sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Sustentabilidade?!

Chico Buarque | Injuriado

Potencialidade

Se tivesse de expressar algum desejo meu, eu não diria que anseio pela riqueza nem pelo poder e sim pelo apaixonante sentido da potencialidade: pelo olho que, sempre jovem e ardente, vê o possível. O prazer traz desencantos, a potencialidade nunca. E que vinho há de ser mais espumante, mais fragrante e embriagador que a potencialidade!

Soren Kierkegaard, em 150 frases de Soren Kierkegaard

Joana


Eu só gostava de mulher bonita, de cara e de corpo. Podia ser ignorante, uma idiota, mas sendo bonita eu gostava dela.
Minha namorada, Ingrid, era assim, linda, burrinha, magrinha, pesava quarenta e cinco quilos, perfeita como uma dessas estatuetas que rodopiam em cima da caixinha de música. Eu a levantava, segurando-a pela bunda, ela cruzava as pernas em torno da minha cintura, me abraçava como uma sanguessuga, eu enfiava o pau nela e fodíamos. Sempre começávamos assim a fazer amor.
Esqueci de dizer que sou muito católico. Fui ao confessionário e disse para o padre, seu padre, eu só gosto de mulher bonita, isso é pecado?
Ele ficou calado, pensei até que tinha saído da guarita, eu não conseguia ver do outro lado, onde ele estava, a grade que nos separava não permitia, mas sempre achei que ele podia me ver e assim eu fazia uma cara contrita de pecador arrependido.
Depois de algum tempo comecei a ficar nervoso e perguntei, seu padre, o senhor está aí?
Estou, ele respondeu. Não reconheci a voz, devia ser um padre novo, eu me confessava todo mês e conhecia a voz dos vários padres que me atendiam e sempre me mandavam rezar alguns pais-nossos e ave-marias antes de me dispensar.
É pecado só gostar de mulher bonita?, repeti.
O padre continuou algum tempo calado, depois disse, meu filho, pecado é uma transgressão de lei ou preceito religioso, não existe mandamento que fale sobre isso...
Seu padre, eu disse, o senhor me desculpe, mas eu li em Tomás de Aquino que os pecados capitais são vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia — ah!, acídia, quando li essa palavra, seu padre, tive que ir ver no dicionário para descobrir que era preguiça.
Eu ri dizendo essa última frase, mas do outro lado não tive resposta. Perturbado com o silêncio do padre esqueci o assunto ligado a Tomás de Aquino. Ficamos os dois calados, parecia coisa de maluco.
Quebrei o silêncio. Seu padre, o fato de eu só gostar de mulher bonita não é uma clave indicando luxúria?
Talvez, disse o padre — e creio ter ouvido um leve suspiro vindo do outro lado.
Insisti: um pensador ateu cujo nome esqueci disse que foi o medo cristão da carne que fez da luxúria um pecado mortal.
Mais silêncio do outro lado do confessionário.
Só gosto de mulher bonita por quê? Eu mesmo respondi: para foder. A minha namorada é para mim apenas corpo, língua e orifícios, isso tem que ser pecado.
Meu filho, disse o padre, modere a sua linguagem, estamos na casa de Deus.
Desculpe, eu disse.
O padre ficou mais algum tempo em silêncio e disse, meu filho, para obter o perdão e se purificar dos seus pecados você deve rezar o terço completo. Agora pode ir embora.
Fui para casa, fiz o sinal da cruz e rezei o credo. Depois um pai- -nosso, três ave-marias, uma glória-ao-pai, sendo que após cada reza eu recitava a oração pedida pela Virgem Maria em Fátima: Ó meu Jesus, perdoai-nos os nossos pecados, livrai-nos do fogo do Inferno, levai as almas todas para o Céu e socorrei principalmente as que mais precisarem da Tua misericórdia. Finalmente, rezei mais dois pais-nossos e encerrei com uma salve-rainha. Tudo isso em voz alta. Quando acabei, achei que estava perdoado e fui me deitar.
Não consegui dormir. Eu não estava perdoado. Sabia que apenas seria perdoado quando namorasse uma mulher feia. Mas, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, arranjar uma mulher feia é mais difícil do que conseguir uma bonita. Certas feias sublimaram o desejo e se emparedaram defensivamente em variadas obsessões; outras o excluíram do campo da consciência. Todas se defendem com explicações que acreditam coerentes para o comportamento adotado, sem perceber o verdadeiro motivo: elas são feias e nenhum homem quer saber delas.
As mulheres feias vão a que lugares? À igreja, é claro. Esse era o lugar certo para encontrar uma penitente feia que quisesse se entregar ao pecado da luxúria. Ou que já o tivesse cometido. Eu ainda tinha de imaginar em que dia e horário as mulheres feias preferiam rezar. Resolvi escolher o domingo. E testar todas as missas desse dia.
A igreja que escolhi celebrava a primeira missa às seis da manhã. Estudei todas as mulheres daquele horário e não encontrei uma sequer que servisse aos meus propósitos. Eram todas feias, e também velhas. Namorar uma mulher feia e velha era penitência que nem durante o tempo da Inquisição seria imposta ao pior dos pecadores.
Minha frustração ia aumentando, missa após missa. Até que na missa do meio-dia encontrei uma mulher que talvez servisse. Ela devia ter uns trinta anos, gordinha, sem pescoço, inteiramente assimétrica. Aproximei-me dela em frente à pia de água benta. Enquanto me benzia eu lhe disse, é a primeira vez que venho à missa das doze horas, sempre frequento a das seis da manhã.
A essa hora estou dormindo, ela respondeu, a coisa que eu mais gosto no mundo é de dormir.
Ah!, suspirei, quem me dera ser assim, eu durmo tão mal.
Deve ser algum peso na consciência, ela disse com um sorriso.
Os dentes dela eram escuros, devia fumar muito. Fomos andando pela rua. Posso acender um cigarro?, ela perguntou. Claro, respondi, eu fumei muito durante certo tempo, mas parei depois que li artigos e estatísticas médicas que mostravam que o cigarro era um veneno.
Como todo ex-fumante ou ex-viciado em qualquer coisa, não deixo passar a oportunidade de falar mal do meu antigo vício.
Eu sei, ela disse, mas se deixar de fumar eu vou engordar horrivelmente.
