quinta-feira, 10 de abril de 2025

1561 – Nova Valencia del Rei

Da carta de Lope de Aguirre ao rei Felipe II

...Já de fato percebemos neste reino quanto de cruel és e quebrantador de fé e palavra, e assim temos nesta terra tuas promessas por de menos crédito que os livros de Martim Lutero, pois teu Vice-rei Marquês de Cañete enforcou Martin de Robles homem destacado a teu serviço e o bravoso Tomas Vázquez conquistador do Piru, e o triste do Alonso Deaz que trabalhou mais no descobrimento deste reino que os exploradores de Moisés no deserto...
Olha, olha Rei espanhol, que não sejas cruel a teus vassalos nem ingrato, pois estando tu e teu pai nos reinos de Espanha sem nenhuma tristeza, te deram teus vassalos a custa de seu sangue e sua fazenda tantos reinos e senhorias como nestas partes tens, e olha rei e senhor, que não podes levar com título de rei justo nenhum interesse destas partes onde não aventurastes nada, sem que primeiro os que nisso trabalharam e suaram sejam gratificados...
Ai, ai que pena tão grande que César e Imperador teu pai conquistasse com as forças de Espanha a soberba Germania e gastasse tanta moeda levada destas Índias descobertas por nós, que não te apiades de nossa velhice e cansaço sequer para matar-nos a fome um dia!…

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Jovem Dionísio / É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo

1988

(na passagem da constelação alice)

a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você.

Paulo Leminski, em Toda Poesia

Sally Brown

El Sol de Membrillo

Vimos ontem El Sol de Membrillo de Victor Erice. Lento, como é lenta toda a criação (Deus foi um caso excepcional), o filme é, todo ele, uma reflexão sobre a arte de compor, quer se trate de espaços, de volumes, de tempos, de cores, ou de palavras. A câmara rodeia o modelo (as folhas, os frutos), o pintor (mais o rosto do que as mãos), a ocupação metódica da superfície da tela e do papel. Não conhecia nada de Antonio Lopez, apenas o sabia ar-librista e quase naturalista, o que, para mim, não era precisamente uma recomendação... Mas, vendo-o no seu trabalho, fui-me tomando de um enorme respeito, o que, provavelmente, deverá ser o sentimento mais importante em toda a contemplação. Decidimos, Pilar e eu, que vamos plantar em Lanzarote dois marmeleiros. A um daremos o nome de Antonio Lopez, ao outro o de Victor Erice.

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

De velhas e novas tábuas

7.

Ser verdadeiro — poucos são capazes disso! E quem pode, não o quer ainda! Menos capazes de todos, porém, são os bons.
Oh, esses bons! Homens bons jamais dizem a verdade; para o espírito, ser bom de tal modo é uma doença.
Eles cedem, esses bons, eles concedem, seu coração repete as palavras, seu fundo obedece: mas quem obedece não escuta a si mesmo!
Tudo o que os bons chamam mau deve se juntar, para que nasça uma verdade: ó meus irmãos, sois também vós maus o bastante para essa verdade?
O temerário ousar, a demorada desconfiança, o cruel Não, o fastio, o cortar na carne viva — como é raro isso juntar-se! Mas dessa semente é — gerada a verdade!
Ao lado da má consciência cresceu até agora toda ciência! Destroçai, ó homens do conhecimento, destroçai as velhas tábuas!

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

O Curioso Caso de Benjamin Button


VII

Num ponto, pelo menos, os amigos de Hildegarde Moncrief estavam enganados: o negócio grossista de ferragens. Nos quinze anos decorridos entre o casamento de Benjamin Button, em 1880, e a aposentadoria de seu pai, em 1895, a fortuna da família duplicou — e isso deveu-se, em grande parte, ao sócio mais jovem da firma.
Escusado seria dizer que Baltimore acabou por acolher o casal no seu seio. Até o velho general Moncrief se reconciliou com o genro quando Benjamin lhe deu o dinheiro necessário para publicar a sua História da Guerra Civil em vinte volumes, que fora recusada por nove proeminentes editores.
Esses quinze anos trouxeram muitas mudanças ao próprio Benjamin. Tinha a impressão de que o sangue lhe corria nas veias com novo vigor. Começou a ser um prazer levantar-se de manhã, caminhar com passo vigoroso pela rua movimentada e cheia de sol, trabalhar incansavelmente com os seus embarques de martelos e os seus carregamentos de pregos. Foi em 1890 que efetuou a sua famosa jogada comercial: apresentou a sugestão de que todos os pregos usados para pregar os caixotes em que os pregos são embarcados constituem propriedade do expedidor, proposta que se tornou um estatuto, foi aprovada pelo Juiz Supremo Fossile e poupou a Roger Button & Company, Grossista de Ferragens, mais de seiscentos pregos por ano.
Além disso, Benjamin descobriu que estava se sentindo cada vez mais atraído pelo lado alegre da vida. Foi característico do seu crescente entusiasmo pelo prazer o fato de ter sido o primeiro homem de Baltimore a possuir e conduzir um automóvel. Ao encontrá-lo na rua, os seus contemporâneos fitavam invejosamente a sua imagem de saúde e vitalidade.
Parece tornar-se mais novo de dia para dia”, comentavam. E se, a princípio, o velho Roger Button, agora com sessenta e cinco anos, pecara por não dar ao filho as devidas boas-vindas, reparava agora, finalmente, essa falta tratando-o com o que equivalia a adulação.
Chegamos a um assunto desagradável que convém ultrapassar o mais depressa possível. Havia apenas uma coisa que preocupava Benjamin Button: a esposa deixara de atraí-lo.
Nessa altura, Hildegarde era uma mulher de trinta e cinco anos, com um filho, Roscoe, de catorze. Nos primeiros tempos de casamento Benjamin adorara-a. Mas, com o passar dos anos, o seu cabelo cor de mel tornara-se um castanho insípido, o azul-esmalte dos seus olhos adquirira o aspecto de louça de barro barata e, além disso, e sobretudo, ela tornara-se acomodada demais na sua maneira de ser, plácida demais, satisfeita demais, débil demais nos seus arroubos e sóbria demais no seu gosto. Quando noiva fora ela quem arrastara Benjamin para bailes e jantares, mas agora a situação invertera-se.
Saía socialmente com ele, mas sem entusiasmo, devorada já por aquela eterna inércia que, um dia, começa a viver com cada um de nós e permanece conosco até o fim.
O descontentamento de Benjamin foi se tornando cada vez mais forte. No início da Guerra Hispano-Americana, em 1898, a sua casa tivera para ele tão pouco encanto que resolvera alistar-se no exército. Graças à influência do seu negócio, obteve uma patente de capitão e revelou-se tão adaptável ao trabalho que o passaram a major e, por fim, a tenente-coronel, bem a tempo de participar na célebre arrancada pela San Juan Hill acima. Ficou ligeiramente ferido e recebeu uma medalha.
Benjamin afeiçoara-se tanto à atividade e à excitação da vida no exército que lamentou abandoná-la, mas o seu negócio requeria atenção e, por isso, ele renunciou à sua comissão de serviço e voltou para casa. Foi recebido na estação por uma charanga e escoltado até sua casa.

F. Scott Fitzgerald, em O Curioso Caso de Benjamin Button

terça-feira, 8 de abril de 2025

Oficina

Tentei montar com aquele meu amigo que tem um olhar
descomparado, uma Oficina de Desregular a Natureza.
Mas faltou dinheiro na hora para a gente alugar um
espaço. Ele propôs que montássemos por primeiro a
Oficina em alguma gruta. Por toda parte existia gruta,
ele disse. E por de logo achamos uma na beira da
estrada. Ponho por caso que até foi sorte nossa. Pois
que debaixo da gruta passava um rio. O que de melhor
houvesse para uma Oficina de Desregular Natureza!
Por de logo fizemos o primeiro trabalho. Era o
Besouro de olhar ajoelhado. Botaríamos esse Besouro
no canto mais nobre da gruta. Mas a gruta não tinha
canto mais nobre. Logo apareceu um lírio pensativo
de sol. De seguida o mesmo lírio pensativo de chão.
Pensamos que sendo o lírio um bem da natureza
prezado por Cristo resolvemos dar o nome ao trabalho
de Lírio pensativo de Deus. Ficou sendo. Logo fizemos
a Borboleta beata. E depois fizemos Uma idéia
de roupa rasgada de bunda. E A fivela de prender silêncios.
Depois elaboramos A canção para a lata defunta.
E ainda a seguir: O parafuso de veludo, O prego que
farfalha, O alicate cremoso. E por último aproveitamos
para imitar Picasso com A moça com o olho no centro
da testa. Picasso desregulava a natureza, tentamos
imitá-lo. Modéstia à parte.

Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A Segunda Infância 

Pedro Mariano / Não Diga Nada

Anse

Diabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um temporal atrás deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada. Faço o que posso, espremo a cabeça, mas o diabo desses rapazes...
Estirada aqui, bem à minha porta, um lugar que favorece a má sorte. Eu disse a Addie que não era bom morar à beira de uma estrada, quando a estrada chegou até aqui, e ela respondeu, no seu rampante de mulher: "Então levante-se e mude-se." 
Mas eu lhe disse que não adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso é que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa se movimente, faz a coisa comprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroça, mas quando Ele quer que uma coisa fique quieta, Ele faz a coisa para cima, como uma árvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que as pessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? É possível colocar uma estrada perto de uma casa?, eu pergunto. Não, nunca, eu respondo, porque os homens não descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroça, deixando as pessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como uma árvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse que os homens andassem sempre de um lado para outro, não lhes teria encompridado o ventre, como fez às cobras? Claro que sim, se Ele tivesse querido.
Aí está a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto à minha porta, sem falar, acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria, quando de não teria tido tal ideia se a estrada não viesse ter aqui; e não teria caído da igreja para ficar seis meses de mãos abanando e eu e Addie morrendo de trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e ele teria serrado, se estivesse em condições.
E Darl? Todos querendo afastá-lo de mim, malditos sejam. Não é que eu receie o trabalho; sempre ganhei o sustento para mim e os de casa e nunca nos faltou um teto: o problema é que queriam tirar-me Darl só porque ele sabe onde tem o nariz, só porque ele vive a pensar na plantação. Eu lhes disse: ele ia bem, a principio, com os olhos postos na terra, porque a terra se estendia para cima e para baixo; foi quando essa estrada apareceu e dividiu e encompridou a terra, e como os olhos de Darl continuassem postos na terra, então eles começaram a ameaçar-me de tirá-lo de mim, com a ajuda da lei.
Fizeram-me pagar por isso. Ela era uma mulher sã e forte como não havia outra, mas apareceu a estrada. Ela se deitou para descansar, em sua própria cama, sem pedir nada a ninguém. “Está doente, Addie?”, eu disse.
Não estou doente”, ela disse.
Fique deitada e descanse bem”, eu disse. “Sei que não está doente. Está apenas cansada. Fique deitada e descanse.”
Não estou doente”, ela disse. “Vou me levantar.”
Esteja quieta e descanse”, eu disse. “Você está só cansada. Pode se levantar amanhã.”
E ela ficou deitada, sã e forte como não havia outra mulher, se não fosse a estrada.
Eu nunca mandei chamá-lo”, eu disse. “Tomo você como testemunha de que nunca mandei chamá-lo.”
Sei que não mandou”, disse Peabody. “Não estou duvidando. Onde está ela?”
Está deitada”, eu disse. “Só um pouquinho cansada, mas ela...” 
Saia daqui, Anse”, ele disse. “Vá sentar-se um pouco no alpendre.”
E agora tenho de pagar, eu que não tenho um dente na boca, eu que esperava economizar para poder consertar a boca e comer conforme Deus manda que um homem coma, e ela sã e forte como não havia outra mulher por aqui até aquele dia. Obrigado a pagar para ter necessidade agora desses três dólares. Obrigado a pagar para que os rapazes tenham de sair para ganhá-los. E agora eu posso ver, como se adivinhasse, que a chuva vai desabar entre nós, que vai chegar por essa estrada como um homem amaldiçoado, como se não existisse outra casa em que chover por todo o mundo dos vivos.
Tenho ouvido gente maldizer a sorte, e com razão, pois era gente pecadora. Mas, comigo, não é praga, porque nada fiz de que me possa arrepender. Não sou religioso, reconheço. Mas minha consciência está em paz: sei que está. Fiz coisas nem melhores nem piores do que os outros fazem e disfarçam, e sei que Deus Nosso Senhor cuidará de mim como de um pardal que não consegue voar. Mas parece duro que um homem se veja em tantas dificuldades só por causa de uma estrada.
Vardaman chega, por trás da casa, com os joelhos sujos de sangue como um leitão, e aquele peixe cortado em postas, provavelmente com um machado, ou quem sabe jogado fora, para ele me mentir então, dizendo que os cães o comeram. Bem, acho que não posso esperar dele mais do que recebo de seus irmãos maiores. Ele se aproxima, observando a casa, tranquilo, e se senta nos degraus. “Ufa”, diz, “estou morto de cansaço.” “Vá lavar as mãos”, digo. Não há mulher melhor que Addie para mantê-los na linha, homens e meninos: tenho de confessar.
Estava cheio de sangue e de tripas, como um leitão”, ele diz. A verdade, porém, é que não tenho disposição para coisa alguma, ainda mais com este tempo que me entristece. “Pai”, ele diz, “Mãe piorou?” “Vá lavar as mãos”, digo. A verdade é que não tenho mesmo disposição para nada.

William Faulkner, em Enquanto agonizo

Você merece!

Vida Besta, de Galvão Bertazzi

Onde nomeio um Prefeito

Joel Silveira costuma dizer que está esperando a minha morte para então escrever “a verdadeira história da guerra dos brasileiros na Itália”. Alega que se o fizer agora, eu sou capaz de desmentir tudo. É inútil eu jurar que não o desmentirei nunca; acho de estrito dever, como companheiro de guerra, confirmar todas as patacoadas e pataratas que ele urdir. Confio em que ele faça o mesmo em relação a mim.
Dito o que, vou contar como há quase 40 anos me aconteceu nomear um prefeito — ou, mais precisamente, um síndaco, que é a palavra italiana.
Éramos três no jipe: Raul Brandão, correspondente do Correio da Manhã, o motorista Machado (Atilano Vasconcelos Machado, de Bagé, será que você ainda está vivo?) e eu, correspondente do Diário Carioca. Tínhamos vindo do outro lado dos Apeninos, descendo para o vale do Pó ao longo do Panaro, até Vignola. Utilizando as viaturas da artilharia, a tropa brasileira avançava para Noroeste, para impedir a passagem das tropas alemãs; era abril de 1945, a guerra estava no fim. A certa altura, procurando encontrar o nosso esquadrão de Reconhecimento, seguimos um caminho diferente e fomos dar em um lugarejo chamado Montecavolo.
A aldeia parece vazia. Encontramos com dificuldade um velho, a quem pedimos informações, pois não estamos seguros se os alemães já abandonaram ou não Quattro Castella, que fica pouco além. Quando nota que somos aliados, o velho se põe a gritar, e minutos depois estamos cercados de gente — principalmente mulheres velhas e moças. São faces rosadas que avançam para nós, trêmulas de emoção, rindo entre lágrimas, vozes estranguladas de prazer. Uma jovem de trancas alouradas se aproxima de mim, abrindo caminho no pequeno grupo e, com um ar de louca, pergunta se eu sou mesmo aliado, vero, vero? Seus olhos estão cheios de luz e empoçados d'água. Ela ergue os dois braços, põe devagar as mãos nos meus ombros, e suas mãos tremem. Quer falar e soluça. Dois homens me puxam pelos braços, uma mulher me beija, todos se disputam a honra de nos levar para casa. Afinal, um casal de velhos ganha a partida e nos leva para uma sala, e toda a casa se enche de gente. A todo momento chegam retardatários, que ficam nas pontas dos pés para nos ver, para ver esses estranhos seres, tão longamente, tão ansiosamente esperados: os soldados aliados.
Há tanto tempo que vos esperávamos! Há tanto tempo! Liberatori! Brasiliani!
Trazem queijo, abrem garrafas de vinho espumante, obrigam-nos a beber. Dezenas, centenas de olhos nos fixam, como se estivessem vendo três deuses — e não dois feios correspondentes de guerra e um pracinha chofer. Somos os primeiros aliados a chegar ali. Os alemães partiram horas antes.
Liberatori!...
Explicamos que não somos libertadores de ninguém, e de modo algum. Estamos fardados de oficiais, mas somos repórteres, homens desarmados. Não somos soldados... Mas é inútil. Para aquela gente somos heróis perfeitos e acabados. E as mulheres começam a dar vivas ao Brasil, a esse país desconhecido cujo nome vem escrito em nossas mangas.
Uma italiana diz que tem irmão em São Paulo, agricultor, chama-se Guido Monteverdi, será que eu conheço? Uma pobre mulher, que tem os olhos cheios d'água, diz: — Tenho um irmão na Austrália!
E se abraça comigo. Alguém diz que a Austrália nada tem a ver com o Brasil, que o Brasil fica na América. A mulher me pergunta se o Brasil é muito longe da Austrália. Eu estou comovido: — Vicino, vicino...
Sim, tudo é perto no mundo, todos os povos são vizinhos e amigos.
Tocamos para a frente. Estamos perto de Sant'Ilario d'Enza. Chegamos às primeiras casas. Mando parar o carro para fazer perguntas. Um pequeno grupo de pessoas nos olha com hostilidade e o homem, que é o único a dizer alguma coisa, responde evasivamente a tudo o que pergunto. Afinal, reparam que somos aliados — e começa, ali também, a gritaria. As mulheres saem correndo para dentro das casas e voltam com vinho e ovos. Já atrás ganhamos ovos. Agora enchem o nosso carro de ovos. É o que aquela pobre gente tem para nos dar — quer dar alguma coisa. Já temos seguramente umas três dúzias de ovos dentro do jipe, e aparece uma velhinha que me traz ainda uma cesta cheia. Recuso: aqueles ovos irão quebrar-se dentro do jipe. Mas a mulher chora e banha os ovos com suas lágrimas, implorando que os aceitemos.
Outra ainda traz uma garrafa de conhaque — c mais ovos. Mostramos que é absurdo carregar tantos ovos, mas nenhuma delas abre mão do direito de dar o seu presente. Há duas jovens que choram perdidamente de alegria.
Como vocês demoraram! Ah, mas vieram! Nós sabíamos, vocês viriam! Nós esperamos sempre. Muito obrigada! Muito obrigada!
Partimos carregados de centenas de ovos, mas ao chegar à praça principal vemos uma verdadeira multidão. Somos os primeiros aliados a chegar aqui, e nosso jipe é rodeado. Palmas rebentam de todos os lados, homens e mulheres nos abraçam, nos beijam, há velhos chorando.
Pergunto onde se pega a Via Emília. A Via Emília é aquela rua mesmo. Um homem aparece e explica com dificuldade, em meio ao alarido, que ele é o chefe do Comitê de Libertação Nacional.
Quer saber se pode assumir o governo da cidade. Explico que é melhor esperar os americanos — há tanques americanos em Montecchio. Tanques americanos em Montecchio! A notícia desperta novos vivas aos Estados Unidos, depois à Inglaterra, ao Brasil, ao mundo inteiro. O homem insiste: enquanto não chega o comandante americano poderá ele provisoriamente governar a cidade? Há muito o que fazer imediatamente. Brandão abstém-se.
Não represento coisa alguma a não ser o Diário Carioca, mas acho melhor concordar: — Bem, o senhor assume provisoriamente. Quando chegarem outras forças o senhor procure o comandante.
Machado buzina para abrir caminho na multidão. Ninguém se move. Sinto que todos esperam um gesto. Faço subir no jipe o homem, ergo-lhe o braço como se ele fosse um pugilista vitorioso e eu o juiz da partida e declaro: — Lei é il síndaco de Sant'Ilario d'Enza!
Vivas delirantes. O homem não fora apenas nomeado, mas também eleito por aclamação.
Maio, 1984

Rubem Braga, em Recado de primavera

segunda-feira, 7 de abril de 2025

O Impressionismo de Cézanne

Árvores (1906), de Paul Cézanne

Monsenhores

Para Augusto Massi

na verdade, eu já estava pondo o jantar na mesa quando bateram na porta, eu mesma fui atender, um rapazote que eu mal conhecia me disse que o Luca mandava me chamar, pr’eu ir “sem demora, dona Ermínia, o seu Luca diz que é grave”, nem tive tempo de perguntar, naquele susto nem sei que que poderia ter perguntado pro rapazote, que escapuliu dali sem eu dar por isso, fiquei um instantezinho parada, pensando, pensando coisas atropeladas, e já ia desfazendo o cinto do avental enquanto ouvia a estridência das minhas crianças na mesa, batendo na sua impaciência com os garfos nos pratos, só sei que, sem mais pensar, joguei o avental numa das cadeiras lá da sala, deixei todo mundo na copa me esperando, saí quase correndo com toda essa minha corpulência, e logo estava no meio da rua, achando que a qualquer momento eu ia ploft, sem ninguém pra me acudir, mas mesmo naquele meu desabalo eu conseguia ouvir, vindo das casas, a barulheira das famílias na mesa, e podia até dar conta dos risos, a vida na hora do jantar em cada lar como lá em casa, e estava achando até engraçado como eu, tão preocupada, uns pensamentos esquisitos na cabeça, ainda podia pensar com um fio de atenção no que se passava e, quando cheguei na casa lá do Luca, me assustei com o rangido do portão de ferro, parecia até que alguma coisa de sinistro já tinha acontecido e, enquanto afundava pelo corredor lateral, notei que janelas e porta estavam fechadas, como numa casa abandonada, fiquei um pouco depois parada, uma tremedeira nas pernas, sem força nem pra subir aquele tico de degrau à minha frente e, quando a porta se abriu sem que eu tivesse batido, foi um choque, não porque o Luca aparecesse assim de repente no vão, mas porque era a primeira vez que o via daquele jeito, a cara sem a vitalidade de costume, parecia até que ele estava se mostrando pelo avesso, e o que me intrigou foi dar pela sala um tanto em penumbra, e quando o Luca disse “entre, Ermi” com a voz mais sumida que eu jamais pudesse conceber aquele homem vigoroso e enérgico fosse capaz, só sei que meu coração saltou pela boca, tinha os olhos formigando e, tomada pela imagem de um menino triste e solitário, tudo que queria perguntar era “e o Dinho, meu afilhado?”, mas nem consegui e, quando o Luca se afastou um passo pra me dar passagem, foi então que entrei na casa, cheia de uns pressentimentos, e ao levar a mão no botão da luz, senti a mão do Luca se fechar firme no meu pulso e, quando disse “não acenda”, fiquei mais perturbada ainda por não ter compreendido por quê, e só perguntei “e o Dinho?” “e a Lucila?”, e ele, sem responder, retirou a mão que me apertava, continuamos calados, ainda que já pudesse ver melhor as coisas, corri os olhos na barba crescida, no desleixo da roupa, e não estava segura de ele ter murmurado qualquer coisa ao encará-lo, mas me pareceu que tivesse dito “foi o pó da viagem”, que achei estranho se fosse mesmo isso, ele que não era de viajar a parte alguma, e como nem era mais o caso de fazer perguntas, só sei que, numa passada de olhos, enxerguei melhor as coisas ali na sala, o vaso de flores em cima da cristaleira, e foi aí que atinei pros monsenhores que, há menos de vinte dias, a Lucila tinha trazido lá de casa, e essa foi a última vez que a gente tinha se visto, até estava fritando nem me lembro o que pro jantar, quando senti uma sombra na cozinha, era a Lucila encostada na parede, quieta, quieta, tive até a impressão que fazia tempo que ela estava ali, amarrotei as mãos no avental e disse “Lucila!”, mas ela nem me olhava, o rosto de fazer pena, e sem mais deixou a cozinha, foi o tempo de apagar o fogo pra ir atrás dela que já estava atravessando a sala, saindo num andar indiferente a tudo, e eu, sem descer a escadinha do terraço pro jardim, fiquei observando a Lucila, alheada de mim, colhendo sem pressa, haste por haste, os monsenhores, voltei a chamá-la, mas ela nem sequer ergueu os olhos, até que, daquele jeito desligada, saiu pra rua com a braçada de flores, e eu, só pensando naquela esquisitice, continuei no terraço vendo com amargura ela se afastar, e deviam ser os mesmos monsenhores que estavam ali no vaso em cima da cristaleira, chamuscados pela chama de um pavio ao lado, desses que são mergulhados num copinho com óleo, tanto que as flores se encontravam murchas, talvez podres, exalando mau cheiro, e nada fazia supor comida na casa, menos ainda sinal de mesa posta e, notando tudo isso, parecia que eu estava começando a pôr um pouco de ordem nas coisas, e isso me deu alguma segurança, que é só um jeito de dizer, o que acontecia de verdade é que estava me apertando tudo aqui dentro, ainda mais que achei de pensar nessa minha falta imperdoável, eu que tinha me proposto desde aquele dia dos monsenhores de vir à casa da Lucila, mas também é tudo tão corrido, é uma loucura, nem naquele dia, nem no seguinte, nem em outro, incrível como a gente nunca se pega com tempo, minhas crianças me deixam maluca, por cima tinha ainda a cocozeira do Zitinho, o meu mais novo, o dia inteiro com diarreia, imagine se o Miro não me faz largar a escolinha rural logo depois do nascimento do Tito, que é o meu segundo, imagine só… imagine o que não seria agora, se possível alguma ordem, o dia inteiro as estripulias das crianças, uma penca de demônios, a paciência do Miro é que me consola, vive dizendo com ar sério “Mi, existe uma peneira que a gente nem pode imaginar o tamanho, e quem trabalha com ela está muitas vezes jogando a gente pro alto, mas tem horas em que tudo entra na sua normalidade”, e eu até já disse que ele nem precisa mais falar isso, que já não duvido nem um pingo que essa peneira existe, mas toda noite que ele esquece um pouco os amigos e resolve ficar em casa, depois da bagunça das crianças no jantar, depois que deixei a cozinha arrumadinha, assim limpinha e quietinha no escuro, e depois também de ter levado meus capetas pra cama, esses diabinhos que são toda a minha vida, e depois que tudo já está dormindo na casa, tudo certinho no seu lugar, aí então o Miro e eu vamos pro terraço, a gente senta ali de luz apagada, uns barulhinhos de insetos entre as folhagens, tudo tão romântico, é aí que o Miro diz o que diz sempre nessas noites que fica em casa “você vê, Mi, a peneira agora está descansando na mureta do terreiro”, e é quase tudo que ele me diz, depois de já ter falado dos assuntos lá do sítio, e eu ter falado da casa e das crianças, e é aí que o Miro diz o que espero, só que não adianta eu falar, já falei mil vezes pra não me dizer isso com aquele seu jeitão de caipira, que a gente pode muito bem se recolher pro quarto sem aquela malícia toda, mas ele só sabe rir naquele seu cacarejo de galo, mas que é verdade é, que a peneira sem a malícia do Miro descansa em certas horas, descansa mesmo, e que antes disso não adianta a gente se espernear, como diz o Miro, não adianta mesmo, por isso que quando pensava na Lucila e na trabalheira toda me impedindo de ir à casa dela, eu só ficava pensando do jeito que o Miro pensa, que a gente só se mexe de faz de conta, porque não é a gente na verdade que se mexe, que tudo acaba entrando nos eixos, e que se não estava dando pr’eu ir à casa da Lucila é que não estava dando mesmo, mas que tudo ia acabar desaguando onde devia, se bem que essas coisas atrapalham a cabeça da gente, porque, como estava pensando outro dia, ainda cruzo os braços e quero ver quem vai limpar as belezuras do Zitinho, é muito complicada essa história toda, por isso é que acho que o Miro tem razão quando diz que a gente não deve pensar muito, que é besteira eu ficar quebrando a cabeça, que nem é da minha conta ficar bulindo nessas coisas, que meu problema são só a casa e as crianças, nada mais que isso, a casa e as crianças, mas, por incrível que pareça, naquele espaçozinho de tempo lá na casa do Luca eu estava às voltas com esses fiapos, me embaraçando neles, e ninguém estranhe não que isso tenha acontecido, ninguém pode imaginar q111ue que pode passar pela cabeça da gente em situação como aquela e até em situação mais esquisita, é bem verdade que tudo se passa em atropelo e misturado, mas, se a gente não toma cuidado, até uma anedota pula fora da memória em velório, só sei que quando pensei em perguntar pro Luca nem sei que que eu poderia ter perguntado, ele já tinha se afastado um pouco, estava parado na entrada do quarto que sai da sala, me aguardando de ombros e braços caídos, não é possível que seja o Luca, não é possível que seja ele mesmo, pensei, e foi aí que saí dos meus novelos, dei uns passos na direção dele sem dizer nada e, assim que me aproximei, o Luca não fez mais que abrir a porta e me dar passagem, logo se recolhendo, se trancando mesmo, e isso me fez desistir de perguntar qualquer coisa, e depois perguntar o que naquele momento, se nem tinha condições de abrir a boca, além de ser em situação assim, como diz o Miro, é melhor andar do que falar, daí que entrei no quarto, onde tinha um par de sapatos no assoalho, arrumados, sapatos grandes, pros pés do Luca, e me ocorreu que aquele quarto, que abria a janela pro quintal, onde só tinha um guarda-roupa alto e uma cama de solteiro, o quarto que eu sabia ser do Dinho, meu afilhado, fiquei perplexa só de imaginar que era aquele então onde o Luca dormia, na certa todas as noites separado da Lucila, quando poderia imaginar, esse homem que despertava fantasias em tantas mulheres… é bem verdade que há tempos corriam comentários maliciosos, que nem quero falar deles, e essa lembrança mexeu comigo, senti um tremendo desconforto pensando nesse caminho, mas logo fui acordada quando, pela segunda vez, senti a mão do Luca me apertando o ombro, “ela deve estar no quarto deles” ele disse, parecendo fazer muito esforço pra dizer tão pouco, um pouco que foi a gota pra inundar meu raciocínio, eu já não sabia pensar mais nada, achei melhor acompanhá-lo, atravessamos a sala em silêncio, só as coisas na cristaleira é que vibraram um pouco, e entramos pelo corredor onde no fundo a casa se comunica com o escritório, mas no meio do corredor ele parou, e assim que abriu a porta à direita, eu logo entrei nesse outro quarto, e ali no chão um outro par de sapatos, menores que os do Luca, mas não tão menores pr’um menino de treze anos, eram do meu afilhado eu não tive dúvida, mas não parei por aí, vasculhei com os olhos até onde aquela penumbra permitia, a cama de casal desarrumada, o lençol amarfanhado deixando um tanto a descoberto o pijama do Dinho, não, não é possível, eu só pensava e, profundamente transtornada pelas coisas escabrosas que me passavam pela cabeça, foi com angústia sufocante que vislumbrei a Lucila num dos cantos do quarto, de cócoras, o olhar perdido, me afastei então apavorada, encontrando o Luca parado ainda no corredor ao lado da porta, daquele mesmo jeito de enforcado com os pés no chão, fiquei olhando pra ele, olhando bem de frente, e sabendo que ele, mesmo de cabeça baixa, não podia ignorar o modo como o olhava, tanto que não demorou e disse “quase trezentos quilômetros de ida e outro tanto de volta num só dia, cheguei e encontrei a casa e a cama deles assim”, e a voz sumida não era a do Luca, continuei a encará-lo e foi quase um murmúrio o que ouvi, mas distingui muito bem cada palavra, “coisas que não ouso falar”, e quando emendou “deixei nosso Dinho num colégio interno”, senti que ele não tinha mais nada pra dizer, deixei o Luca no corredor, acendi a luz do quarto e voei pro canto onde a Lucila estava e, chegando bem perto, não sabia o que fazer, acabei me dobrando de frente com as mãos apoiadas nos joelhos, um esforço pra me manter arcada, e fiquei olhando demoradamente pra ela na esperança de encontrar um ponto de luz naquele seu olhar embaçado que não me enxergava, sofrendo ao vê-la encurralada no canto, a saia do vestido tinha descido pro colo, deixando as pernas, magríssimas, descobertas e, mesmo com o rosto bem perto do rosto dela, não ouvia sua respiração, tive o pressentimento de que a Lucila tinha entrado irremediavelmente num túnel de onde não sairia nunca mais, se entregando a um fim sem volta, meus olhos ficaram molhados, passei a chorar quando dei pelo ruído intermitente dos pingos que caíam no assoalho, não queria acreditar, e foi então que sua imagem inteligente, petulante, desafiadora, me explodiu na memória, dizendo no nosso tempo de curso normal, naquele seu jeito exuberante, cheia de rebeldia, “nós não passamos de umas fêmeas menstruadas”, e eu ali, arcada, fiquei balbuciando em solidariedade feito uma tonta “fêmeas menstruadas”, “fêmeas menstruadas”, e repetia aquelas palavras de outro tempo, mesmo sem saber que solidariedade era essa…

Raduan Nassar, em Obra Completa

Fábio Brazza / Cê Já se Perguntou?

Finitude


Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como “freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.
Te abanca, índio velho, que ta incluído no preço.
Ai – diz o paciente.
Toma um mate?
Nã-não... - geme o paciente.
Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
Agora, qual é o causo?
É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
Tô te ouvindo – diz.
É uma coisa existencial, entende?
Continua, no más.
Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico...
Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente á condição humana. E isso me angustia.
Pos vamos dar um jeito nisso agorita – diz o analista de Bagé, com uma baforada.
O senhor vai curar a minha angústia?
Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
Mudar o mundo?
Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
Mas... Isso é impossível!
Ainda bem que tu reconhece, animal!
Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta...
Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
Me alimento.
Tem casa com galpão?
Bem... Apartamento.
Não é veado? Não.
Tá com os carnê em dia?
Estou.
Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
O Freud não me diria isso.
O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
Não.
Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta:
É pior que joelhaço?

Luís Fernando Veríssimo, em O Analista de Bagé

Royal flush

Reverências à Dama de Copas,
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

No prosseguir


À tarde do dia, ali o grau de tudo se exagerava. A choça. O pátio, varrido. O dono, cicatriz na testa, sentado num toro, espiando seus onceiros: cachorro de latido fino, cachorra com eventração. Era um velho de rosto já imposto; já branqueava a barba.
Era caçador de onças, para o Coronel Donato, de Tremedal. Tinha para isso grandes partes. Matava-as, com espingardinha, o tiro na boca, para não estragar o couro.
Os cães avisavam.
Outro homem bulira-se de entre árvores, oscilado saía da mata. Vai que uma bala podia varar-lhe goela e nuca, sem partir dente, derribando-o dessa banda. Nem, não imaginar des­razão. Mesmo havia de querer muitas coisas, o pobre. Rapaz, guapo, a onça quase o acabara, comera-lhe carnes. A onça, paga­ra. Juntos, nenhuma vencia-os, companheiros.
Coxeava, o tanto, pela clareira, no devagar de ligeireza, macio. Também tendo cicatriz, feiosa, olho esvaziado. Não olhava para a casa. Moço quieto, áspero, que devia de ser leal, que lhe era se­me­lhável. Precisava mais de viver; para a responsabilidade.
Saudaram-se, baixo. O velho não se levantara. — “Queria saber de mim?” — um arrepio vital, a seca pergunta. O outro curvou-se, não ousava indagar por saúde. No que pensava, calava. E rodeavam-se com os olhos, deviam ser acertadamente amigos. Moravam em ermos, distantes.
Viúvo, o velho tornara a casar-se, com mulher prazível. O moço, sozinho, mudava-se sempre mais afastado. Vinha, raro, ao necessário. Dar uma conversa, incansável escutador. Quanto mais que tinham ali de atacar em comum a onça — braçal, miã, com poder de espaço — o que nenhum dos jagunços do Coronel rompia; o ofício para que davam era aquele.
O moço ia pôr-se de cócoras, o velho apontou-lhe firme o cepo, foi quem ficou agachado. Mas, de chapéu. O moço, o seu nos joelhos, sentava-se meio torcido, de lado.
Mudo modo, como quando a onça pirraça. Os cães, próximos. — “Aí... s’tro dia...” — ou — “...esse rastro é velho...” — inteiravam-se, passado conveniente tempo. Viravam novo silêncio.
Fazia ideia, o velho, pesado de coisas na cabeça, ocultas figu­ras. Mal mirava o outro: aqueles grandes cabelos ruivo-amarelos, orelhas miúdas, o nariz curto, redonda ossuda a cara. Seco de pertinácias, de sem-medo; desde menino pequeno. Tinha as vantagens da mocidade, as necessidades…
Enquanto que, ele, esmorecia, com o render-se aos anos, o alquebro. O que era o que é a vida. A mais, a doença. Tormentos. Porque tinha aceitado de um qualquer dia morrer, deixando a mulher debaixo de amparo? Ia não largar no mundo viúva para mãos de estranhos!
Daí, com o outro, o conversado, à mútua vontade, para pro­vidência. A esse, seguro por sangue e palavra, protetor, entregava então herdada a companheira, para quando a ocasião; tratou-se. Para ele poder morrer sem abalo... A mulher, entendendo, crer que anuía, tranquila calada. Disso ele tinha sabedoria. Em tanto que, às vezes, achava raiva. Agoniava-o o razoável. Direi­teza, ou erro? Isso ficava em questão.
Dera um gemido cavo. De rebate: se esticara para diante, o intento dos olhos se alargando, o corpo dançado. — “A que há, uma onça...” — começara. Repôs-se em equilíbrio nos calca­nhares. Recuava de pensar, em posição de ação.
O moço: — “Ah!” — no falso fio; vigiava por tudo, em seu entendimento.
Vagaravam.
Sem mal-entenderem-se.
Tardinho, na mata, o ar se some em preto, já da noite por vir.
Agitavam-se súbito os cães, até à choupana, à porta: abrira-a a mulher, com a comida. Mulher pequenina, sisuda. Não vol­tava o rosto. E pela dita causa.
O moço ia-se, fez menção. Conteve-o o velho: — “Mais logo...” — entre dentes dito.
Tornou a mulher a abrir a porta. Não olhava, não chamou. Mas ti­nha um prato do jantar em cada mão. O velho ergueu-se, foi buscar.
O moço comia, a gosto. O coitado, com afeto nenhum, nin­guém cuidando dele. Conhecera já a careta, o escarrar, os bi­godes — a massa da onça, a pancada! O que arde.
Por que não o castrara a fera monstra, em vez de escavacar-lhe as costas e rasgar banda da face, consumir barriga-da-perna, o acima-da-coxa, esses desperdícios? Se fosse, mais merecia, para aquilo — por resguardo e defendimento, respeitante, postiço, sem abusos...
E velhamente. Falava, lembranças, da meninice ainda do ou­tro, falando com a boca amargosa. Nem tinha fome. Os fatos não se emendavam.
Dava ânsia pensar — a coisa, encorpada. A mulher, mu­lherzinha nas noites. Aquele, rente, o outro, pescoço grosso, ma­cho gatarro, de onça, se em cio. Tinha vexame do que sendo para ser, do inventado.
Encarou-o: — “Vai.” Falou; foi a rouco. Em dó de sentir o que olhos não vão ver, preenchidos pela terra.
O moço tristemente, também, se entortando, aleijado. Voltava só a seu rancho. Cruzava caminho da outra, onça jagunça — a abertura em-pé do meio-do-olho, que no escuro vê — o pulo, as presas, a tigresia.
Mas, tinha no ombro o rifle! E o saber — pelo desassombrar, abarbar, com ela igualar-se à mão-tente — fugir o perigo. Ensinara-lhe, tudo, prevenira... o velho se levantava.
De supetão: — “Quer ficar?” Assim dizendo. — “Madrugada, a gente vai... mata...” — bufo por bufo.
De não, o outro respondeu, vago.
— “...andadora... onça grossa...” 
Não; o moço sacudiu-se.
O velho tocou-lhe no braço — “Te protege!” — disse, risse.
Depois, de novo, mestre, ia sentar-se na tora, num derrêio, por enfim; esfregava-se as pálpebras com as unhas dos dedos. As coisas, mesmas, por si, escolhem de suceder ou não, no prosseguir.
O moço se despedia, sem brusqueza. Só a saudação reverencial: — “Meu pai, a sua benção...” 
Tinham contas sem fim. Latiam os cães. Ia dar luar, o para cami­nhada, do homem e da onça, erradios, na mata do Gorutuba.

Guimarães Rosa, em Tutameia

domingo, 6 de abril de 2025

Hagar, o Horrível

Volição

A volição do meu vizinho é, para a minha, tão indiferente quanto o seu pobre sopro vital e a sua carne. Embora tenhamos sido feitos para o bem um do outro, nossas faculdades hegemônicas detêm seus próprios encargos. Do contrário, a crueldade do meu vizinho seria minha e a minha infelicidade dependeria de outrem—o que deus não quis.

Marco Aurélio, em Meditações