afasta de si a bem-amada, ainda carinhoso em sua dureza, o ciumento — assim afasto eu de mim essa hora bem-aventurada.
Fora contigo, hora bem-aventurada! Contigo me chegou uma bem-aventurança involuntária! Pronto para minha dor mais profunda me acho aqui: — chegaste no momento errado!
Fora contigo, hora bem-aventurada! É melhor te abrigares por lá — com meus filhos! Rápido! E ainda os abençoa, antes do anoitecer, com a minha felicidade!
Aproxima-se o anoitecer: o sol afunda. Ali vai — minha felicidade! —

Assim falou Zaratustra. E esperou por sua infelicidade a noite inteira; mas esperou em vão. A noite permaneceu clara e silenciosa, e a felicidade mesma lhe chegou cada vez mais perto. Pela manhã, porém, Zaratustra riu com seu coração e disse, zombeteiro: “A felicidade corre atrás de mim. Isso vem de eu não correr atrás das mulheres. Mas a felicidade é uma mulher”.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Jacob Collier | Hyperballad (Björk cover)

Menino do Mato | V

O lugar onde a gente morava quase só tinha bicho
solidão e árvores.
Meu avô namorava a solidão.
Ele era um florilégio de abandono.
De tudo que me restou sobre aquele avô foi esta
imagem: ele deitado na rede com a sua namorada, mas
se a gente o retirasse da rede por alguma necessidade,
a solidão ficava destampada.
Oh, a solidão destampada!
Essa imagem da solidão que ficara dentro de mim por
anos.
Ah, o pai! O pai vaquejava e vaquejava.
Ele tinha um olhar soberbo de ave.
E nos ensinava a liberdade.
A gente então saía vagabundeando pelos matos sem aba.
Chegou que alcançamos a beira de um rio.
A manhã estava pousada na beira do rio desaberta moda
um pássaro.
Nessa hora já o morro encostava no sol.
Logo adiante vimos um quati a lamber um osso de ema.
A tarde crescia por dentro do mato.
O lugar nos perdera de rumo.
A gente se sentia como um pedaço de formiga perdida
na estrada.
Bernardo completava o abandono.
Logo encontramos uma criame de caracóis nas areias
do rio.
Quase todos os caracóis eram viúvos de suas lesmas.
Contam que os urubus, finórios, desciam naquele lugar
para degustar as lesmas ainda vivas.
Se diz ainda que este recanto teria sido um pedaço do
Mar de Xaraiés.
Na beira da noite a gente estava sem rumo.
Bernardo apareceu e disse que vento é cavalo.
Então montamos na garupa do vento e logo chegamos
em casa.
A mãe aflitíssima estava.
Ela cuidava de todos: lavava, passava e cozinhava
para todos.
Porém à noite a mãe ainda encontrava uma horinha
para o seu violino.
Ela tocava para nós Vivaldi.
E a gente ficava pendurado em lágrimas.
Um dia que outro eu contei para a Mãe que tinha visto
um passarinho a mastigar um pedaço de vento. A Mãe
disse outra vez: Já vem você com sua visões! Isso é
travessura da sua imaginação.
É a voz de Deus que habita nas crianças, nos passarinhos
e nos tontos.
A infância da palavra.

Manoel de Barros, in Menino do Mato 

Hagar, o Horrível

 

Internação, Corrente ou Aposentadoria

No momento em que lhes escrevo, me encontro num estado emocional e psicológico deplorável, quiçá calamitoso. Sei que vocês (nem o governo, aleluia!) não têm nada com isso e minha revelação equivale mais ou menos à que, por exemplo, faria um ator de quinta categoria ou em surto psicótico, explicando à platéia, antes do espetáculo, que sua performance, naquele dia, será inferior à do elenco de um circo falido homiziado num arraial de Cabrobó. As vaias que recebesse seriam mais que merecidas e acredito que também farei jus a vaias (linchamento eu acho um pouco de exagero, embora, na conjuntura em que vivemos, até compreensível, todos andam muito tensos) e penso seriamente em não botar os pés fora de casa neste domingo, nem que seja no interesse de preservar minha mãe de referências desairosas, pela desdita de ter parido um filho como eu.
Estou escrevendo num laptop mesozoico, movido a corda, com uma fonte de energia adicional acionada a querosene e já sob a proteção do Estatuto do Idoso. Tive um pouco de dificuldade em arrumar querosene, mas descolei dois litros numa loja que vendia geladeiras fabricadas no início do século passado. E, ecologicamente consciente quanto ao uso de combustíveis produtores de poluição, também mandei montar um filtro para conter as emanações nocivas exaladas do meu instrumento de trabalho. Havia até escolhido um assunto para ocupar este espaço que hoje envergonhadamente avacalho, mas não consigo abordá-lo, porque, refletindo melhor (sic), devo estar também em surto e não tenho condição de falar sobre coisa nenhuma que não minha patética situação.
Os poucos heróis que persistem em ler-me há anos devem lembrar-se de minhas queixas quanto a computadores. De fato, todo mundo sabe que esses aparelhos frequentemente se entregam a comportamentos exasperantes e que é prudente não ter martelos, marretas ou machados à mão, quando se usa um deles. Mas, na minha profissão, como agora em quase todas, com a possível exceção da de gari, não dá para escapar. E, na verdade, sempre exagerei um pouco, para ironizar os — perdão — computadólatras. Fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador para escrever e posso mesmo dizer que, não por inteligência ou aptidão, mas porque minha burrice alcança o grau dois numa escala que vai crescentemente a dez, a experiência acabou me conferindo uma certa habilidade em seu manejo.
Há algum tempo, meu computador principal funcionava bem, embora obsoleto, o que não quer dizer muito em informática, porque qualquer um deles já é obsoleto ao ser retirado da caixa da embalagem. Quebrava meu galho satisfatoriamente, tanto assim que passei longo tempo sem xingá-lo, nem privadamente nem em público, e somente uma vez quis jogá-lo pela janela, não o tendo feito por receio de machucar ou matar algum passante. Mas, recentemente, ele passou a insistir em apresentar umas falhazinhas levemente aporrinhantes e aí dei o mau passo: resolvi encomendar um novo e atravessei o Rubicão, só que, ao contrário de Júlio César (o imperador, não o jogador, apesar de mais famoso), comecei a tomar uma sova que estou tomando até agora e tudo indica que devo continuar tomando por ainda não sei quanto tempo, quem sabe o resto da vida.
Ele veio com tudo em cima, últimas novidades, dos programas aos componentes. Celebrei sua chegada e, em processo que redundou em humilhação, cometi a imprudência de gabar-me exuberantemente aos amigos. “Agora estou com um Rolls-Royce” era o mínimo que eu dizia, sem saber que o que tinha caído nas minhas mãos equivalia a um Rolex de cinqüenta reais, em camelô que não dá desconto. Desde o dia em que ele foi entregue, minha ocupação mudou. Deixei de ser escritor, o que, se pode representar um alívio para a literatura nacional, acarreta a desvantagem de eu não poder mais ganhar a vida e cogitar em pleitear uma vaga na Casa dos Artistas, com base na minha experiência pregressa de cantor de banheiro. Entre muitos outros cretinismos que me afligem, está o cronográfico, de maneira que não sei há quanto tempo dedico uma média de pelo menos dez horas diárias a tentar fazer o diabólico aparelho funcionar, mas deve ser coisa de pelo menos um mês. E com a agravante de que não fomos feitos um para o outro: ele é sádico e eu não sou masoquista. Tentei discutir o relacionamento, mas, como sabemos, isso não dá certo, pois algumas incompatibilidades não podem mesmo ser superadas. Volta e meia me vem a tentação de presenteá-lo a algum desafeto, mas me contenho a tempo, porque ninguém merece vingança tão cruel.
Não farei, Deus me guarde, seus olhos de penico e não vou pormenorizar o que tenho enfrentado, mas o sofrimento já me deve ter rendido alguns séculos, talvez milênios, de redução de estada no Purgatório. Consolo parco agora, mas deverei mudar de opinião assim que transpuser a catraca a que se refere meu amigo Toinho Sabacu, de quem lhes falei na semana passada. Todo dia ouço de alguém que isso vai passar e tudo será resolvido. Sim, com certeza, eis que tudo passa neste mundo, mas acho que eu passo antes. O último diagnóstico técnico que obtive foi que se trata de interferências sobrenaturais. Altamente científico, mas, como não disponho de ninguém do ramo, aceito indicações de rezadeiras, exorcistas, pais-de-santo e similares. Aceito também (vejam como é a vida, nunca pensei que usaria estas palavras) correntes de energia positiva das almas caridosas que se apiedarem. O que não impede a internação numa clínica psiquiátrica que já ocorre a meu alarmado médico, e/ou a aposentadoria definitiva. Ou mesmo adeus, mundo cruel.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

Cartas



[Para William Wantling]
1965

[...] eu fico bebendo cerveja e scotch, botando pra dentro, como que pra dentro de um grande vazio... admito que há em mim certa estupidez rochosa que não pode ser alcançada. eu fico bebendo, bebendo, sou rabugento como um buldogue velho. sempre deste jeito: pessoas despencando, caindo das banquetas, me testando, e eu as bebo de um só gole, bebo, bebo, mas realmente sem voz, nada, eu sento eu sento como um duende idiota num pinheiro esperando por um raio. quando eu tinha 18 anos eu costumava ganhar $15 ou 20 por semana em concursos de bebida e isso me mantinha vivo. até que sacaram a minha jogada. havia um merda, no entanto, chamado Fedido, que sempre era uma dureza pra mim. eu intimidava o cara às vezes bebendo um copo extra entre um e outro. eu costumava andar com uns ladrões e nós estávamos sempre bebendo num quarto vago, num quarto ainda não alugado, com luz fraca... nós nunca tínhamos lugar para ficar, mas aqueles garotos eram na maioria durões, portavam armas, mas eu não portava, eu ainda era careta, ainda sou. uma noite achei que o Fedido ia me ganhar e levantei o rosto e ele tinha sumido e eu fui vomitar e nem sequer vomitei, lá estava ele na banheira, fora fora, e eu saí e peguei o dinheiro.

Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas

O amahnu

Após dormir tanto durante o dia, a noite foi tão terrível e agitada quanto a anterior. Olhou o conteúdo da caixa de madeira e pensou na varanda daquela manhã:
O leite respingando corrimão.
A jugular pulsando no meu pescoço.
Ele viu Aquiles e Tommy e Rory.
E Carey.
É óbvio que pensou em Carey, e no sábado, e se perguntou se ela iria às Cercanias mesmo que ele não estivesse lá. Daria tudo para saber, mas nunca perguntaria a ela, então parou de repente ao se dar conta de uma coisa, uma última e intensa descoberta.
Levantou-se e se debruçou na escrivaninha.
Você se foi, pensou ele.
Você foi embora.

***

Pouco depois do nascer do sol, o Assassino também já estava acordado, e eles foram caminhar pelo rio; saindo da casa, seguiram pelo leito como se fosse uma estrada.
Primeiro havia uma boa inclinação, e o terreno começou a se elevar.
No entanto, horas depois, eles escalavam gigantescos rochedos áridos, segurando-se em troncos de carvalho e eucalipto. Fosse íngreme ou gradual, uma coisa nunca mudou ao longo da subida: o poder estava sempre evidente. As margens tinham marcas. Havia um histórico claro de escombros.
Olha só pra isso — disse o Assassino.
Estavam em um trecho de vegetação densa; o sol, bem acima das sombras, despejava raios em várias direções, os feixes de luz como degraus. Ele estava com um dos pés apoiado numa raiz desgarrada. Uma capa de musgo e folhagem.
E mais essa agora, pensou Clay.
Estava diante de uma pedra imensa, que aparentava ter sido arrastada.
A caminhada tomou mais da metade do dia, e eles pararam para almoçar em uma imensa saliência de granito. Ficaram observando os maciços montanhosos ao redor.
O Assassino abriu a mochila.
Água. Pão e laranjas. Queijo e chocolate amargo. Tudo foi passado de mão em mão, mas palavras mesmo eles quase não trocaram. No entanto, Clay tinha certeza de que estavam pensando na mesma coisa — no rio e em suas demonstrações de força.
Então é isso que nós temos que enfrentar.

***

Ao longo da tarde, eles desceram a trilha de volta. Aqui e ali, a mão de um surgia para ajudar o outro no caminho, e, quando chegaram ao escuro do leito do rio, pouco havia sido dito.
Mas aquele era o momento, com certeza.
Se havia uma hora para começar, só poderia ser aquela.
Mas não.
Não era mesmo:
Ainda havia perguntas demais, lembranças demais — no entanto, um deles teria que dar o braço a torcer; e não poderia ter sido diferente, foi o Assassino. Se alguém deveria estabelecer uma relação de parceria ali, esse alguém era ele. Depois de percorrerem muitos quilômetros juntos, ele olhou para o filho e perguntou:
Você quer construir uma ponte?
Clay assentiu, mas desviou o olhar.
Obrigado.
Por quê?
Por ter vindo.
Não foi por sua causa que eu vim.
Laços de família, à moda de Clay.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