Quando ela disse isso eu tive certeza de ter encontrado a mulher que procurava. Ela possuía pelo menos um certo grau de vaidade, e isso, tendo em vista as circunstâncias, fazia dela a mulher ideal. Além de ser um pecado, a vaidade é, de todos os riscos, aquele que torna a mulher mais vulnerável. Ela pode resistir à gula, deixando de comer batata frita, à avareza, pagando mais à empregada favelada, à inveja, reconhecendo ter sido um sucesso a operação plástica da amiga, à preguiça, comprando um despertador barulhento para acordar mais cedo, à luxúria, fugindo para a igreja, mas à vaidade ninguém resiste. E a vaidade leva a todos os outros pecados. E o primeiro deles é exatamente a luxúria.
O nome dela era Joana. Fui com ela até a porta da sua casa, distante uns quinze minutos da igreja. Não convido o senhor para entrar e tomar um cafezinho porque houve um problema com o meu fogão, e como hoje é domingo não consigo ninguém para consertá-lo.
Fogão, eu disse, consigo consertar qualquer fogão, quer que conserte o seu?
Ah, seria ótimo, respondeu ela.
O fogão tinha quatro bocas e um forno. Para falar a verdade eu não sei coisa alguma sobre fogão. Fiquei em frente ao fogão apertando botões e torcendo coisas, aproximando meu nariz das bocas de gás. Depois de algum tempo, eu disse que para consertar o fogão precisava de uma peça, um calibrador. Era uma palavra boa, calibrador, multiusável como esses detergentes que anunciam na televisão.
Então não vai ter cafezinho, ela disse.
Estava nervosa, com aquele homem dentro de casa, sem saber ao certo como ele se comportaria e como ela mesma se comportaria numa emergência. Eu sabia que o meu trabalho inicial era conseguir a confiança dela.
Fiz a minha primeira comunhão com sete anos, e você?
Eu fiz com oito, ela respondeu, não quer se sentar?
Sentei-me na poltrona e ela no sofá.
Então contei que minha mãe havia comprado um terninho branco para mim, no braço havia uma fita, branca e dourada. Foi uma experiência inesquecível, receber Jesus Cristo sacramentado, eu disse, meus pais sabiam que a primeira comunhão devia ser recebida quando se começa a ter uso da razão, mas eu, apesar de ter apenas sete anos, era um menino muito sensato, e sou até hoje, responsável, confiável.
Eu nem me lembro bem da minha primeira comunhão, ela disse, acho que fiz com uma porção de outras meninas do colégio.
Olhei para o relógio, levantei-me da poltrona. Tenho um compromisso daqui a uma hora, desculpe não ter consertado o seu fogão.
Não se preocupe. Domingo você vai à missa a que horas?
A mesma de hoje, respondi.
Então a gente se encontra lá, está bem?
Claro, respondi.
Despedi-me formalmente, nada de beijinhos no rosto, não obstante ela tenha aproximado o rosto para receber aqueles ósculos rotineiros.
No domingo seguinte nos encontramos novamente. Joana estava toda enfeitada, para me impressionar. Atavios funcionam com mulheres bonitas, as feias ficam ainda mais feias quando se adornam.
Convidei-a para almoçar. Ela comeu uma salada de alface e tomate, apenas. Tenho que perder umas gordurinhas. Que bom, estava se preparando para mim. Perguntou se eu tinha algum compromisso, uma namorada, casado ela sabia que eu não era, pois não via aliança no meu dedo. Eu disse que não tinha ninguém, que aquela era a primeira vez que eu ia a um restaurante com uma mulher. E com homem?, ela perguntou, com um certo pânico na voz, uma inesperada suspeita sobre as minhas inclinações sexuais devia ter crepitado na sua cabeça. Para dissipar essa dúvida respondi, com ninguém, tive há tempos uma namorada, mas ela gostava de cozinhar para mim e comíamos na casa dela ou na minha. E ela cozinhava bem? Muito bem, respondi. Eu também sei cozinhar, disse Joana, um dia vou fazer uma comidinha para você.
Isso demorou mais quinze dias, ou seja, mais duas missas, depois das quais eu sempre a acompanhava até sua casa.
Joana estava emagrecendo, o que a tornava ainda mais assimétrica, as partes do seu corpo, tórax, pescoço, braços, pernas, abdome ficaram ainda mais desproporcionais. Um dia sonhei com Joana e ela era uma espécie de grilo ou gafanhoto, um desses insetos que se mexem de maneira desarticulada.
O jantar que Joana fez para mim estava muito saboroso. Ela praticamente nada comeu, mas tomou bastante vinho, bebemos duas garrafas de tinto português Periquita, ela, a maior parte.
Depois fomos para a sala, onde nos sentamos, eu na poltrona, ela no sofá. Joana acendeu um cigarro. Subitamente levantou-se e disse, me abraça.
Dei um abraço longo e apertado nela. Depois ela voltou para o sofá e eu, para a poltrona. Fiquei olhando para o rosto dela, os lábios com uma leve camada de batom, pensando se conseguiria comer ela. Talvez broxasse, coisa que nunca aconteceu comigo nem com nenhum homem da minha família. Quando chegasse a hora eu ia dizer a ela que era muito tímido e tinha que apagar completamente a luz do quarto.
Jantei na casa dela mais umas quatro vezes. Na última aconteceu. Ela, mais embriagada e pintada do que nunca, disse que queria ser minha, me pegou pela mão e levou-me para o quarto.
Tem que ser no escuro total, eu disse, sou muito tímido.
Tiramos a roupa no escuro e nos deitamos na cama. Pensei na Ingrid, nas coisas que fazíamos na cama e o meu pau ficou duro. Quando isso aconteceu, nem pensei em camisinha, tinha que aproveitar enquanto dispunha do instrumento em condições e enfiei o pau nela.
Estava escuro, mas mesmo assim fechei os olhos, pois Joana ficou gemendo e me beijando na boca e fiquei com medo de os meus olhos se habituarem com o escuro e eu ver a cara dela.
Depois de algum tempo não precisei mais pensar na Ingrid. A boceta de Joana era apertada e sugante, quente, úmida.
Prolonguei o mais que pude o prazer daquela penetração. Ela gozou com um ardor tão incandescente e deu um grito tão agudo que eu perdi o controle e gozei também. Confesso que foi uma das melhores trepadas da minha vida.
Você me salvou, eu disse, não sou mais um pecador.
Joana não respondeu. Acendi a luz para lhe agradecer aquela bênção. Ao meu lado Joana, pálida, imóvel, não respirava nem se mexia. Estava morta.
Beijei carinhosamente o seu rosto, afinal bonito e feliz. Eu estava salvo, dera felicidade e beleza eterna para uma boa mulher.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do mundo

Serenidade

A dor é um mal para o corpo ou para a alma. Permita que o corpo diga o que pensa sobre ela. A alma está apta a preservar sua serenidade e tranquilidade e a não considerá-la má. Afinal, os julgamentos, os impulsos, os desejos e as repulsões são internos, e nenhum mal adentra tão fundo.

Marco Aurélio, em Meditações

Corpo de baile

 


Dez anos depois, os resultados da revolução acenada surgiram nesta obra prodigiosa, que de chofre atirava o leitor no labirinto de que já falamos. É verdade que epígrafes tiradas de Plotino e de Ruysbroeck, tão inesperadas ao limiar de um conjunto de romances regionais, punham-no de sobreaviso. O título dava a entender a existência de ligações íntimas entre as peças de um conjunto, de um plano oculto que as unia; as epígrafes exortavam à procura de um ou vários sentidos escondidos.
O livro tinha nada menos de sete romances inseparavelmente ligados ao cenário mineiro de imensos chapadões semidesertos, vastos horizontes e feéricos espetáculos naturais em perpétua mudança, que infunde em seus habitantes atração pelo mistério e pelo sobrenatural, temores vagos, crenças e superstições estranhas, medos cósmicos. O autor geralmente escolhe como personagens indivíduos marginais e por isso pouco modificados pelo convívio social, mais acessíveis às forças invisíveis do ambiente: crianças, loucos, mendigoscangaceiros, vaqueiros. Eles é que formam o elenco num teatro onde não há separação completa entre palco e plateia, autor e personagens. O mais das vezes conhecemo-los em momentos de crise quando, acuados pelo amor, pela doença, ou pela morte, desesperadamente procuram tomar consciência de si mesmos, de compreenderem o sentido de sua vida.
Quem tenta resumir qualquer uma dessas extensas narrativas, perceberá logo as dificuldades da tarefa. Por mais que se esforce, não conseguirá encerrar num esquema a riqueza dos motivos, o emaranhamento de fios, a secção de planos múltiplos. “Uma estória de amor”, por exemplo, relata uma festa de Manuelzão, chegado de menino desamparado a encarregado de uma fazenda. Já no fim da vida, impelido pela ânsia de perpetuar-se, inaugura com um banquete a capela que acaba de construir. Em trilhos quase paralelos correm a ação exterior (a sequência da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete, o seu decurso) e a íntima (o embate de inquietações surdas no espírito tosco do anfitrião, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima). Depois, as duas linhas convergem para um remate brusco: da boca de um velho mendigo brota uma canção épica, milagre cuja vaga intuição integra a atmosfera da festa e apaga os tristes símbolos da frustração de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda, quando, afinal, ele se achou em condições de adquiri-lo.
Peça não menos sugestiva é “O recado do morro”, onde testemunhamos a gênese de outra canção no decorrer de uma expedição (mais uma das suas mágicas viagens pelo sertão). O núcleo da canção brota do espírito perturbado de um louco, é alimentado e desenvolvido pela cooperação casual de outros alucinados e é acabado por um bardo popular que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o nascer da canção operam-se simultaneamente e a conclusão desta prefigura o fim trágico daquela. Um recado infralógico da atmosfera e da paisagem transmuda-se em verso através da cooperação de uma sequela de anormais, de senso embotado, mas de sentidos apurados.
A menção de apenas dois romances não significa menosprezo pelos cinco outros, apenas decorre do fato de estarmos restritos à mera amostragem pelos limites deste estudo. Esta Seleta traz trechos de uma terceira estória, “Campo geral”, talvez suficientes para gravar na memória a singela figura do menino Miguilim, mini poeta plantado por um capricho do destino num campo agreste do sertão, mas que apenas faz pressentir a perturbadora riqueza de motivações que tece em seu redor o ambiente que o cria e amolga.
Se os temas e os ambientes do livro ampliavam e prolongavam os de Sagarana, suas inovações estilísticas eram ainda mais radicais. Era impossível não perceber que se tratava dos produtos de consciente pesquisa formal, uma estonteante experimentação criadora que, de início, perturbou muita gente. Era fenômeno inédito aquele estilo nitidamente “oral”, mas que não correspondia in totum à expressão de nenhuma região, nenhuma classe e nenhuma época, sendo uma mistura personalíssima e inimitável de artifício e de espontaneidade.
Haurindo a duas mãos na rica fonte da língua popular de Minas Gerais, João Guimarães Rosa estende a aplicação dos processos de derivação e das tendências sintáticas do povo, muitas delas nem registradas, e cria uma língua própria, de grande força envolvente. Obedecendo ora à exigência íntima de uma expressividade e matização infinitas, ora a um sensualismo brincalhão que se compraz em novas sonoridades, submete o idioma a verdadeira atomização. A invenção de onomatopeias sem conta, a livre permutação de prefixos verbais, a atribuição de novos regimes, a ousada inversão das categorias gramaticais, a multiplicação das desinências afetivas são algumas dessas fecundas arbitrariedades que, mais de uma vez, se abonam na prática de outras línguas, cujas reminiscências o poliglota nem sempre soube ou quis reprimir. A falta de dissociação entre autor e personagens faz com que complicados conteúdos intelectuais venham a revestir-se de modismos populares. Palavras mortas ressuscitam, outras, vivas, são submetidas a transformações violentas, novas surgem revelando falhas até então despercebidas da língua ou sugerindo a existência de noções, sensações e fenômenos ainda não incorporados em nossa percepção.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O impagável Laerte

 

Hilario Duran | Cry Me A River

Uma estória de amor

A esposa – ela amava tanto o marido! – fazia-lhe diariamente um mingau de fubá, alimento forte para manter as forças. Assim foi por toda a vida, numa fidelidade comovente, sem falhar um dia sequer: toda manhã lá estava diante do marido o prato de mingau de fubá que ele comia até o fim. Até que o inesperado aconteceu. Já bem velha, ficou doente, não conseguia se levantar da cama. O que seria do seu pobre marido sem o mingau de fubá? Desolada, chamou-o para explicar que, infelizmente, naquele dia, ela não poderia fazer o mingau de fubá. O rosto dele se abriu num vasto sorriso. “Não se preocupe, meu bem. Pra dizer a verdade, eu nem gosto mesmo de mingau de fubá...”

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

Siglas



Bota aí: “P”
– “P”
De “Partido”.
Ah.
Nossa proposta qual é? De união, certo? Acho que a palavra “União” deve constar do nome.
Certo. Partido de União...
Mobilizadora!
Boa! Dá a ideia de ação, de congraçamento dinâmico. Partido da União Mobilizadora. Como é que fica a sigla?
PUM.
Não sei não...
É. Vamos tentar outro. Deixa ver. “P”...
– “P” é tranquilo.
Acho que “Social” tem que constar.
Claro. Partido Social...
Trabalhista?
Fica PST Não dá.
É. Iam acabar nos chamando de “Ei, você”.
E mesmo “trabalhista”, não sei. Alguém aqui é trabalhista?
Isso é o de menos. Vamos ver. “P”…
Quem sabe a gente esquece o “P”?
É. O “P” atrapalha. Bota “A”, de Aliança. Aliança Inovadora...
AI.
Que foi?
Não. A sigla. Fica AI.
Espera. Eu ainda não terminei. Aliança Inovadora... de Arregimentação Institucional.
AIAI... Sei não.
É. Pode ser mal interpretado.
Vanguarda Conservadora?
Você enlouqueceu? Fica VC.
Aliança Republicana de Renovação do Estado.
ARRE!
O quê?
Calma.
Espera aí pessoal. Quem sabe a gente define a posição ideológica do partido antes de pensar na sigla? Qual é, exatamente, a nossa posição?
Bom, eu diria que estamos entre a centro-esquerda e a centro-direita.
Então é no centro.
Também não vamos ser radicais...
Nós somos a favor da reforma agrária?
Somos, desde que não toquem na terra.
Aceitaremos qualquer coalizão partidária para impedir a propagação do comunismo no Brasil.
Inclusive com o PCB e o PC do B?
Claro.
Não devemos ter medo de acordos e alianças. Afinal, um partido faz pactos políticos por uma razão mais alta.
Exato. A de chegar ao poder e esquecer os pactos que fez.
Partido Ecumênico Republicano Unido.
PERU?
Movimento Institucionalista Alerta e Unido.
MIAU?!
Que tal KIM? - O que significa?
Nada, eu só acho o nome bonito.
MUMU. Movimento Ufanista Mobilização e – MMM... Movimento Moderador Monarquista.
Mas nós somos republicanos.
Eu sei. Mas por uma boa sigla a gente muda.
TCHAU.
Hum, boa. Trabalho e Capital em Harmonia com Amor e União?
Não, é tchau mesmo.
Aonde é que você vai?
Abrir uma dissidência.

Luís Fernando Veríssimo, em Comédias Para se Ler na Escola

[Para Caresse Crosby]




1946
[Para Caresse Crosby]
9 de outubro de 1946

Cara sra. Crosby:

Eu estava trabalhando numa fábrica de porta-retratos e bebendo quando a senhora aceitou um dos meus contos.
Na carta a senhora disse que ele era “intrigante e profundo”.
Perdi meu emprego.
Meu pai me comprou um terno novo e me despachou para a Filadélfia.
Vivi de seguro social, tinha tempo demais para pensar e beber – e fiquei matutando sobre a Portfolio.
Escrevi diversos bilhetes contumeliosos, pesquisando palavras francesas na parte de trás do meu dicionário. Eu queria um exemplar da Portfolio com o meu conto. Fiquei triste que nem louco, tive impulso suicida, sonhos de vinho. Precisava de um ânimo espiritual, fiquei entusiástico nos meus pedidos, depois de vários intercâmbios, consegui (a Portfolio). Agora estou trabalhando numa fábrica de ferramentas – e bebendo.
Mas continuei matutando. Onde estão aqueles contos e esquetes que mandei para ela em março de 1946? Ela está zangada? Isso é a vingança dela? Será que ela queimou as minhas coisas? Ela transformou as páginas em barquinhos de papel para a banheira? Ou será que Henry Miller dorme com elas embaixo de seu colchão?
Não posso esperar mais.
Se não receber resposta, terei minha resposta.
Sinceramente,
Charles Bukowski

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

Um doutor

Um doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha.
Suspensórios, colete, botina preta de presilhas.
E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo,
diga-se de logo, usava naftalina. Por caso, era
um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade
lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco.
Fomos de tarde no Bar O Ponto. Ele, meu pai e este
que vos fala. Este que vos fala era um rebelde
adolescente. De pronto o Doutor falou pra meu
pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho
agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto.
Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós.
O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda
perguntou: E o comunismo dele? Está quarando
na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu.
O doutor se levantou da mesa e saiu com seu
andar de vespa magoada.

Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A segunda infância

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pura insensatez

Bicudinho, de Caco Galhardo

Despedidas


Eu não pensava que elas fossem mesmo morrer, mas achava normal que a minha avó falasse daquele jeito. Só me convenci de que falava a verdade quando tentei praticar com a Taiwo uma brincadeira que fazíamos desde muito novas, nem sei quando. Qualquer uma de nós podia fechar os olhos e pensar um pensamento, qualquer um, e deixá-lo pela metade para que ele fosse completado pela outra. Ficávamos horas neste jogo silencioso, como se tivéssemos o poder de entrar no pensamento da outra e saber para onde ele estava indo. Eu queria saber o que a Taiwo pensava sobre a vida que levaríamos no estrangeiro, se seríamos presentes ou carneiros, mas não tive resposta. Senti que a Taiwo já não estava mais dentro de mim, como se ela tivesse fechado os olhos naquelas horas em que, olhando por sobre os ombros da nossa mãe, que dançava, eu conseguia me ver dentro dos olhos dela. Eu tentava sair de mim e não encontrava mais para onde ir, tentava encontrar a Taiwo e não conseguia. A Taiwo já estava fora do meu alcance, estava morrendo.
A comida começou a apodrecer por todo o chão do navio, porque muitos, e eu também, já não tínhamos mais apetite, e ao cheiro dela se juntava o cheiro de xixi, de merda, de sangue, de vômito e de pus. Acho que todos nós já queríamos morrer no dia em que abriram a portinhola e mandaram que nos preparássemos para sair. Foi preciso repetir a ordem novamente, e novamente, porque faltava ânimo, faltava força e, no fundo, achávamos que íamos todos virar comida de peixe. Disseram que iam nos levar para tomar banho, beber água e ficar um pouco ao sol. Foi o sol que me animou a sair, e também fez com que os nossos olhos ardessem ao deixarmos o porão, a ponto de não conseguirmos abri-los, andando e caindo uns por cima dos outros. Tentei me levantar e caí várias vezes antes de conseguir me manter de pé, não só por causa da fraqueza, mas porque as pernas pareciam ter se desacostumado do peso do corpo, sempre deitado. Logo atrás de mim subiram a minha avó e a Tanisha, carregando a Taiwo nos braços. À medida que saíamos, eles nos mandavam tirar as roupas e jogá-las a um canto do navio. O vento que soprava era um grande alento, e quase me engasguei com o ar. Leve, fresco, sabendo a mar, um cheiro bom. Eu me lembrei do Akin e da Aina, e da primeira vez que eu e a Taiwo vimos o mar. Não fazia tanto tempo, e nunca poderíamos imaginar que em breve estaríamos ali, dias e dias no meio do mar, que parecia ser muito maior do que o Akin imaginava. Eu teria adorado a oportunidade de dizer a ele que para todo lado que se olhava era só mar, mar e mais mar. Mas já naquele momento percebi que não era só por isso, mas também porque eu queria viver, e não virar carneiro de gente nem carneiro de peixe, e então sobrevivendo a tudo isso, é que eu poderia falar com o Akin sobre o mar. O vento soprando na pele e o sol davam uma sensação boa, de que eu ia conseguir. Quase sorri, e só não o fiz porque olhei para a minha avó e me assustei. Ela estava mais velha do que qualquer pessoa que eu já tinha visto, muito mais magra, os peitos escorrendo por cima dos ossos da costela, os olhos embaçados e a pele coberta por uma fina crosta esbranquiçada, igual àquela que se forma sobre a carne que é salgada para durar mais tempo. Percebi que muitos também estavam daquele jeito, inclusive eu, na barriga, onde a pele branca que havia se formado esfarelou quando esfreguei a mão com força sobre ela. Era mais fácil com a mão molhada em um pouco de saliva, e a crosta tinha gosto de sal. Mais tarde eu soube que aquilo era causado pelo próprio corpo, que colocava para fora o excesso de sal da comida que ingeríamos, principalmente da carne ou do peixe salgado.
A Jamila e a Aja não queriam tirar as roupas, mas foram obrigadas pelos guardas e ficaram o tempo todo agachadas a um canto do navio, uma tentando proteger a outra. Os muçurumins, que também protestaram mas não precisaram ser obrigados, não levantaram os olhos do chão e não tiraram as mãos da frente do membro, exceto quando começaram a rezar e precisaram erguê-las na direção de Meca ou do céu. Todos nós estávamos contentes com aquela liberdade. Tenho certeza de que não era este o objetivo dos donos do tumbeiro, nos deixar felizes, mas sim salvar a carga de algum tipo de doença contagiosa que poderia pôr a perder a viagem. Foi só à luz do dia que percebi como parecíamos mesmo bichos, sujos e feios. Não sei se carneiros, acho que mais os lagartos com que eu costumava brincar em Savalu. Ficamos deitados ou sentados no chão do navio, alguns levantando a cabeça em direção ao céu, como se assim fosse mais fácil armazenar dentro do corpo todo o ar puro de que necessitaríamos durante o resto da viagem. Mas o melhor mesmo foi o banho. Ordenaram que fizéssemos fila e, um a um, despejaram água de imensos baldes sobre as nossas cabeças. Era água do mar, mas de tão precisados que estávamos de qualquer tipo de água, mesmo que nos tivessem dito que não era para beber, seria a água mais fresca do mundo. Era difícil dar a vez ao próximo, mas, para nossa imensa alegria, a água foi formando poças pelo chão do navio, nas quais nos deitávamos para brincar, feito crianças. A Taiwo não teve forças para se manter de pé sozinha e tomou banho nos braços da Tanisha, quase sem se mover, mas eu senti que ela estava contente. Não tinha como não estar, e se naquele momento tivessem nos cobrado qualquer coisa para termos o direito de permanecer ali em cima durante o resto da travessia, tenho certeza de que teríamos concordado. Só a Aja e a Jamila, envergonhadas, depois do banho tinham voltado para o canto onde estiveram antes, chorando muito, abraçadas.
Algumas pessoas que tinham os rostos e os corpos cobertos por pequenas manchas começaram a sentir dor ao contato com a água salgada. Em um dos homens, as manchas já tinham se transformado em bolhas cheias de pus. A minha avó disse que era a peste, a varíola, embora hoje eu ache que não, porque provavelmente todos nós teríamos morrido, ou então ficado cegos, ou, pelo menos, com o rosto cheio de buracos. Olhamos o rosto e a garganta da Taiwo e elas estavam lá, as manchinhas. A minha avó disse que nem todos que pegavam a peste morriam, mas disse isso com os olhos cheios de água, e me lembrei de que só tinha visto a minha avó chorar uma vez, no dia em que o Kokumo e a minha mãe foram para o Orum. Enxugando os olhos, ela disse que eles estavam voltando para buscar a Taiwo, que queria ir, então não devíamos ficar tristes. Eu me desesperava porque em alguns momentos acreditava que seria levada também, pois sem a Taiwo, ficaria só com metade da alma. Sem a Taiwo, o branco não iria mais me querer para presente, e eu viraria carneiro, como os outros.
Todos ficaram bravos quando jogaram nossas roupas no mar, e a Aja e a Jamila choraram ainda mais. A Taiwo nem reclamou de ter perdido o vestido novo. A noite foi muito fria e tivemos que passá-la ao relento, nus, todos o mais junto possível, porque tinham jogado remédio no porão e precisaríamos esperar até o dia seguinte para podermos descer. Foi uma noite longa, mas a melhor de todas. Além de água e comida, distribuíram cachaça, e todos beberam à vontade. Os guardas não se importaram quando algumas pessoas se puseram a cantar e outras vozes foram se juntando. Logo, quase todos estavam cantando e dançando, sem se lembrar da nudez, da fraqueza, do frio ou do destino como carneiros. Ou, talvez, apenas preferissem virar carneiros felizes. Eu também tive vontade de cantar e dançar, mas não tive coragem, na frente da minha avó e da Taiwo. A Tanisha dançou em uma roda junto com várias mulheres, e duas delas eram muito bonitas, parecendo a minha mãe quando dançavam. Os guardas só impediam que os homens chegassem muito perto deles, ou então que formassem grandes rodas e ficassem conversando em voz baixa, como se tramassem algo. Nestes casos, usavam longos bastões para manter distância e separar grupos suspeitos. Um homem começou a dançar com uma das moças bonitas e o membro dele ficou duro e em pé como o dos guerreiros em Savalu, o que me fez lembrar ainda mais da minha mãe, como se já não bastassem as danças, de que ela tanto gostava. Na verdade, queria que nada tivesse acontecido, queria não ter saído nunca de Savalu. A minha avó percebeu e, mesmo tendo dito para eu ficar longe dela, benzeu-se e me abraçou, dizendo que era melhor tentarmos dormir.
Quando o dia amanheceu, os guardas formaram um grupo com todos os doentes que tinham manchas na pele e disseram que seriam mais bem cuidados fora do porão. Acho que todos já sabiam o que ia acontecer; que logo que nós descêssemos, eles seriam atirados ao mar, mas ninguém protestou. Achei bom a minha avó não ter contado sobre a doença da Taiwo, que tinha manchas apenas na garganta. A Tanisha alertou que era perigoso, que todos nós poderíamos pegar a doença por causa dela, mas minha avó garantiu que não, que tinha fé em Xelegbatá, o que controla as pestes, que ele iria ajudá-la a cuidar da Taiwo e só a levaria se Deus quisesse, poupando todos os outros. Quando descemos, o porão estava limpo e quase tinha um cheiro bom, se não fosse tão forte. Cheiro de limpeza e de remédio, mais remédio que limpeza, mas fresco. Todos se benzeram ao entrar, deram kaô a Xangô e ocuparam os mesmos lugares de antes, como se a familiaridade pudesse dar um pouco mais de conforto. Alguns dos homens quiseram se deitar junto das moças com quem tinham dançado, mas os guardas não deixaram. Nós, as mulheres, continuamos sem as cordas e os homens voltaram a ser amarrados, e, na medida do possível, começaram a nos tratar melhor, talvez com medo de não chegarmos vivos ao estrangeiro. Onde seria o estrangeiro? Será que já tínhamos saído de África? Eu tinha estes pensamentos porque não fazia ideia de quantos dias estávamos ali, que deviam ser muitos. Queria chegar rápido, virar carneiro ou presente, mas que fosse rápido. Mas não foi rápido o suficiente, porque tudo aconteceu em três dias. A Taiwo não se levantou nem abriu os olhos, não teve mais manchas e nem as antigas criaram pus, mas ardeu em febre. Quando às vezes falava alguma coisa, era sem coerência, e sempre com o Kokumo ou com a minha mãe, nunca comigo ou com a minha avó, que nos deitamos uma de cada lado e tentamos aquecê-la com nossos corpos, mesmo porque não tinham substituído as roupas jogadas no mar.
A minha avó me acordou no meio do sonho em que eu estava em uma canoa, remando pelos rios de Savalu, e me disse para segurar bem forte a mão da Taiwo. Entendi que era a hora de nos despedirmos, e a Taiwo estava tão fraca que nem respondeu ao meu toque, deixando a mão mole. A minha avó disse que não era para eu ficar triste, porque a Taiwo estava alegre em partir para se encontrar com pessoas que gostavam dela e a estavam esperando no Orum. Apertei mais forte ainda a mão dela, para que a sua parte na nossa alma não fosse embora e ficasse comigo. Era nisto que eu pensava, mas não sei se foi assim que aconteceu, como também não sei dizer se era essa a intenção da minha avó. Soltei a mão da Taiwo apenas depois de muito tempo, quando já quase não a sentia mais de tão dormente que estava a minha, quando os guardas foram buscá-la e bateram na minha avó. Não muito, mas bateram, e ela não chorou por ter apanhado nem por terem levado o corpo da Taiwo, que seria jogado no mar sem ao menos ser lavado direito. Ela disse que, assim que desembarcássemos no estrangeiro, e se ela ainda estivesse viva, faríamos uma cerimônia digna para a Taiwo, porque nem para a minha mãe ou para o Kokumo fizemos de acordo com as tradições, apenas como tinha sido possível. Eu, assim que desse, também teria que mandar fazer um pingente que representasse a Taiwo e trazê-lo sempre comigo, de preferência pendurado no pescoço. Eu e a Taiwo tínhamos nascido com a mesma alma e eu precisava dela sempre por perto para continuar tendo a alma por inteiro. Depois da morte dela, o único jeito de isso acontecer é por meio da imagem em um pingente benzido por quem sabe o que está fazendo.
Algumas horas depois de terem levado a Taiwo, como se estivesse apenas esperando que ela partisse primeiro, a minha avó disse que estava se sentindo fraca e cansada, que perdia a força e a coragem longe dos seus voduns, pois tinha abandonado a terra deles, o lugar em que eles tinham escolhido para viver e onde eram poderosos, e eles não tinham como segui-la. Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o que podia ser dito, virando comida de peixe junto com a Taiwo. Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não conhecia, sem saber se ainda era para presente ou, já que não tinha mais a Taiwo, para virar carneiro de branco. A Tanisha disse que eu sempre poderia contar com ela, que poderia ver nela a mãe, a avó e a irmã perdidas.
Poucos dias depois que jogaram a minha avó ao mar, avisaram que estávamos chegando, que da parte de cima do tumbeiro já era possível enxergar terra de um lugar chamado Brasil. Foi só então que os muçurumins acreditaram que não estávamos indo para Meca e ficaram bravos por terem sido enganados, dando pontapés e murros nas paredes do navio. Os guardas apareceram para ver o que estava acontecendo e disseram que eles, os muçurumins, tinham sorte por já estarmos tão perto da terra e, com tantas providências para serem tomadas antes do desembarque, não terem tempo de castigá-los como gostariam. Mas que se continuassem, se não se comportassem direito, os novos donos não se importariam em recebê-los castigados e obedientes. Eles calaram o protesto, mas rezaram por horas a fio, em voz baixa e todos juntos, uma oração monótona e repetitiva, um lamento tão triste que o coração da gente até virava um nó.
Depois que percebemos que o navio tinha parado, ficamos por muitas horas ouvindo grande movimentação, barulho de coisas sendo arrastadas e de vozes gritando ordens. Estavam primeiro descarregando as mercadorias que tinham sobrado da viagem e as compradas em África. Eu estava ansiosa para saber se o branco que tinha me escolhido estaria no desembarque, se tinha ficado sabendo da morte da Taiwo e se ainda ia me querer. Quando abriram a porta, fomos avisados de que, por causa das mortes a bordo e de algumas pessoas que ainda estavam muito doentes, não poderíamos desembarcar logo na cidade de São Salvador, o nosso destino. Estavam nos deixando em uma ilha chamada Ilha dos Frades, onde ficaríamos por um tempo até terem certeza de que mais ninguém adoeceria ou morreria. Quem nos contou isso foi um guarda que, durante todo o tempo, me pareceu ser uma boa pessoa, porque os outros nem se davam ao trabalho de prestar atenção às nossas perguntas.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

Improvisação Nº 1 | Anderson Pessoa e Humberto Luiz

O medo do encontro também

Embora só tenha lido trechos de Fernando Pessoa, quando comecei tão tarde a ser introduzida no seu mundo por uma amiga, assustei-me deveras: não quero saber mais, senão para sempre sairei de meu mundo, encantado e tortuoso de suspeitas, e entrarei por uma claridade que temo – pois, sem saber explicar, parece-me que a claridade nega a si mesma.
Não tenha medo, diz a amiga compassiva, sem saber você já tem Fernando Pessoa dentro de você. Com isso ela não queria dizer que me “pareço” com ele. Mas o medo do mundo me ser revelado de chofre me fez adiar um encontro maior até hoje. Pelo que minha amiga já me recitou dele, receio nunca mais poder prosseguir nas minhas penumbrosas e cruéis e deliciosas adivinhações que me matam de incerteza, me fazem me aprofundar em mim mesma.
E se souber que alguém, ou muitos alguéns não adivinharem apenas: souberam... que farei de mim sem meus passos incertos que é o meu modo de andar, de retroceder, de avançar? A tortura de escrever – nos livros – tem sido também o meu prazer.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Da recordação

A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha.

Mário Quintana, em Caderno H

Por que escrevo


Desde muito pequeno, talvez com cinco ou seis anos de idade, eu sabia que, quando crescesse, seria escritor. Mais ou menos entre dezessete e vinte e quatro anos, tentei abandonar essa ideia, embora ciente de que estava indo contra minha verdadeira natureza e de que cedo ou tarde teria de tomar juízo e escrever livros.
Éramos três irmãos, eu o do meio, mas havia um intervalo de cinco anos entre um e outro, e mal vi meu pai antes dos oito anos. Por esse e outros motivos, eu era um pouco solitário e logo adquiri modos peculiares e pouco simpáticos, que me tornaram malquisto durante toda a minha vida escolar. Tinha o hábito de menino solitário de inventar histórias e travar conversas com pessoas imaginárias, e acho que desde o início minhas ambições literárias se confundiram com o sentimento de ser isolado e subestimado. Sabia que tinha habilidade com as palavras e capacidade para enfrentar fatos desagradáveis, e sentia que isso criava uma espécie de mundo particular em que podia compensar fracassos da vida cotidiana. No entanto, o volume de textos sérios — quer dizer, de intenção séria — que produzi ao longo da infância e da adolescência não somava meia dúzia de páginas. Aos quatro ou cinco anos escrevi meu primeiro poema, que minha mãe anotou enquanto eu ditava. Dele nada me lembro, a não ser que era sobre um tigre e o tigre tinha “dentes iguais a uma cadeira” — uma expressão razoável, mas acho que o poema era plágio de “Tigre, tigre”, de William Blake. Aos onze, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial (1914-8), escrevi um poema patriótico que foi publicado no jornal local, e outro dois anos mais tarde, sobre a morte do marechal-de-campo Kitchner de Cartum [Horatio Herbert]. Um pouco mais velho, escrevi alguns maus “poemas sobre a natureza”, em estilo georgiano, em geral inacabados. Em duas ocasiões também tentei escrever um conto que foi um tremendo fracasso. Esse foi o total do pretenso trabalho sério que pus no papel ao longo de todos aqueles anos.
Entretanto, durante esse período sempre estive envolvido, de certo modo, em atividades literárias. Em primeiro lugar, havia as incumbências que eu produzia com rapidez e facilidade, sem muito prazer. Afora o trabalho escolar, escrevi vers d’occasion, poemas semicômicos que eu compunha com uma velocidade que hoje me parece espantosa — aos catorze, escrevi uma peça toda rimada, à maneira de Aristófanes, em cerca de uma semana —, e ajudei a editar revistas escolares, impressas e manuscritas. Essas revistas eram a coisa mais ridícula que se pode imaginar, e tive muito menos problemas com elas do que tenho hoje com o jornalismo mais pretensioso. Mas, paralelamente a tudo isso, por quinze anos ou mais fiz um tipo de exercício literário diferente: era a composição de uma “história” contínua sobre mim mesmo, uma espécie de diário que só existia na minha cabeça. Acredito que seja um hábito comum em crianças e adolescentes. Quando pequeno, eu costumava imaginar que era, digamos, Robin Hood, e me concebia como o herói de aventuras emocionantes, mas em pouco tempo minha “história” abandonou seu narcisismo primário e se tornou cada vez mais uma simples descrição do que eu fazia e das coisas que via. Durante minutos, às vezes, me passava pela cabeça este tipo de coisa: “Ele abriu a porta com ímpeto e entrou na sala. Um feixe amarelo de luz solar, infiltrando-se pelas cortinas de musselina, incidia obliquamente sobre a mesa, onde uma caixa de fósforos, semi-aberta, estava ao lado do tinteiro. Com a mão direita no bolso, ele foi até a janela. Lá embaixo, na rua, um gato malhado perseguia uma folha seca”, e assim por diante. Esse hábito continuou até mais ou menos os vinte e cinco anos, durante toda a minha fase não literária. Embora tivesse de procurar, e de fato procurava, as palavras certas, parecia que me empenhava nesse esforço descritivo quase a contragosto, obedecendo a uma espécie de compulsão que vinha de fora. Suponho que a “história” tenha refletido os estilos dos vários escritores que admirei em diferentes épocas, mas, tanto quanto me lembro, tinha sempre a mesma qualidade descritiva meticulosa.
Por volta dos dezesseis anos, de repente descobri o prazer das meras palavras, quer dizer, dos sons e associações de palavras. Os versos de Paraíso perdido [Livro ii, vs. 1021-2], de John Milton,

Ele então com dificuldade e dura labuta
Prosseguiu: com dificuldade e labuta ele,

que hoje não me parecem tão maravilhosos, deram-me um calafrio na espinha; e a grafia hee em vez de he era um prazer a mais. Quanto à necessidade de descrever coisas, eu já sabia tudo a respeito. Está claro, portanto, o tipo de livro que eu queria escrever, até onde se pode dizer que eu queria escrever livros naquela época. Queria escrever romances naturalistas imensos com finais infelizes, cheios de descrições detalhadas e de símiles impressionantes, e também cheios de passagens floreadas em que as palavras fossem usadas em parte por causa do som. De fato, o primeiro romance que concluí, Burmese days [Dias birmaneses], escrito aos trinta anos, mas planejado muito antes, é bem esse tipo de livro.
Forneço todos esses antecedentes porque acho que não se pode avaliar o que move um escritor sem uma noção de seu desenvolvimento inicial. O assunto será determinado pela época em que ele vive — isso é verdade ao menos em épocas tumultuosas e revolucionárias como a nossa —, mas antes de começar a escrever ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual jamais se livrará de todo. A tarefa é, sem dúvida, disciplinar o temperamento e evitar ficar empacado em alguma etapa imatura ou em algum estado de ânimo perverso: mas, se se livrar completamente das influências iniciais, terá aniquilado o impulso para escrever. Pondo de lado a necessidade da subsistência, creio que há quatro grandes motivos para escrever, ao menos para escrever prosa. Eles existem em diferentes graus em cada escritor, e num dado escritor as proporções variarão de quando em quando, conforme a atmosfera em que ele vive. São eles:
1. Puro egoísmo. O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de se desforrar de adultos que o desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade fazer de conta que este não é um motivo, e um motivo forte. Escritores compartilham esta característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, homens de negócios bem-sucedidos — em suma, toda a camada superior da humanidade. A grande massa de seres humanos não tem um egoísmo agudo. Mais ou menos depois dos trinta, abandonam a ambição individual — em muitos casos, de fato, quase abandonam inteiramente a noção de serem indivíduos — e vivem sobretudo para os outros, ou simplesmente se deixam sufocar pelo trabalho enfadonho. Mas também existe a minoria de pessoas talentosas e obstinadas decididas a viver a vida até o fim, e os escritores pertencem a essa classe. Devo dizer que escritores sérios são, de modo geral, mais vaidosos e egocêntricos do que jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo ou, de outro lado, nas palavras e em seu arranjo correto. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza de uma boa prosa ou no ritmo de uma boa história. O desejo de compartilhar uma experiência é valioso e não se deve deixar escapar. O motivo estético é muito débil numa porção de escritores, mas mesmo um panfleteiro ou um escritor de livros didáticos terá palavras e frases prediletas que lhe agradam por razões não utilitárias; ou terá preferências por tipografia, largura de margens e assim por diante. Acima do nível de um guia ferroviário, nenhum livro está inteiramente isento de considerações estéticas.
3. Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como elas são, de encontrar fatos verídicos e guardá-los para o uso da posteridade.
4. Propósito político — a palavra “político” entendida aqui em seu sentido mais amplo. O desejo de lançar o mundo em determinada direção, de mudar as idéias das pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar para alcançar. Também neste caso ninguém está verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude política.
Pode-se perceber como esses diferentes impulsos são antagônicos e variam de pessoa para pessoa, de época para época. Por natureza — considerando “natureza” o estado a que se chega quando se fica adulto —, sou uma pessoa para quem os três primeiros têm mais importância do que o quarto. Numa época de paz, poderia ter escrito livros floreados ou meramente descritivos e ficado quase alheio a minhas lealdades políticas. De qualquer forma, fui forçado a me tornar uma espécie de panfleteiro. Primeiro, passei cinco anos numa profissão inadequada (na Polícia Imperial Indiana, na Birmânia), depois agüentei a pobreza e a sensação de fracasso. Isso aumentou minha aversão natural à autoridade e me fez ficar pela primeira vez totalmente consciente da existência das classes trabalhadoras, e o trabalho na Birmânia me dera um entendimento da natureza do imperialismo: mas essas experiências não bastaram para me dar uma orientação política precisa. Depois veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola etc. Ao fim de 1935, ainda não tinha conseguido chegar a uma decisão firme. Lembro-me de um poemeto que escrevi nessa ocasião, expressando meu dilema:

Feliz pároco eu teria sido
Duzentos anos atrás,
Para pregar a condenação eterna
E observar a nogueira crescer,
Mas nascido, ai!, em tempos ruins,
Perdi aquele paraíso aprazível,
Pois a penugem cresceu no lábio superior
E clérigos são todos bem escanhoados.
E mais tarde os tempos foram bons,
Éramos fáceis de agradar,
Embalávamos os problemas no sono
No aconchego das árvores.
Todos ignorantes, ousamos possuir
As alegrias que agora simulamos;
O tentilhão esverdeado no ramo da macieira
Podia fazer estremecer meus inimigos.
Mas ventres de moças e damascos,
Baratas num regato à sombra,
Cavalos, patos em voo no amanhecer,
Tudo isso é sonho.
É proibido voltar a sonhar;
Mutilamos nossas alegrias ou as ocultamos;
Cavalos são feitos de aço-cromo
E homenzinhos gordos os cavalgarão.
Sou o verme que nunca mudou,
O eunuco sem harém;
Entre o padre e o comissário,
Caminho como Eugene Aram;
E o comissário lê minha sorte
Enquanto o rádio toca música,
Mas o padre prometeu um Austin Seven,
Pois Duggie sempre paga.
Sonhei que habitava salões de mármore
E ao acordar vi que era verdade;
Não nasci para uma época como esta;
Era Smith? Era Jones? Era você?

A Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos em 1936-7 pesaram na balança, e a partir de então eu soube me situar. Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrata, da forma que eu o entendo. Parece-me absurdo, num período como o nosso, pensar que se pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todo mundo escreve sobre eles de uma forma ou de outra. É apenas uma questão de que lado tomar e de que abordagem adotar. Quanto mais ciente se está de uma tendência política, mais oportunidade se tem de atuar politicamente, sem sacrificar a estética e a integridade intelectual.
O que mais desejei fazer nos últimos dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: “Vou produzir uma obra de arte”. Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética. Quem se dispuser a examinar meu trabalho perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na infância, nem quero. Enquanto viver e estiver com saúde, continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos arraigados com as atividades essencialmente públicas, não individuais, que esta época impõe a todos nós.
Não é fácil. Suscita problemas de construção e de linguagem e, de uma nova maneira, o problema da veracidade. Darei apenas um exemplo do tipo mais grosseiro de dificuldade que surge. Meu livro sobre a Guerra Civil Espanhola, Homage to Catalonia [Homenagem à Catalunha], é, claro, abertamente político, mas a maior parte dele foi escrita com algum distanciamento e preocupação com a forma. Empenhei-me muito em contar toda a verdade sem violar meus instintos literários. Mas entre outras coisas o livro contém um longo capítulo, repleto de citações de jornais e coisas do gênero, que defende trotskistas acusados de tramar com Franco. Sem dúvida um capítulo assim, que após um ou dois anos perderia o interesse para qualquer leitor comum, deve arruinar o livro. Um crítico que respeito me passou um sermão sobre isso. “Por que incluiu todo esse material?”, perguntou. “Transformou em jornalismo o que poderia ter sido um bom livro.” O que ele disse era verdade, mas eu não poderia ter feito de outra maneira. Ocorreu que eu sabia o que poucas pessoas na Inglaterra tiveram a oportunidade de saber: que homens inocentes estavam sendo falsamente acusados. Se não estivesse revoltado com isso, jamais teria escrito o livro.
De um modo ou de outro, esse problema reaparece. O problema da linguagem é mais sutil, e sua discussão seria mais demorada. Direi apenas que nos últimos anos procurei escrever de forma menos pitoresca e com mais exatidão. De qualquer maneira, creio que na hora em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero escrever outro muito em breve. Será fatalmente um fracasso, todo livro é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que pretendo escrever.
Reexaminando as duas últimas páginas, mais ou menos, noto que fiz parecer que meus motivos para escrever estiveram todos voltados à causa pública. Não quero que seja essa a impressão definitiva. Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender. Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.
Gangrel, 1946.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios