segunda-feira, 30 de setembro de 2024

As estrelas que nós amamos

Houve um tempo em que todo rapaz normal era apaixonado por uma estrela de cinema e toda moça era vidrada num ator. Em geral a pessoa tinha duas ou três paixões, além de vários amores mais ou menos veementes.
Um sujeito achava sublime Greta Garbo, mas estava seduzido por Marlene Dietrich, embora enganasse as duas vez ou outra com Katherine Hepburn ou Loretta Young. A namorada ou mulher dele não escondia sua paixão por Gary Cooper, mas achava irresistível a covinha do sorriso de Clark Gable, o ar maduro de Ronald Colman ou a cara feia de Humphrey Bogart.
Isto tudo é do bom tempo do estrelismo e do absoluto domínio do cinema americano.
Muitas gerações de brasileiros, inclusive do mais remoto interior, aprenderam a pentear os cabelos, a fumar, beijar, sorrir, fazer caras tristes ou alegres ou apaixonadas ou desgostosas com os astros americanos. Tive uma namorada que no dia seguinte — exatamente no dia seguinte — à estréia de Casablanca, no Rio, me apareceu com o mesmo vestido de Ingrid Bergman — falando, sorrindo, fazendo olhares e silêncios absolutamente iguais.
E você não ficou meio enjoado dela? — perguntará o leitor ignaro.
E eu lhe direi que não. Amei as duas e fui feliz.
Juntarei que naquele tempo era mais magro e desde o dia que alguém me achou parecido com James Stewart eu fiquei meses fazendo cara de James Stewart.
Até que amigos impiedosos me disseram que eu parecia mesmo era com o Sobral Pinto ou com o Samuel Wainer — dois tipos estimáveis, mas...
Hoje em dia a gente se interessa mais pelas estrelas da televisão. São divinas. Jamais chegarão, entretanto, a ser amadas como aquelas do cinema. É verdade que nunca houve no elenco nacional algo parecido com a Brigitte Bardot, a Marilyn Monroe ou a Sophia Loren dos dourados tempos.
Mas também é verdade que o produto nacional tem melhorado muito. Vejam, aqui em Ipanema, as jovens panteras que se esticam na areia. São, francamente, mulheres melhores do que merecemos — mulheres, digamos assim, superiores às nossas forças. Não, a diferença não está nas damas, está na mídia, como dizem os bravos rapazes da publicidade.
Vou dar um exemplo: Dina Sfat. Vi-a pela primeira vez há uns doze ou treze anos atrás no filme Macunaíma, de Joaquim Pedro. Era uma guerrilheira de arma em punho e ao mesmo tempo Cy, a Lua. Vestia-se negramente de couro, ou algo parecido, mas estava pouco vestida em uma cena de amor inesquecível, dentro de um elevador que subia. Vidrei. Guardei no fundo do peito o nome da fantástica deusa. Ela apareceu depois em algumas novelas; foi por exemplo a Maria Zarolha de Gabriela e a Chica Martins de Fogo Sobre Terra. Por motivo de viagens e desencontro de horário, não acompanhei nenhuma dessas novelas; via apenas um capítulo ou outro. Mulher divina! Mas aí ela fez a Paloma de Os Gigantes, e eu vi praticamente a novela inteira. Toda noite era aquela mulher metida dentro de minha casa a suspirar, hesitando entre o Cuoco e o Tarcísio. Muito bonita, muito interessante, mas, toda noite! Toda noite! Não, a deusa não pode ser quotidiana; deusa a gente vê no máximo duas vezes por ano. A rotina envenena tudo, e a deusa de novela tem, além de seu horário implacável, aqueles pequenos anúncios, as “chamadas”.
Confesso que senti um certo alívio quando a Paloma se matou em um avião. Já não aguentava mais nem o seu penteado que, por sinal, milhares de mulheres em todo o Brasil se puseram a imitar: “Faça igualzinho à Paloma, tá?”
Dina Sfat continua a ser, naturalmente, uma esplêndida figura de mulher, e creio até que a maturidade lhe deu um novo e suave encanto. Deus guarde Dina Sfat. Mas Paloma — não!

Rubem Braga, em Recado de primavera

A Contadora de Filmes | [39]


Quando a televisão chegou, fazia uma semana que tinham levado meu irmão para a cadeia.
Certa manhã de segunda-feira, quando eu já começava a me perguntar por que ninguém da companhia mineradora vinha me comunicar que eu devia entregar a casa, apareceu o rosto vermelho do senhor administrador, emoldurado na janela.
Embora no deserto o sol jorre quase todos os dias do ano, aquela era uma dessas raras manhãs nubladas. Naquela altura eu já tinha claro que as coisas ruins me aconteciam em dias nublados. Se fosse verdade que “as aranhas só tecem em dias nublados”, como dizia meu pai que sua avó repetia sempre, minha má sorte viria a ser uma espécie de aranha das mais laboriosas.
Quando o gringo pôs a cara na janela e me chamou com seu cômico sotaque estrangeiro, eu tinha posto o vestido da minha mãe, o rendado de bolinhas vermelhas que papai odiava tanto e que em mim já ficava perfeito.
Falei para ele entrar.
Entrou me olhando do mesmo jeito que tinha me olhado no cemitério. Com aquele mesmo brilhozinho que vi nos olhos do agiota quando eu, toda boba, sentada em seus joelhos contava o filme para ele. Mas o senhor administrador tinha melhor estampa que o velho roto do agiota. E tinha os olhos azuis. As pessoas diziam que era um gringo simpático.
Usava chapéu panamá.
Fumava cachimbo.
Falava um espanhol que fazia rir.
Também se falava que era casado quando chegou por estes pagos, mas que a mulher preferiu voltar para seu país quando viu a insuportável paisagem do deserto de Atacama. “Aqui as mulheres se transformam em estátuas de sal”, dizem que ela falou.
O senhor administrador me perguntou se eu sabia que precisava entregar a casa.
Eu disse que sim.
Ele me perguntou se eu tinha para onde ir.
Eu disse que não.
Ele me perguntou se eu queria ficar.
Eu disse que sim.
Ele me perguntou se eu sabia fazer alguma outra coisa além de contar filmes.
Eu disse que não.
Então ele ficou me olhando. Sabido. Como se olhasse um cavalo de corrida.
Depois, deu uma pensativa tragada em seu cachimbo e começou a passear recortado contra a parede branca onde eu contava meus filmes. Comecei a observá-lo em silêncio. Quando parou e, com a mão no queixo tornou a me olhar, recordei – pelo seu gesto de pôr a mão no queixo – tê-lo visto em casa uma vez, falando com a minha mãe. Aquilo foi nos tempos em que meu pai ainda trabalhava.
Vamos ver o que se pode fazer por você, mocinha”, disse ele enfim.
A questão é que terminei trabalhando de empacotadora no armazém durante o dia e, durante as noites, dormindo nos braços do senhor administrador.
Embora não estivéssemos no campo, e aqui não fosse costume, eu tinha catorze anos e o gringo, cinquenta e um.

Hernán Rivera Letelier, em A Contadora de Filmes

Esta nossa mania

Esta nossa mania de pronunciar corretamente os nomes estrangeiros... O diabo é que, para acertar por palpite, só não os pronunciamos como está escrito. Em 35, no Rio, um sueco, meu companheiro de pensão, me garantiu que Nobel lá se diz Nobél mesmo e não aqui como nestes Brasis: o Prêmio Nóbel, a Coleção Nóbel. Em contrapartida, os estrangeiros não se dão ao mesmo trabalho conosco. Não, não estou me queixando... Eu até gozava imenso um amigo francês que me chamou imperturbavelmente de “Messiê Quintaná” anos a fio, até que um de nós morreu. Era um excelente homem: deve estar no Paraísô.

Mário Quintana, em Caderno H

Esplendor e declínio da rapadura

Os meninos cariocas e paulistas
de alta prosopopeia
nunca tinham comido rapadura.
Provam com repugnância
o naco oferecido pelo mineiro.
Pedem mais.
Mais.
Ao acabar, há um pequeno tumulto.

Daí por diante todos encomendam
rapadura.
Fazem-se negócios em torno de rapadura.
Há furtos de rapadura.
Conflitos por causa de rapadura.

Até que o garoto de Botafogo parte um dente
da cristalina coleção que Deus lhe deu
e a rapadura é proscrita
como abominável invenção de mineiros.

Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo – Esquecer para lembrar

Escrever para não enlouquecer

 



[Para Judson Crews]
4 de novembro de 1953

Vou ser sincero com você. Dá no mesmo se você ficar com esses poemas por quanto tempo quiser, porque quando mandá-los de volta eu vou simplesmente jogá-los fora.
Com exceção dos novos em cima, esses poemas foram rejeitados pela revista Poetry e por um empreendimento novo, Embryo. Comentários favoráveis etc., mas eles acham que o meu material não é poesia. Eu sei o que eles querem dizer. A ideia está lá, mas não consigo romper a couraça da pele. Não consigo fazer a sintonia. Não tenho interesse por poesia. Não sei o que me interessa. O avesso do embotamento, suponho. A poesia propriamente dita é poesia morta, mesmo quando tem aparência boa.
Fique com essas coisas por quanto tempo desejar. Você é o único que mostrou interesse. Se eu fizer mais, mando tudo para você.

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

O Impressionismo de Monet

The Undergrowth in the Forest of Saint-Germain (1882), de Claude Monet

Os Nascimentos | 1544 – Lima

Carvajal

As luzes do amanhecer dão forma e rosto às sombras penduradas nos faróis da praça. Algum madrugador, espantado, as reconhece: dois conquistadores de primeira hora, daqueles que capturaram o Inca Atahualpa em Catamarca, balançam com a língua de fora e os olhos arregalados.
Soar de tambores, estrépito de cavalos: a cidade desperta de um salto. Grita o pregoeiro com toda força e ao seu lado Francisco de Carvajal dita e escuta. O pregoeiro anuncia que todos os senhores principais de Lima serão enforcados como esses dois, e não ficará pedra sobre pedra, se o cabildo não aceitar como governador Gonzalo Pizarro. O general Carvajal, comandante de campo das tropas rebeldes, dá de prazo até o meio-dia.
Carvajal!
Antes que se apague o eco, já os auditores da Real Audiência e os notáveis de Lima vestiram alguma roupa e meio desabotoados chegaram correndo até o palácio e estão assinando, sem discussão, a ata que reconhece Gonzalo Pizarro como autoridade única e absoluta.
Falta apenas a assinatura do advogado Zárate, que acaricia o próprio pescoço e duvida enquanto os demais esperam, atordoados, tremelicantes, escutando ou pensando escutar e resfolegar dos cavalos e a maldições dos soldados que tomam campo, com as rédeas curtas, ansiosos por desembestar.
Depressa! – suplicam.
Zárate pensa que deixa um bom dote à sua filha casadeira, Teresa, e que suas quantiosas oferendas à Igreja pagaram de sobra outra vida mais serena que esta.
Que espera vosmecê?
Curta é a paciência de Carvajal!
Carvajal: mais de trinta anos de guerras na Europa, dez na América. Bateu-se em Ravena e em Pávia. Esteve no saqueio de Roma. Lutou ao lado de Cortez no México e no Peru junto a Francisco Pizarro. Seis vezes atravessou a cordilheira.
O demônio dos Andes!
No meio da batalha, sabe-se, o gigante joga fora o elmo e a couraça e oferece o peito. Come e dorme em cima de seu cavalo.
Calma, senhores, calma!
Correrá sangue de inocentes!
Não há tempo para perder!
A sombra da forca se fecha sobre os recém-comprados títulos de nobreza.
Assinai, senhor! Evitemos ao Peru novas tragédias!
O advogado Zárate molha a pluma de ganso, desenha uma cruz e embaixo, antes de assinar, escreve: Juro por Deus e por esta Cruz e pelas palavras dos Santos Evangelhos, que assino por três motivos: por modo, por medo e por medo.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

A Revolução dos Bichos


1.

O sr. Jones, dono da Granja do Solar, fechou o galinheiro para a noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias. Com o facho de luz da lanterna balançando de um lado para o outro, atravessou cambaleante o pátio, tirou as botas na porta dos fundos, tomou um último copo de cerveja do barril da copa e foi para a cama, onde sua mulher já ressonava.
Tão logo apagou-se a luz do quarto, houve um silencioso movimento em todos os galpões da granja. Correra, durante o dia, o boato de que o velho Major, um porco que já fora premiado numa exposição, tivera um sonho muito estranho na noite anterior e desejava contá-lo aos outros animais. Haviam combinado encontrar-se no celeiro, assim que Jones se deitasse. O velho Major (chamavam-no assim, muito embora ele houvesse concorrido na exposição com o nome de “Belo de Willingdon”) gozava de tão alto conceito na granja que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono só para ouvi-lo.
Ao fundo do grande celeiro, sobre uma espécie de estrado, estava o Major refestelado em sua cama de palha, sob um lampião que pendia da viga. Com doze anos de idade, já bem corpulento, era ainda um porco de porte majestoso, com ar sábio e benevolente, a despeito de suas presas jamais terem sido cortadas. Os outros animais chegavam e punham-se a cômodo, cada qual a seu modo. Os primeiros foram os três cachorros, Branca, Lulu e Cata-Vento, depois os porcos, que se sentaram sobre a palha, em frente ao estrado. As galinhas empoleiraram-se nas janelas, as pombas voaram para os caibros do telhado, as ovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos porcos e ali ficaram a ruminar. Os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria, chegaram juntos, andando lentamente e pousando no chão os enormes cascos peludos, com grande cuidado para não machucar qualquer animalzinho porventura oculto na palha. Quitéria era uma égua volumosa, matronal, já chegada à meia-idade, cuja silhueta não mais se recompusera após o nascimento do quarto potrinho. Sansão era um bicho enorme, de quase um metro e noventa de altura, forte como dois cavalos. A mancha branca do focinho dava-lhe certo ar de estupidez, e realmente ele não tinha lá uma inteligência de primeira ordem, embora fosse grandemente respeitado pela retidão de caráter e pela tremenda capacidade de trabalho. Depois dos cavalos chegaram Maricota, a cabra branca, e Benjamim, o burro. Benjamim era o animal mais idoso da fazenda, e o mais moderado. Raras vezes falava, e em geral quando o fazia era para emitir uma observação cínica — para dizer, por exemplo, que Deus lhe dera uma cauda para espantar as moscas, e no entanto seria mais do seu agrado não ter nem a cauda nem as moscas. Era o único dos animais que nunca ria. Quando lhe perguntavam por quê, respondia não ver motivo para riso. Não obstante, sem que admitisse abertamente, tinha certa afeição por Sansão; com frequência passavam os domingos juntos no pequeno potreiro existente atrás do pomar, pastando lado a lado em silêncio.
Mal se haviam acomodado os dois cavalos quando uma ninhada de patinhos órfãos desfilou celeiro adentro, piando baixinho e procurando um lugar onde não fossem pisoteados. Quitéria protegeu-os com a pata dianteira, e os patinhos ali se aconchegaram, caindo no sono. No último instante, Mimosa, a égua branca, vaidosa e fútil, que puxava a charrete do sr. Jones, entrou, requebrando-se graciosamente e mastigando um torrão de açúcar. Tomou lugar bem à frente e ficou meneando a crina branca, na esperança de chamar atenção para as fitas vermelhas que a adornavam. Por fim, chegou a gata, que buscou, como sempre, o lugar mais morno, enfiando-se entre Sansão e Quitéria; ronronou satisfeita durante toda a fala do Major, sem ouvir uma só palavra.
Todos os animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo domesticado, que dormia fora, num poleiro junto à porta dos fundos. Quando o Major os viu, bem acomodados e aguardando atentamente, limpou a garganta e começou:
Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a respeito do estranho sonho que tive a noite passada. Mas falarei do sonho mais tarde. Antes, tenho outras coisas a dizer. Sei, camaradas, que não estarei convosco por muito mais tempo, e antes de morrer considero uma obrigação transmitir-vos o que aprendi sobre o mundo. Já vivi bastante, e muito tenho refletido na solidão da minha pocilga. Creio poder afirmar que compreendo a natureza da vida sobre esta terra tão bem quanto qualquer outro animal vivente. É sobre o que desejo vos falar.
Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar são exigidos até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal na Inglaterra sabe o que é felicidade ou lazer após completar um ano de vida. Nenhum animal na Inglaterra é livre. A vida do animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua.
Será isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta nossa terra tão pobre que não ofereça condições de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima é bom, ela pode dar alimento em abundância a um número de animais muitíssimo maior do que o existente. Só esta nossa fazenda comportaria uma dúzia de cavalos, umas vinte vacas, centenas de ovelhas — vivendo todos num conforto e com uma dignidade que agora estão além de nossa imaginação. Por que, então, permanecemos nesta miséria? Porque quase todo o produto do nosso esforço nos é roubado pelos seres humanos. Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se em uma só palavra — Homem. O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.
O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza, e no entanto nenhum de nós possui mais que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à minha frente, quantos litros de leite terão produzido neste ano? E que aconteceu a esse leite, que poderia estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela garganta dos nossos inimigos. E as galinhas, quantos ovos puseram neste ano, e quantos se transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado, fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, diga-me onde estão os quatro potrinhos que deveriam ser o apoio e o prazer da sua velhice. Foram vendidos com a idade de um ano — nunca mais você os verá. Como paga por seus quatro partos e por todo o seu trabalho no campo, que recebeu você, além de ração e baia?
Mesmo miserável como é, nossa vida não chega nem ao fim de modo natural. Não me queixo por mim, que tive até muita sorte. Estou com doze anos e sou pai de mais de quatrocentos porcos. Isto é a vida normal de um barrão. Mas no fim nenhum animal escapa ao cutelo. Vós, jovens leitões que estais sentados à minha frente, não escapareis de guinchar no cepo dentro de um ano. Todos chegaremos a esse horror, as vacas, os porcos, as galinhas, as ovelhas, todos. Nem mesmo os cavalos e os cachorros escapam a esse destino. Sansão, no dia em que seus músculos fortes perderem a rigidez, Jones o mandará para o carniceiro, e você será degolado e fervido para alimentar os cães de caça. Quanto aos cachorros, depois de velhos e desdentados, Jones amarra-lhes uma pedra ao pescoço e os atira na primeira lagoa.
Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa existência têm origem na tirania dos humanos? Basta que nos livremos do Homem para que o produto de nosso trabalho seja só nosso. Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, então? Trabalhar dia e noite, de corpo e alma, para a derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem que eu vos trago, camaradas: rebelião! Não sei dizer quando será esta revolução, pode ser daqui a uma semana ou daqui a um século, mas uma coisa eu sei, tão certo quanto vejo esta palha sob meus pés: mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Fixai isso, camaradas, para o resto de vossas curtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta minha mensagem aos que virão depois de vós, para que as futuras gerações continuem na luta até a vitória.“E lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa decisão. Nenhum argumento vos poderá desviar. Fechai os ouvidos quando vos disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O Homem não busca interesses que não os dele próprio. Que haja entre nós, animais, uma perfeita unidade, uma perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos, todos os animais são camaradas.”Nesse momento houve uma tremenda confusão. Enquanto o Major falava, quatro ratos haviam rastejado para fora de seus buracos e estavam sentados nas patinhas de trás, a ouvi-lo. De repente, os cachorros lhes deram pela presença, e somente pela rapidez com que sumiram nos buracos foi que os ratos conseguiram escapar com vida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.“Camaradas”, disse ele, “eis aí um ponto que precisa ser esclarecido. As criaturas rebeldes, tais como os ratos e os coelhos, serão nossos amigos ou nossos inimigos? Coloquemos o assunto em votação. Apresento à assembleia a seguinte questão: são os ratos camaradas?”A votação foi realizada imediatamente, e concluiu-se, por esmagadora maioria, que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos contra, dos três cachorros e da gata, que, depois se descobriu, votara pelos dois lados. O Major prosseguiu:“Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos sempre do vosso dever de inimizade para com o Homem e todos os seus desígnios. O que quer que ande sobre duas pernas é inimigo, o que quer que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo. Lembrai-vos também de que na luta contra o Homem não devemos ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. Animal nenhum deve morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem comerciar. Todos os hábitos do Homem são maus. E principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais são iguais.“E agora, camaradas, vou contar-vos o sonho que tive na noite passada. Não sei o que significa. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o Homem desaparecer. Mas lembrou-me algo que havia muito eu esquecera. Há anos, quando eu ainda era um leitãozinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma antiga canção da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Na minha infância aprendi a melodia, depois a esqueci. Na noite passada, entretanto, ela me voltou à memória. O mais interessante é que me lembrei também dos versos — os quais, tenho certeza, foram cantados pelos animais de antanho, depois esquecidos por muitas gerações. Vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho, e minha voz é rouca, mas quando vos houver ensinado a melodia, podereis cantá-la melhor que eu. Chama-se ‘Bichos da Inglaterra’.”O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. De fato, a voz era roufenha, mas ele entoava bem, e a melodia era bastante movimentada, algo entre “Clementine” e “La cucaracha”. Os versos diziam:

Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Escutai a alvissareira
Novidade que virá.
Mais hoje, mais amanhã,
O Tirano vem ao chão,
E os campos da Inglaterra
Só os bichos pisarão.
Não mais argolas nas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freio e espora enferrujando
E relho em cantos alheios.
Riqueza incomensurável,
Terra boa, muito grão,
Trigo, cevada e aveia,
Pastagem, feno e feijão.
Lindos campos da Inglaterra,
Ribeiros com águas puras,
Brisas leves circulando,
Liberdade nas alturas.
Lutemos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida.
Gansos, vacas e cavalos,
Todos unidos na lida.
Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Levai esta minha mensagem
E o futuro sorrirá.

O canto levou a bicharada à mais extrema excitação. Mesmo antes de o Major chegar ao fim, já haviam começado a cantar por conta própria. Até os mais parvos pegaram a melodia e algumas palavras; os mais vivos, tais como os porcos e os cachorros, decoraram a canção em minutos. Então, depois de algumas tentativas, a granja toda atacou “Bichos da Inglaterra” em potente uníssono. As vacas mugiam a canção, os cachorros latiam, as ovelhas baliam, os cavalos relinchavam, os patos grasnavam. Foi tal o enlevo que cantaram cinco vezes corridas, de ponta a ponta, e teriam cantado a noite toda se não fossem interrompidos.
Infelizmente, o alarido acordou Jones, que pulou da cama certo de que havia raposa no pátio. Deitou a mão na espingarda, sempre pronta num canto do quarto, e disparou uma carga de chumbo grosso na escuridão. O chumbo foi encravar-se na parede do celeiro, e a reunião dispersou-se num abrir e fechar de olhos. Cada qual correu para seu pouso. As aves saltaram para os poleiros, o gado deitou-se na palha e, em poucos instantes, toda a fazenda dormia.

George Orwell, em A Revolução dos Bichos

O segredo

Há uma palavra que pertence a um reino que me deixa muda de horror. Não espantes o nosso mundo, não empurres com a palavra incauta o nosso barco para sempre ao mar. Temo que depois da palavra tocada fiquemos puros demais. Que faríamos de nossa vida pura? Deixa o céu à esperança apenas, com os dedos trêmulos cerro os teus lábios, não a digas. Há tanto tempo eu de medo a escondo que esqueci que a desconheço, e dela fiz meu segredo mortal.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu ?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa, em Antologia Poética

Tio João Gordo

A madrugada estava justo acabando, mas eu já estava de pé, pronto, de café tomado, à espera. A ansiedade era demais. Tio João Gordo, um homem muito magro, de fala mansa, meio rouca, ia me levar à fazenda. Chegou ele a cavalo puxando um outro, que seria o meu. Cheiro bom de cavalo, mistura de suor, couro de arreio e o cheiro próprio dos cavalos. Todo bicho tem cheiro próprio, até os humanos. Mas cheiro próprio de cavalo é melhor que cheiro próprio de humano, como afirmou com justiça um presidente da República. E lá fomos os dois, o tio João Gordo nos seus sessenta anos e eu nos meus sete. Friozinho, o ar esbranquiçado de neblina, ninguém na rua, a cidade ainda não havia despertado para fora, estava despertando para dentro e prova disso eram a chaminés dos fogões de lenha soltando fumaça, sinal de que estavam acesos e de que o café estava sendo coado. Só o barulho das ferraduras batendo pontudas nas pedras e algum canto de galo, a gente não falava, acho que para não perturbar o silêncio, aí o bater pontudo das ferraduras ficou macio, surdo, tínhamos saído da cidade, estávamos na estrada de terra. De cima do morro se via a várzea esbranquiçada de neblina lá embaixo. Aí o tio João Gordo fez um sinal, apontou para a direita, uma trilha no meio do pasto, embicou o cavalo e eu fui seguindo. O silêncio tinha o perfume de capim gordura e a música da água de um riachinho que nem se via, coberto que estava pelo capim, só se adivinhava que ele existia por causa do barulho da água, os grilos arranhavam seus últimos cantos antes que chegasse a sua noite com o nascer do sol, uma garça planou, os cavalos saltaram o riozinho, foi um susto, eu não estava esperando o pulo, quase caí, mas não caí, e lá fomos nós até que a neblina nos cobriu. E quem olhasse do alto do morro não adivinharia que invisíveis no branco da neblina iam um homem sem surpresas, curtido pelos pastos e cavalos, e um menino que não sabia nada e estava encantado com a beleza do mundo…

Rubem Alves, em O Velho que Acordou Menino

Confissões de um resenhista


Num apartamento conjugado frio, mas abafado, cheio de pontas de cigarro e xícaras de chá pela metade, um homem de roupão surrado está sentado a uma mesa bamba, tentando achar espaço para a máquina de escrever entre as pilhas de papéis empoeirados que a rodeiam. Não pode jogar os papéis fora porque a cesta de lixo já está transbordando, e, além disso, em algum lugar entre as cartas não respondidas e as contas não pagas, é possível que haja um cheque no valor de dois guinéus que ele quase com certeza esqueceu de depositar no banco. Há ainda cartas com endereços que ele tem de passar para a agenda. Perdeu a agenda, e pensar em procurá-la, ou mesmo em procurar qualquer coisa, aflige-o com impulsos suicidas agudos.
É um homem de trinta e cinco anos, mas aparenta cinquenta. É calvo, tem varizes e usa óculos, ou os usaria se o único par não estivesse perdido o tempo todo. Se as coisas estiverem normais com ele, ele está sofrendo de subnutrição, mas se recentemente teve um período de sorte, está sofrendo de ressaca. No momento são onze e meia da manhã, e de acordo com os planos ele deveria ter começado a trabalhar duas horas atrás; mas mesmo que tivesse feito algum esforço sério para começar, teria se frustrado com os quase contínuos toques do telefone, os berros do bebê, o estrépito de uma perfuradora elétrica na rua e o ressoar dos sapatos pesados de seus credores subindo e descendo a escada. A interrupção mais recente foi a segunda entrega de correspondência, que lhe trouxe duas circulares e uma cobrança do imposto de renda impressa em vermelho.
Desnecessário dizer que essa pessoa é um escritor. Poderia ser um poeta, um romancista ou um escritor de roteiros para cinema ou programas de rádio, porque todos os literatos são bastante semelhantes, mas digamos que ele seja um resenhista literário. Meio escondido entre as pilhas de papéis está um opulento pacote contendo cinco volumes mandados por seu editor junto com um bilhete em que sugere que “formam um bom conjunto”. Chegaram há quatro dias, mas por quarenta e oito horas a paralisia moral impediu o resenhista de abrir o pacote. Ontem, num momento de decisão, ele arrancou o barbante e constatou que os cinco volumes eram Palestine at the cross roads [Palestina nas encruzilhadas], Scientific dairy farming [A fazenda de leite científica], A short history of European democracy [Breve história da democracia européia](este com 680 páginas e quase dois quilos), Tribal customs in Portuguese east Africa [Costumes tribais na África portuguesa do leste] e um romance, It’s nicer lying down [Melhor quando deitados], provavelmente incluído por engano. A resenha — de oitocentas palavras, digamos — tem de estar “lá” até o meio-dia de amanhã.
Três desses livros tratam de assuntos que ele desconhece de tal maneira que terá de ler ao menos cinquenta páginas, se quiser evitar algum disparate que o denuncie não só para o autor (que, é claro, conhece todos os hábitos de um resenhista) como até mesmo para o leitor em geral. Às quatro da tarde terá tirado o papel que embrulhava os livros, mas ainda estará sofrendo de uma incapacidade nervosa para abri-los. A perspectiva de precisar lê-los, e até o cheiro do papel, abala-o tanto quanto a perspectiva de comer pudim de arroz frio temperado com óleo de rícino. E no entanto, curiosamente, seu texto chegará à redação na hora. De alguma maneira sempre chega lá na hora. Por volta das nove da noite, sua cabeça estará de certa forma mais clara e até a madrugada ele ficará sentado num cômodo que se torna cada vez mais frio, enquanto a fumaça de cigarro se torna cada vez mais densa, passando habilmente de um livro para outro e pondo cada um de lado com um comentário conclusivo: “Meu Deus, que porcaria!”. De manhã, com a vista inflamada, mal-humorado e barba por fazer, fitará uma folha de papel em branco por uma ou duas horas até que, assustado com o ponteiro ameaçador do relógio, entrará em ação. Então, de repente, dá-lhe um estalo. Todas as velhas frases batidas — “um livro que ninguém deve perder”, “algo memorável em cada página”, “de especial valor são os capítulos que abordam” etc. etc. — encaixam-se em seus lugares num salto, como limalha de ferro obedecendo ao ímã, e a resenha terminará exatamente no tamanho certo e faltando cerca de três minutos para ser despachada. Enquanto isso, outro monte de livros heterogêneos e insossos terá chegado pelo correio. E assim vai. No entanto, com que grandes esperanças essa criatura oprimida e exasperada iniciou a carreira, há apenas alguns anos.
Pareço exagerar? Pergunto a qualquer resenhista regular — qualquer um que resenhe, digamos, um mínimo de cem livros por ano — se pode afirmar com honestidade que seus hábitos e caráter não são como os que descrevi. Todo escritor é bem esse tipo de pessoa, mas a resenha de livros indiscriminada e prolongada é uma tarefa exaustiva, irritante e excepcionalmente ingrata. Envolve não só elogiar a produção sem valor — embora envolva isso, como vou mostrar daqui a pouco — como inventar a todo tempo reações a livros em relação aos quais não se tem nenhum sentimento espontâneo. O resenhista, conquanto possa estar embotado, é profissionalmente interessado em livros e, dos milhares que aparecem todo ano, é quase certo que existam cinquenta ou cem sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte deles: é mais provável que consiga dois ou três. O resto de seu trabalho, por mais consciencioso que ele possa ser ao elogiar ou desaprovar, é em essência uma farsa. Ele desperdiça seu espírito imortal despejando-o na pia, meio litro por vez.
A grande maioria das resenhas oferece um relato inadequado e enganoso do livro que aborda. Desde a guerra, as editoras têm sido menos capazes do que antes de influenciar os editores dos suplementos literários e invocar um peã de louvores para cada livro que produzem, mas de outro lado o padrão da recensão caiu, devido à falta de espaço e a outros inconvenientes. Diante dos resultados, as pessoas às vezes sugerem que a solução reside em tirar a resenha de livros das mãos de escrevinhadores. Livros sobre assuntos especializados deveriam ser abordados por especialistas e, de outro lado, uma boa quantidade de resenhas, em especial de romances, poderia ser feita por amadores. Quase todo livro é capaz de provocar sentimentos apaixonados, mesmo que apenas uma aversão apaixonada, neste ou naquele leitor, cujas ideias sobre ele decerto valeriam mais do que as de um profissional entediado. Mas lamentavelmente, como todo editor sabe, é muito difícil organizar esse tipo de coisa. Na prática, o editor sempre se vê recorrendo de novo à sua equipe de escrevinhadores — os “fixos”, como os chama.
Nada disso é remediável enquanto se supuser que todo livro merece ser resenhado. É quase impossível mencionar livros a granel sem enaltecer de forma grosseira a grande maioria deles. Antes de se ter algum tipo de relação profissional com livros, não se descobre quão ruim é a maioria deles. Em bem mais do que nove entre dez casos, a única crítica objetivamente verdadeira seria: “Este livro não tem mérito”, enquanto a verdade sobre a reação do próprio resenhista provavelmente seria: “Este livro não me interessa de forma alguma, e não escreveria sobre ele a não ser que fosse pago para isso”. O público, entretanto, não pagará para ler esse tipo de coisa. Por que deveria? O público quer algum tipo de orientação para os livros que é convidado a ler, e quer algum tipo de avaliação. Mas assim que valores são mencionados, os padrões caem. Porque se alguém diz — e quase todo resenhista diz esse tipo de coisa ao menos uma vez por semana — que Rei Lear é uma boa peça e The four just men [Os quatro homens justos, de Edgar Wallace] é um bom thriller, o que significa a palavra “bom”?
Sempre me pareceu que a melhor prática seria simplesmente ignorar a grande maioria dos livros e dedicar resenhas bastante longas — mil palavras no mínimo — aos poucos que parecem importar. Notas breves de uma ou duas linhas sobre livros a serem lançados podem ser úteis, mas a habitual resenha de tamanho médio de cerca de seiscentas palavras está destinada a ser inútil, ainda que o resenhista deseje com toda a sinceridade escrevê-la. De modo geral ele não deseja escrevê-la, e a produção de excertos semana após semana logo o reduz à figura oprimida de roupão que descrevi no início deste artigo. No entanto, todos neste mundo têm alguém que podem desprezar, e devo dizer, com base em minha experiência nas duas atividades, que o crítico de livros está numa situação melhor que a do crítico de cinema, que não pode sequer fazer seu trabalho em casa, devendo comparecer a eventos promocionais às onze da manhã, e de quem se espera, com uma ou duas exceções notáveis, que venda sua honra por um copo de xerez ordinário.

George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios

O conde e o passarinho

Rubem Braga é, sabidamente, um conhecedor de passarinhos. Suas crônicas alegram-se e se entristecem com frequência de nomes de pássaros nacionais que eu só conheço de ouvir dizer – o que me dá um certo complexo de inferioridade. Já andei, certa vez, planejando estudar ornitologia por causa disto, e lembro-me de que na viagem que fiz com ele à sua Cachoeiro do Itapemirim, quando da homenagem que lhe prestou a cidade, foi com um sentimento de gula que recebi o maravilhoso disco de pios artificiais de passarinhos, feito pela família Coelho, que disso criou uma pequena indústria local. Tais projetos nunca foram adiante, como vários outros, entre os quais um de estudar carpintaria: e este, inclusive, concertado com o próprio Rubem – e que resultou em arrancarmos, ato contínuo, a porta da garagem da minha antiga casa, sairmos meia hora depois para matar o calor com uma cerveja gelada, e nunca mais voltarmos à dita porta, que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa impostura.
O Braga conhece bem sua passarada, isso ninguém lhe tira. O que não impede, porém, que tenha dado um “baixo” ornitológico que merece registro, segundo me conta minha irmã Lygia, testemunha ocular do mesmo. Pois o que se deduz da história é que o Braga pode conhecer muito bem tico-tico, curió, sanhaço, cardeal, tiê-sangue, sabiá, gaturamo, cambaxirra e até mesmo vira-bosta – mas em matéria de canário trata-se de um otário completo e acabado. Dito o quê, passemos à narrativa.
Parece que o Braga vinha um dia assim muito bem pela Cinelândia, quando topou com um vendedor de passarinho oferecendo a preço de ocasião um casal de canários dentro de uma gaiola cuja bossinha era ser dividida por uma separação levadiça em dois compartimentos, um para o macho, outro para a fêmea. A gracinha era abrir a portinhola do macho, deixá-lo fugir e depois vê-lo voltar docemente, no pio da fêmea.
O Braguinha, que além de gostar de pássaros não é tolo (imagina para quanta mulherzinha ele não ia poder fazer aquele truque!), assistiu com o maior interesse a mais essa demonstração de que, como diz o samba, o homem sem mulher não vale nada, entregou o dinheiro, meteu a gaiola debaixo do braço e tocou-se para o Leblon, sequioso de mostrar seu novo brinco ao aborígene. E deu-lhe a sorte de encontrar minha irmã Lygia, que além de ser uma esplêndida assistência para demonstrações desse teor, é pessoa mais de se apiedar que de caçoar da desdita alheia.
O Braga colocou a gaiola em posição, abriu a porta e lá se foi o canarinho pelo azul afora, em lindas evoluções. A fêmea, como previsto, abriu o bico e o canário, ao ouvi-la, fez direitinho como mandava o figurino: voltou e posou junto à porta aberta. Mas o divórcio entrou? Nem o canário. O bichinho ficou prudentemente à porta, mas entrar dentro mesmo da gaiola que é bom... ahn-ahn. O Braga animou a ave canora com milhões de piu-pius, fez-lhe mentalmente enérgicas perorações contra a sua calhordice – tudo isso, conta minha irmã Lygia, com olhos onde se começava a notar uma certa apreensão. O canário, nada.
Quem sabe, ponderou minha irmã, um elemento verde qualquer colocado junto à porta, uma folha de alface, por exemplo, não animaria o bichinho? Foi trazida a folha de alface e colocada junto à porta. Durante essa operação o canário levantou voo, e a canarinha, aproveitando-se da ocupação dos dois, fez força com o biquinho e acabou por erguer a portinhola da separação; dali para o Jardim Botânico, não teve nem graça.
Diz minha irmã que o Braga ficou triste, triste. E como a esperança é a última que morre, antes de ir embora ainda ajeitou a gaiolinha para uma espera: quem sabe os pilantras não voltariam à noite...
Canário, hein Braguinha?…

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Minha alegria

Minha alegria permanece eternidade soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.

Waly Salomão, em Antologia Poética

Acerca dos sentimentos

Sabemos mostrar respeitosa deferência pelas coisas que somos capazes de fazer, nós ou os nossos amigos; porém, quanto aos sentimentos, ignoramo-los em absoluto. Falamos com indignação ou entusiasmo. Discutimos a opressão, a crueldade, o crime, a devoção, o sacrifício, a virtude e nada conhecemos, além destas palavras. Saberá alguém o que significa a dor, o sacrifício? Talvez o saibam as vítimas do misterioso sentido daquelas ilusões.

Joseph Conrad, em Uma Guarda Avançada do Progresso

Cartas na Rua | CINCO


1
DEPARTAMENTO DOS CORREIOS
ASSUNTO: Carta de Advertência
AO: Sr. Henry Chinaski

Recebeu-se a informação neste escritório de que o senhor foi preso pelo Departamento de Polícia de Los Angeles no dia 12 de março de 1969, sob a acusação de embriaguez.
Em relação a isso, chamamos sua atenção para a Seção 744.12 do Manual dos Correios, conforme o que segue:

Funcionários dos Correios são servidores do público em geral, e suas condutas, em muitos casos, devem estar sujeitas a restrições e padrões maiores do que os de certos cargos particulares. Espera-se dos funcionários que tenham uma conduta, durante e depois das horas de serviço, que represente favoravelmente a imagem do Serviço dos Correios. Embora não seja parte da política do Departamento dos Correios interferir na vida privada dos funcionários, ela requer que os empregados dos Correios sejam honestos, respeitadores e de confiança, de bom caráter e boa reputação.”

Ainda que sua prisão seja oriunda de uma acusação relativamente branda, ela se constitui, por si só, em uma evidência da sua incapacidade em seguir aquilo que é requerido pelo Serviço dos Correios. O senhor está sendo alertado por meio desta que a repetição desta ofensa ou qualquer novo envolvimento com as autoridades policiais não deixará a este escritório outra alternativa senão considerar uma medida disciplinar.
O senhor pode submeter a sua explicação por escrito se assim o desejar.

2
DEPARTAMENTO DOS CORREIOS
ASSUNTO: Notificação de Medida Disciplinar Proposta
AO: Sr. Henry Chinaski

Este é um aviso prévio de que foi feita a proposta de suspendê-lo do trabalho durante três dias sem pagamento ou para tomar qualquer outra medida disciplinar que se julgue apropriada. A medida foi proposta levando-se em consideração promover a eficiência do Serviço dos Correios e será efetivada não antes de 35 dias a partir do recebimento desta carta.
As acusações contra o senhor e os motivos em que se baseiam tais acusações são:

ACUSAÇÃO Nº 1
O senhor é acusado de estar ausente sem pedido de licença em 13 de maio de 1969, 14 de maio de 1969 e 15 de maio de 1969.

A somar-se ao dito acima, os seguintes elementos da sua folha de serviços serão considerados para se determinar a extensão da medida disciplinar a ser adotada, caso permaneça a presente acusação:

O senhor recebeu uma carta de advertência em 1º de abril de 1969, por estar ausente sem pedido de licença.

O senhor tem o direito de responder pessoalmente à acusação ou por escrito, ou das duas maneiras, e ser acompanhado por um representante de sua própria escolha. A sua resposta deve ser feita em um prazo de dez (10) dias a partir do recebimento desta. O senhor também pode submeter depoimentos juramentados com sua resposta. Qualquer resposta escrita deve ser enviada à Direção dos Correios, Los Angeles, Califórnia, 90052. Se for necessário um tempo adicional para submeter a sua resposta, este será considerado tendo por base um pedido por escrito apresentando tal necessidade.
Se o senhor desejar responder em pessoa, pode marcar um horário com Ellen Normell, Chefe de Pessoal da Seção de Serviços, ou K. T. Shamus, Diretor do Escritório dos Funcionários, pelo telefone 289-2222.
Após a expiração do limite de dez (10) dias para sua resposta, todos os aspectos deste caso, incluindo qualquer resposta que o senhor possa ter submetido, serão inteiramente considerados antes que uma decisão seja tomada. Uma decisão lhe será enviada por escrito. Se a decisão for adversa, a carta com a decisão o advertirá da razão ou das razões relativas à tomada da decisão.

3
DEPARTAMENTO DOS CORREIOS
ASSUNTO: Notificação de Decisão
AO: Sr. Henry Chinaski

Esta tem por referência a carta de 17 de agosto de 1969, propondo sua suspensão sem pagamento por três dias ou outra medida disciplinar, baseada na Acusação Nº 1, anteriormente especificada. Até agora nenhuma resposta a essa carta foi recebida. Depois de exame cuidadoso da acusação, decidiu-se que a Acusação Nº 1, que está apoiada em fortes evidências, será mantida, autorizando a sua suspensão. De acordo com isso, o senhor será suspenso de suas atividades, sem pagamento, por um período de três (3) dias.
Seu primeiro dia de suspensão será em 17 de novembro de 1969, e o último, em 19 de novembro de 1969.
A natureza de sua folha de serviços, como informamos em detalhe na notificação de proposta de advertência, também foi considerada quando da decisão sobre a penalidade a ser imposta.
O senhor tem o direito de apelar desta decisão ao Departamento dos Correios ou à Comissão de Serviço Civil dos Estados Unidos, ou primeiramente ao Departamento dos Correios e depois ao Departamento de Serviço Civil e depois à Comissão de Serviço Civil de acordo com o seguinte procedimento:

Se o senhor apelar primeiro para a Comissão de Serviço Civil, não terá direito de apelar ao Departamento dos Correios. Um apelo à Comissão de Serviço Civil deve ser endereçado ao Diretor Regional, Região de São Francisco, Comissão de Serviço Civil dos EUA, Avenida Golden Gate, 450, Caixa Postal 36010, São Francisco, Califórnia, 94102. Seu apelo deve (a) ser por escrito, (b) apresentar suas razões para contestar a suspensão, com tal riqueza de provas e documentos quanto seja possível enviar, (c) ser submetido antes de quinze dias da data efetiva de sua suspensão. A Comissão, diante de uma apelação adequada, irá rever a ação apenas para determinar se os procedimentos normais foram seguidos, a menos que o senhor apresente uma declaração juramentada alegando que a decisão foi tomada por razões políticas, exceto se esta tiver sido requerida por lei, ou tiver resultado de discriminação por estado civil ou problemas de deficiência física. Se o senhor apelar ao Departamento dos Correios, não estará apto a apelar à Comissão até que uma primeira decisão tenha sido tomada pelo Departamento com respeito à sua apelação. A esta altura, o senhor poderá prosseguir sua apelação em esferas mais elevadas no Departamento dos Correios ou apelar à Comissão. Contudo, se nenhuma decisão em primeira instância for tomada dentro de um prazo de sessenta dias após sua proposta ter sido preenchida, o senhor pode escolher encerrar sua apelação ao Departamento apelando diretamente à Comissão.
Se apelar ao Departamento dos Correios em um prazo de dez (10) dias úteis do recebimento da notificação dessa decisão, sua suspensão não terá efeito até que tenha recebido uma decisão sobre sua apelação do Diretor Regional do Departamento dos Correios. Depois disso, se apelar ao Departamento, o senhor tem o direito de ser acompanhado, representado ou aconselhado por um representante de sua própria escolha. O senhor e seu representante estarão livres de restrição, interferência, coerção, discriminação ou represália. O senhor e seu representante terão ainda a concessão de um prazo oficial razoável para prepararem sua apresentação.
Uma apelação ao Departamento dos Correios pode ser enviada, a qualquer tempo, após o recebimento desta notificação, mas nunca depois de quinze dias úteis da data efetiva da suspensão. Sua carta deve incluir um pedido de audiência ou uma declaração de que a audiência não é necessária. A apelação deve ser endereçada a:

Diretor Regional
Departamento dos Correios
Rua Howard, 631
São Francisco, Califórnia 94106

Se o senhor fizer um apelo ao Diretor Regional ou à Comissão de Serviço Civil, forneça-me uma cópia assinada da apelação ao mesmo tempo em que for enviada ao Diretor Regional ou à Comissão de Serviço Civil.
Se o senhor tiver alguma pergunta sobre os procedimentos de apelação, pode entrar em contato com Richard N. Marth, Assistente de Benefícios e Serviços aos Empregados, na Seção de Empregos e Serviços, Escritório de Pessoal, Sala 2205, Prédio Central, Rua North Los Angeles, 300; das 8h30 às 16h30 da tarde, de segunda a sexta-feira.

4
DEPARTAMENTO DOS CORREIOS
ASSUNTO: Notificação de Proposta de Medida Disciplinar
AO: Sr. Henry Chinaski

Este é um aviso prévio de que foi proposto demiti-lo do Serviço dos Correios ou tomar qualquer outra ação disciplinar que se determine apropriada. A ação proposta tem por vista promover a eficiência do Serviço dos Correios e será efetivada não antes de 35 dias do recebimento desta notificação.
As acusações e os motivos em que se baseiam as acusações contra o senhor são:

ACUSAÇÃO Nº 1
O senhor é acusado de estar ausente sem pedido de licença nas seguintes datas:

25 de Setembro de 1969 — 4 horas
28 de Setembro de 1969 — 8 horas
29 de Setembro de 1969 — 8 horas
5 de Outubro de 1969 — 8 horas
6 de Outubro de 1969 — 4 horas
7 de Outubro de 1969 — 4 horas
13 de Outubro de 1969 — 5 horas
15 de Outubro de 1969 — 4 horas
16 de Outubro de 1969 — 8 horas
19 de Outubro de 1969 — 8 horas
23 de Outubro de 1969 — 4 horas
29 de Outubro de 1969 — 4 horas
4 de Novembro de 1969 — 8 horas
6 de Novembro de 1969 — 4 horas
12 de Novembro de 1969 — 4 horas
13 de Novembro de 1969 — 8 horas

A somar-se ao acima citado, os seguintes elementos de sua folha de serviços serão levados em consideração para determinar a extensão da medida disciplinar a ser adotada, caso a presente acusação seja mantida:

O senhor recebeu uma carta de advertência em 1º de abril de 1969, por estar ausente sem pedido de licença.
O senhor recebeu uma notificação de proposta de medida disciplinar em 17 de agosto de 1969, por estar ausente sem pedido de licença. Como resultado dessa acusação, o senhor foi suspenso do trabalho durante três dias sem direito a pagamento, de 17 de novembro a 19 de novembro de 1969.

O senhor tem o direito de responder em pessoa à acusação ou por escrito, ou de ambas as maneiras, e ser acompanhado por um representante de sua própria escolha. Sua resposta deve ser feita em um prazo de dez dias úteis a partir do recebimento desta notificação. O senhor também pode submeter depoimentos juramentados como apoio à sua resposta. Qualquer resposta por escrito deve ser enviada à Direção dos Correios, Los Angeles, Califórnia, 90052. Se for necessário um tempo adicional para submeter a sua resposta, este será considerado tendo por base um pedido por escrito apresentando tal necessidade.
Se o senhor desejar responder em pessoa, pode marcar um horário com Ellen Normell, Chefe de Pessoal da Seção de Serviços, ou K. T. Shamus, Diretor de Serviço dos Funcionários, pelo telefone 289-2222.
Após a expiração do prazo de dez dias para sua resposta, todos os fatos de seu caso, incluindo qualquer resposta que o senhor possa submeter, serão inteiramente considerados antes que uma decisão seja tomada. Uma decisão lhe será enviada por escrito. Se a decisão for adversa, a carta com a decisão o advertirá da razão ou das razões relativas à tomada da decisão.

Charles Bukowski, em Cartas na Rua