terça-feira, 14 de maio de 2024

O Cio Da Terra / Boca cheia de Frutas

Capítulo 137 | A Barretina

E daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao Quincas Borba, acrescentando que me sentia acabrunhado, e mil outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevado tino de que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da melancolia.
Meu caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar! Cinquenta anos é a idade da ciência e do governo. Ânimo, Brás Cubas; não me sejas palerma.
Que tens tu com essa sucessão de ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.
Vê-se nas menores coisas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos governo. Crê-lo-eis pósteros? Eu não havia intervindo até então nos grandes debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões de votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.
Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da Justiça, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barretina na guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei Filopêmen, que ordenou a substituição dos broquéis de suas tropas, que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que eram demasiado leves; fato que a história não achou que desmentisse a gravidade de suas páginas. O tamanho das nossas barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas paradas, ao sol, o excesso do calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo certo que um dos preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um cidadão, por simples consideração de uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e consequentemente o futuro da família. A Câmara e o Governo deviam lembrar-se que a Guarda Nacional era o anteparo da liberdade e da independência, e que o cidadão, chamado a um serviço gratuito, frequente e penoso, tinha direito a que se lhe diminuísse o ônus, decretando um uniforme leve e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e conclui com esta ideia; o chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é árvore de cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças e dos jardins.
Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloquente, à parte literária e filosófica, a opinião foi só uma; disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas ideias. Mas a parte política foi considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso um desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me davam já em oposição, entrando nesse número os oposicionistas da câmara, que chegaram a insinuar a convivência de uma moção de desconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que eu sustentava o Gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e que, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte, contentando-me com três quartos de polegada ou menos; enfim; dado mesmo que a minha ideia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado no parlamento.
O Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem político, disse-me ele ao jantar; não sei se andaste bem ou mal; sei que fizeste um excelente discurso. E então notou as partes mais salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse comedimento de louvor que tão bem fica a um grande filósofo; depois, tomou o assunto à sua conta, e impugnou a barretina com tal força, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me efetivamente do seu perigo.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Trecho

Era profundamente derrotado pelo mundo em que vivia. E separara-se das pessoas pela sua derrota e por sentir que os outros também eram derrotados. Ele não queria fazer parte de um mundo onde, por exemplo, o rico devorava o pobre. Como parecia-lhe um movimento apenas romântico, o seu, se se agregasse aos que lutavam contra o esmagamento da vida como esta era, então fechou-se numa individualização que, se não tomasse cuidado, podia se transformar em solidão histérica ou meramente contemplativa. Enquanto não viesse algo melhor, procurava relacionar-se com os outros derrotados por intermédio de uma espécie de amor torto, que atingia tanto os outros como, de algum modo, a si próprio.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Piratas do Tietê, de Laerte

O risco dos descolados

Costumo definir cultura como todo o processo humano de criação e recriação de formas de viver. Cultura é, nessa perspectiva, o conjunto de padrões de comportamento, visões de mundo, elaboração de símbolos, crenças, anseios, hábitos e tradições que distinguem determinados grupos sociais.
O problema, nos dias atuais, é que em vez de se entender a economia como parte constitutiva da cultura – esse poderoso campo que engloba nossos atos e nos define como homens humanos – vigora cada vez mais uma perspectiva que transforma a cultura em parte constitutiva da economia – esse campo que, quando determinante, nos define como meros consumidores, alheios ao processo de elaboração de formas de vida e desumanizados, por conseguinte.
Penso nisso, por exemplo, quando observo com extremo cuidado o que vem acontecendo com o Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara, o popular Cadeg de Benfica. O mercado passa, segundo reportagens recentemente veiculadas em jornais e revistas, por um processo de revitalização, ganhando ares de polo gastronômico de ponta, com restaurantes sofisticados e lojas de queijos e vinhos pintando no pedaço.
Certos grupos da Zona Sul, que costumam achar que qualquer programa que ultrapasse o Túnel Rebouças em direção ao subúrbio é uma espécie de safári exótico, começam a se aventurar rumo a Benfica. Nesse ritmo, o Cadeg ainda vira cenário de novela do Manoel Carlos.
Acho muito interessante que toda a população do Rio de Janeiro conheça e visite o Cadeg – há de fato ótimos restaurantes, compra-se de tudo e aos sábados ocorre um dos melhores furdunços da cidade, a festa da colônia portuguesa que, entre sardinhas, vinho verde e fado, lota o restaurante Cantinho das Concertinas para matar a saudade da terrinha. Vejo com bons olhos, também, que o lugar esteja cuidado, acessível e fortalecido.
Até aí tá tudo bem. O risco do balacobaco, porém, é que a tal da revitalização se transforme em descaracterização e elitização do espaço.
Para início de conversa, a própria expressão revitalizar me parece complicada – vitalidade é o que nunca faltou ao Cadeg. O carioca sempre foi ao Cadeg, almoçou por ali, comprou flores para enfeitar os candomblés e oferecer aos orixás, tomou seus gorós, recriou a vida e, dessa maneira, produziu cultura. O perigo é que os descolados de plantão transformem o mercado de Benfica na nova moda da estação e o preço a se pagar por essa onda seja caro demais.
Que me desculpem aqueles que enxergam nesse processo apenas o lado financeiro que a tal da revitalização proporciona. A onda das pequenas empresas e grandes negócios não é aquela que esse escriba costuma surfar.
Outro dia mesmo cruzei no Cadeg, enquanto me preparava para comer sardinha com os conterrâneos de Pedro Álvares Cabral, com um conhecido que pintou na área pela primeira vez.
Estranhei a presença do ilustre, que me disse estar ali para participar de uma degustação de vinhos. O sujeito tratava os vinhos com uma intimidade impressionante e parecia um psicólogo descrevendo o perfil emocional da bebida: “é um vinho que a princípio se mostra tímido, mas aos poucos revela um caráter agressivo e grande personalidade...”Dei um jeito de pular fora.
O que me preocupa mesmo é imaginar como o frequentador tradicional do Cadeg vai lidar com isso. Penso naquele camarada que vai ao mercado para cumprir um verdadeiro ritual.
Me interessa saber o que vai acontecer com o carioca morador da Zona Norte, que, como eu, faz no Cadeg as compras da feijoada de domingo e do bacalhau de Natal, compra flores para enfeitar o terreiro em dia de festa no candomblé ou na umbanda, e arremata com a cerveja gelada e o tradicional contrafilé com fritas do Poleiro do Galeto. Mas isso é cultura, recriação da vida, vitalidade, coisa que não costuma encher os cofres com mais opulência e nem dá notícia em revistas e jornais. Não duvido que os vampiros de sempre suguem até a última gota a novidade da moda e, em breve, metam os dentes em outros pescoços. É assim que costuma ocorrer.
Esperemos apenas que, depois do vendaval e do fim do safári, a cerveja continue gelada. É com ela que os homens comuns costumam brindar, fora das páginas de revistas, longe das câmeras de TV e livres do encosto das celebridades, a maneira simples e carioca de inventar a vida.

Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiro

Irmã Água


Laudato sii mio signore per suora acqua, la quale è molto utile et humilde et pretiosa, et casta.
São Francisco: Il Cantico del Sole

O tanque está vazando pelo lado esquerdo. O reboco de cimento descascou-se e caiu em farelos, e a argamassa entre os tijolos cedeu lentamente ao teimoso empuxo da água. Quando o nível da pequenina enchente coincide com as frinchas da parede, os filetes escorrem, brilhantes, para o chão, alastrando uma nódoa escura e úmida que cresce duas vezes por dia. Primeiro a mancha era menor e a areia sorvia o líquido não permitindo ampliação. Agora, com a sequência do aguamento regular, há um trecho vagamente arredondado, vezes um polígono estrelado, ressaltando no solo cinzento do quintal, com uma orla mais densa e o centro escavando-se devagar e mesmo conservando um brilho de água parada.
Água escorrendo criou um novo centro de interesse e de vida. Não é água do tanque com as folhas, o lodo verde-negro e na superfície o vagaroso perpassar de Dica, com as seis patas altas como andaimes, passeando sem molhar-se. Água correndo no chão, dando outra cor, modificando a paisagem rasteira, alargando-se constantemente com a contribuição serena das seis a quinze horas. Os fios, com a força de impulsão, escorregam descendo as ladeiras minúsculas, espalhando as tonalidades diversas, vencendo e dissolvendo os torrões de barro, rasgando canais de brinquedo, fazendo curvas como um rio, detendo-se ante pedrinhas inarredáveis mas ladeando, cercando-as de dois braços trêmulos e continuando a jornada enquanto recebem o reforço vindo das brechas imperceptíveis. Na outra hora já o terreno consente mais fácil passagem, disciplinado pela água anterior e os canais se afundam, em milímetros orgulhosos, sacudindo a cabeça de água para frente, conquistando polegadas no rumo da telha enterrada onde residem as baratas da rainha Blata. Já existe mesmo uma formação de lama que é a franja daquela força em proporção mínima. A absorção da terra limita a expansão do território úmido. Todo o processo erosivo deu um aspecto imprevisto de cordilheiras, planícies, banhados, caminhos íngremes mesmo um complicado sistema intercomunicativo de fiozinhos de água, que parece ter sido copiado dos postais do Tirol ou da Suíça. Mas todo este mundo medirá metro e meio e as altitudes assombrosas irão aos cinco centímetros. Mas é um mundo já respeitado pelas formigas pretas e as aves preferem esta região ao tanque oceânico para a alegria de molhar as patas.
Para fechar o círculo irregular as cores se tornam mais claras relativamente aos graus de secura, indo numa gradação de tonalidades até confundir-se como o solo comum do quintal.
Das seis às sete e das quinze às desesseis lá vem água visitando seus novos domínios, ensopando-os, afundando as estradas, dizendo-se senhora daquele trecho que era jurisdição mansa e pacífica da rainha Blata, usado para banhos de sol ou vadiagem ginástica.
Deve ter sido um cataclismo para os moradores do subsolo. Transformação absurda, verdadeira revolução catastrófica, aquela inundação que ninguém havia previsto, obrigando mudança imediata. Às pressas, numa improvisação de todos os serviços de transporte e busca para afixação noutro pouso, com os incômodos de arranjo e colocação totais. Uma multidão de besourinhos, de cinco milímetros para baixo, emigrou desordenadamente, aos bandos dispersos, numa marcha divergente e tonta, salvando-se do dilúvio sem profecia. Mesmo a boca de um formigueiro de Ata desapareceu na avalancha e a continuidade da regação aterrou-o em definitivo. Creio que a rainha Ata deve ter castigado seu serviço de meteorologia que, desta vez, “dera água”, não anunciando em tempo útil o fenômeno alagador.
Quando água deixa de correr, minutos depois, a terra se ergue num e noutro ponto, elevada e fofa, demonstrando mais uma evasão pelo caminho que o relevo de areia frouxa denuncia. Ninguém podia calcular o número de formigueiros existentes nesta área inundada. Nem quantos besouros estavam domiciliados regularmente nos limites que a água dominou. Não havia sinal pelo exterior que as moradas estivessem instaladas ali e tantas vidas ligassem a rede dos hábitos àquele local de poucos palmos de extensão. Só depois da água banhar o terreno e torná-lo úmido e diverso do estado anterior é que o recenseamento evidenciou o número incontável dos habitantes tranquilos do recanto.
A água possibilitou uma situação favorável ao aparecimento de plantinhas humildes, vergônteas que surgiam tímidas como pedindo desculpas pelo seu atrevimento de nascer. Espécies de capim, com folhas duras e finas como pontas de lança. Depois um arremedo de bredo de palmas pequeninas e ásperas, bronzeadas. Espantosa força germinativa. A semente esperara anos e anos a sua ocasião favorável para romper a camada e pedir um pouco de sol.
Em 1946 os americanos fizeram saltar as usinas Krupp em Essen. Os edifícios imensos, salas infinitas, oficinas tentaculares onde escorria o aço fundido como prata líquida, os altos-fornos imponentes, os martelo-pilões poderosos, um conjunto de milhares de toneladas de cimento armado, ferro e aço mudou-se numa série de montões de ruínas precoces, símbolos duma atividade condenada pelo vencedor. Durante cem anos a maquinaria possante fizera estremecer o solo em quilômetros derredor, no estridor da tempestade em que se fundiam e calibravam os canhões temerosos. Derrubada a cidade Krupp, na primeira primavera subsequente os destroços cobriram-se de malvas azuis, brancas, lilases. No fundo da terra sacudida pelas máquinas de guerra e aquecida pela irradiação dos fornos sempre acesos estavam as malvas intactas em sua força, aguardando o minuto da ressurreição. Quando as usinas Krupp caíram, as malvas ressurgiram como eram antes, com as mesmas cores, formatos e dimensões, inalteradas.
Fiquei pensando que debaixo dos edifícios que governam o mundo há sempre uma semente adormecida, sonhando com sua libertação para reaparecer e espalhar as pétalas esquecidas dos olhos humanos. Os palácios jamais admitirão a possibilidade de existir uma planta, quarenta ou vinte metros depois do seu peso dominador, espreitando que a tonelada opressora desapareça para renascer e florir.
Naturalmente todos sabem que os insetos não bebem água. Não é bem assim. Não bebem água no tanque, porque alguns, pela sua pequenez, não conseguem romper a resistência da superfície que lhes deve parecer uma lâmina de marfim. Na terra molhada, no barro porejante e úmido, é possível sorver com a tromba solícita as gotículas. Somente agora vejo os bandos de borboletas, miúdas, amarelas com laivos azuis, paradas no pequenino charco, asas imóveis, desalterando-se.
A terra molhada tem revelado um mundo estranho. Besouros desenhados com um rigor geométrico e outros com intenções abstracionistas e perturbadoras, pequeninos, luzentes, apressados, de todas as cores, todos lindos, adejando as duas antenas inquietas sobre a cabecinha redonda e negra de obstinados. Uns de pernas invisíveis, altos outros, aranhas esquisitas, com andar aos saltos sobre presas que ninguém vê, insetos com as patas posteriores em eterno balanceio, como estabelecendo equilíbrio, coleópteros esguios, magros, rápidos, passando com um ar de quem deixou uma conferência internacional e vai escrever o relatório para o governo que o enviou, pulgões branquicentos, lesmas de dorso escuro como lama e o anverso parecendo âmbar, paquinhas, grilos-d’água, abrindo túneis com as patas fortes como braços de Sansão e, às vezes, num listrão alvadio, preguicento, escorregando de um orifício para reenterrar-se noutro, grandes minhocas de vida misteriosa e subterrânea. Há quase sempre um grupo de minhoquinhas ou vermes curvos como parênteses, agitando-se como se fizessem ginástica para rins, juntos, atrapalhados com os corpos como traje inusitado e novo, atraindo o voo imediato e fulgurante do bem-te-vi ou da lavadeira. Devem ser pitéus excepcionais porque, via de regra, as aves levam no bico, para os ninhos, comida inesperada para os filhos de bico aberto.
É muita imaginação pensar num rio subitamente atravessando um deserto.
Provocaria uma revolução em círculos concêntricos, cada vez maiores na proporção do afastamento do centro. Flora, fauna modificar-se-iam determinando a vinda e nascimento de novas espécies vegetais e animais. E a zona de conforto faria a movimentação de vidas e interesses sem conta, encadeadas no brusco aparecimento de alimento certo em ponto fixo. Se este filete de água de um tanque, vazando, trouxe tantos motivos para o ciclo destas existências, que será no macrocosmo o que neste microcosmo vive?
Curiosa foi a reação do mandarim Fu. Sapo terrestre, anfíbio mais honorário que efetivo, não resistiu à tentação da terra molhada que ele goza nas raras fugidas, capengando, para a lagoa distante. Ali perto a umidade seduziu-o e, ao anoitecer, Fu deixa a residência e vai, não aos saltos mas no seu andar arrastado, de trejeito custoso, atravessar o trecho que água corrente refrescou.
Põe as patas espalmadas e largas na areia molhada num sabor de divertimento difícil. Como a fugida infantil para um banho no rio ou na maré. A leve camada de lama gruda-se-lhe entre os dedos, valendo uma carícia. Atravessa os curtos dois palmos deliciosos. Para na outra margem. Volta-se com lentidão majestosa. Fica imóvel, olhos radiosos, batendo o papo, engolindo vento, vivendo sua vida. É um volúpia consciente a que dedica horas. Vezes abocanha no ar algum mosquito atrevido ou asas que trouxeram o dono para perto, interrompendo-lhe a cisma deleitosa. Não deixa facilmente o far-niente de meditação e alegria silenciosa. É talvez a concentração mais digna entre as homenagens à água eterna onde fora gerado e amou, roçando, comprimindo o peito e o ventre no frescor do solo ressumante.
Não discuto que a posição é cômoda para a caça e esta procura justamente o ponto novo. Os insetos miúdos que residem nos arredores são salteados ao sair da porta. Deduzo que existe uma atração em calcar terra úmida mesmo para os pesados e lentos coleópteros que, sem necessidade aparente, vão atravessando a faixa, deixando as linhas ponteadas de seus rastros. As baratas redondas, ásperas e escuronas, sem a quitina protetora e outras, grandes, levemente amareladas, de asas friccionantes e rumorosas, cabeça negra, rondam a mancha do futuro lameiro liliputiano. Devem encontrar a massa de mosquitos quase impalpáveis e esvoaçantes as lagartixas noturnas. Mas as baratas e baratonas que vão fazer no pequeníssimo banhado de bonecas? Só o mandarim Fu, em pose de cálculo especulativo, informará.
Curioso é constatar que unicamente as formigas evitam transpor o caminho molhado. Continuam teimando em reabrir a boca do formigueiro que, duas vezes por dia, era obstruído pela areia molhada. Depois desistiram e o caminho volteou pelo tanque, do lado direito onde o mandarim Fu possui sua mansão. Nunca as vi varando a estrada borrifada, isolada ou nas filas intermináveis em horas de serviço. Nas curtas horas em que água escorre há como uma fronteira intransponível, respeitada, indevassável.
As plantinhas nascidas não ficaram despovoadas. As de sua espécie possuem familiares que as procuram para sugar a seiva ou roer as folhinhas tenras. A seiva é diminuta e tênue mas as folhinhas tentaram umas lagartas esverdeadas, de cabeça roxa e pataria colorida de negro. Não demoraram muito tempo na vilegiatura porque o bem-te-vi e a lavadeira acabaram com o mostruário vivo. Estas lagartas costumam acampar nas folhas mais baixas dos crótons mas sendo verdes confundem-se perfeitamente aos olhos técnicos dos pássaros. Nas plantinhas o verde era muito claro e vibrante, destacando o verde-escuro das lagartas, dando-lhe fundo que chamou as aves como uma isca irresistível.
Em certas horas há um inteiro corpo de baile e mosquitinhos, executando uma dança ascensional e descendente no mesmo eixo, quase batendo no chão, dão a impressão sugestiva de cada unidade ocupar uma dada posição no ar sem que deixe a simetria rígida da formatura vibrante e movimentada, arabesco de tapete persa. Este ballet justifica a assistência carinhosa de Vênia e toda uma corte de lagartixas, o mandarim Fu e intrusões súbitas do bem-te-vi, da lavadeira, dos canários e dos xexéus. Deve ser um bailado nupcial, um alarde festivo ao sexo, com a participação de damas e galantes que se candidatam não apenas à junção feliz mas às gargantas do público aplaudidor.
Debaixo da sombra fresca dos tinhorões, das taiobas com as folhas lembrando orelhas de elefante, há uma população que reside pendurada no caule, entre as folhas largas e no tronco. Estes pacatos moradores estavam mais ou menos livres das aranhas rendeiras. Com aquele espalhafatoso rodeio de mosquitos bailarinos, as aranhas aproveitaram imediatamente o mercado e uma série de teias espalhou-se nos arbustos e crótons próximos. Os mosquitos não são permanentes e a percentagem de vítimas é grande mas não diária. Quem ficou fornecendo contribuição forçosa às teias cavilosamente estendidas em situações estratégicas foi justamente o povo inocente e confiado dos tinhorões e das taiobas que, sem cuidar da maldade do mundo, cai nas malhas finas e resistentes das rendeiras esfaimadas. O mandarim Fu que jamais arriscara verificação por aquele quadrante começou uma viagem de inspeção com desastrosos efeitos locais. Até mesmo, sinistro, armado em guerra, audaz e bruto como um barão feudal, Titius fez-se notar, espalhando terror.
Água, depois de meses de insistente deslizar, atingiu o palácio funcional da rainha Blata, escavando um abismo de centímetros ao pé da telha e enchendo de água, subsequentemente, a buraqueira. Esta água parada forneceu moradia aos mosquitos indesejáveis do gênero tenoresco, cantores e divulgadores de moléstias que não interessavam ao canto de muro.
As frinchas do tanque alargaram-se e a irrigação ampliou sua área. O manto escuro e peguento alcançou o muro. Nasceram os “pega-pinto” (nictagináceas) fazendo, com o tempo, pequenos bosquezinhos frondosos. Hospedou um piolho que fez a delícia das aves e estas dedicaram horas na busca minuciosa e farta. Por causa desta busca outros vegetais apareceram, trazidos nos excrementos, utilizando a terra que se tornara fecunda. Pimenteira, goiabeira e mamão deram réplica ao renque que vivia no outro extremo. A pimenteira cobriu-se de frutinhas vermelhas como coral e, pela primeira vez, o canto de muro ouviu o sabiá cantar, beliscando as pimentas.
Também a constante aguação enrijou os tinhorões e a taioba orelha-de-elefante, tornando-os fortes e frondosos. A fauna cresceu sob sua proteção. Os filhos e vassalos de Quiró fizeram visitas noturnas a uma zona outrora deserta mas agora povoada e sonora. O velho tronco, estirado e morto, lavado pela água insistente apodreceu, arrastando os insetos diferentes, roedores de madeira, coleópteros imponentes que tentaram até Sofia que os enxergou numa noite de luar, embaçado e sentimental.
O fio de água esbarrou no muro e as raízes confusas das trepadeiras agradeceram o benefício. Um ramo baixou, nascido paralelo ao chão, coleando pelas pequenas elevações, e ligou-se ao tinhorão, abrindo a graça das flores em cacho, vermelhas e brancas. O beija-flor inaugurou-as com seu longo bico matutino. As folhas caindo cobriam o filete de água e eram cobertas por ele no dia imediato. Sensivelmente a terra adubava-se, sacudindo outras plantas, outras frutas reduzidas e que tinham expressão gustativa para os pássaros que as espalhavam. E porque ficavam comendo ao redor delas, outras espécies surgiam, sacudidas nas fezes, empurradas para o solo pela água singela e pelas folhas humildes que se tornavam negras e pesadas de umidade.
Quando os mosquitos repetiam seu bailado de morte feliz, já o número de assistentes era vultoso e eficiente. Fu já podia ocultar-se na sombra de folhas espalmadas e aproximar-se sem ser visto de besouros ornamentais. Licosa e Titius deram mesmo a honra de estender por ali seus territórios de caça noturna. Do tanque ao muro era a pista de corrida da lavadeira. O depósito de água ficou reservado para beber e banhar-se. Não tinha a dimensão em superfície daquela praia sem água mas convidativa e fácil.
Dica, aranha-d’água orgulhosa, foi a única a não deixar o velho domínio. Nunca pôs uma de suas seis patas compridas fora do tanque para visitar os melhoramentos do canto de muro.
A infiltração deve ter procedido a modificações curiosas no subsolo. Deverá existir outros moradores atraídos pela nova temperatura e a região será o caminho real de espécies que amem a umidade relativa. Mas tudo dentro de uma escala de valores de milímetros e centímetros, um pequenino mundo humilde que passaria despercebido para os olhos comuns, seduzidos por outras tentações sensíveis.
O rumor dos zumbidos, chilreios, sussurros abafados, estalidos de gravetos tombados, folhas secas, levava a doce sonoridade silenciosa do fio de água escorrendo na areia cinzenta. A solidão se enchera de asas, teias, ciladas, tocaias, armadilhas, ânsias, júbilos, decepções.
O suave milagre fixador da vida e da batalha sem pausa fizera a Irmã Água humilde e útil, preciosa e casta, molhando a terra sem nome de um canto de muro tranquilo.

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro