terça-feira, 8 de abril de 2025

Anse

Diabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um temporal atrás deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada. Faço o que posso, espremo a cabeça, mas o diabo desses rapazes...
Estirada aqui, bem à minha porta, um lugar que favorece a má sorte. Eu disse a Addie que não era bom morar à beira de uma estrada, quando a estrada chegou até aqui, e ela respondeu, no seu rampante de mulher: "Então levante-se e mude-se." 
Mas eu lhe disse que não adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso é que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa se movimente, faz a coisa comprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroça, mas quando Ele quer que uma coisa fique quieta, Ele faz a coisa para cima, como uma árvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que as pessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? É possível colocar uma estrada perto de uma casa?, eu pergunto. Não, nunca, eu respondo, porque os homens não descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroça, deixando as pessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como uma árvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse que os homens andassem sempre de um lado para outro, não lhes teria encompridado o ventre, como fez às cobras? Claro que sim, se Ele tivesse querido.
Aí está a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto à minha porta, sem falar, acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria, quando de não teria tido tal ideia se a estrada não viesse ter aqui; e não teria caído da igreja para ficar seis meses de mãos abanando e eu e Addie morrendo de trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e ele teria serrado, se estivesse em condições.
E Darl? Todos querendo afastá-lo de mim, malditos sejam. Não é que eu receie o trabalho; sempre ganhei o sustento para mim e os de casa e nunca nos faltou um teto: o problema é que queriam tirar-me Darl só porque ele sabe onde tem o nariz, só porque ele vive a pensar na plantação. Eu lhes disse: ele ia bem, a principio, com os olhos postos na terra, porque a terra se estendia para cima e para baixo; foi quando essa estrada apareceu e dividiu e encompridou a terra, e como os olhos de Darl continuassem postos na terra, então eles começaram a ameaçar-me de tirá-lo de mim, com a ajuda da lei.
Fizeram-me pagar por isso. Ela era uma mulher sã e forte como não havia outra, mas apareceu a estrada. Ela se deitou para descansar, em sua própria cama, sem pedir nada a ninguém. “Está doente, Addie?”, eu disse.
Não estou doente”, ela disse.
Fique deitada e descanse bem”, eu disse. “Sei que não está doente. Está apenas cansada. Fique deitada e descanse.”
Não estou doente”, ela disse. “Vou me levantar.”
Esteja quieta e descanse”, eu disse. “Você está só cansada. Pode se levantar amanhã.”
E ela ficou deitada, sã e forte como não havia outra mulher, se não fosse a estrada.
Eu nunca mandei chamá-lo”, eu disse. “Tomo você como testemunha de que nunca mandei chamá-lo.”
Sei que não mandou”, disse Peabody. “Não estou duvidando. Onde está ela?”
Está deitada”, eu disse. “Só um pouquinho cansada, mas ela...” 
Saia daqui, Anse”, ele disse. “Vá sentar-se um pouco no alpendre.”
E agora tenho de pagar, eu que não tenho um dente na boca, eu que esperava economizar para poder consertar a boca e comer conforme Deus manda que um homem coma, e ela sã e forte como não havia outra mulher por aqui até aquele dia. Obrigado a pagar para ter necessidade agora desses três dólares. Obrigado a pagar para que os rapazes tenham de sair para ganhá-los. E agora eu posso ver, como se adivinhasse, que a chuva vai desabar entre nós, que vai chegar por essa estrada como um homem amaldiçoado, como se não existisse outra casa em que chover por todo o mundo dos vivos.
Tenho ouvido gente maldizer a sorte, e com razão, pois era gente pecadora. Mas, comigo, não é praga, porque nada fiz de que me possa arrepender. Não sou religioso, reconheço. Mas minha consciência está em paz: sei que está. Fiz coisas nem melhores nem piores do que os outros fazem e disfarçam, e sei que Deus Nosso Senhor cuidará de mim como de um pardal que não consegue voar. Mas parece duro que um homem se veja em tantas dificuldades só por causa de uma estrada.
Vardaman chega, por trás da casa, com os joelhos sujos de sangue como um leitão, e aquele peixe cortado em postas, provavelmente com um machado, ou quem sabe jogado fora, para ele me mentir então, dizendo que os cães o comeram. Bem, acho que não posso esperar dele mais do que recebo de seus irmãos maiores. Ele se aproxima, observando a casa, tranquilo, e se senta nos degraus. “Ufa”, diz, “estou morto de cansaço.” “Vá lavar as mãos”, digo. Não há mulher melhor que Addie para mantê-los na linha, homens e meninos: tenho de confessar.
Estava cheio de sangue e de tripas, como um leitão”, ele diz. A verdade, porém, é que não tenho disposição para coisa alguma, ainda mais com este tempo que me entristece. “Pai”, ele diz, “Mãe piorou?” “Vá lavar as mãos”, digo. A verdade é que não tenho mesmo disposição para nada.

William Faulkner, em Enquanto agonizo

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