À tarde do dia, ali o grau de tudo se
exagerava. A choça. O pátio, varrido. O dono, cicatriz na testa,
sentado num toro, espiando seus onceiros: cachorro de latido fino,
cachorra com eventração. Era um velho de rosto já imposto; já
branqueava a barba.
Era caçador de onças, para o Coronel
Donato, de Tremedal. Tinha para isso grandes partes. Matava-as, com
espingardinha, o tiro na boca, para não estragar o couro.
Os cães avisavam.
Outro homem bulira-se de entre
árvores, oscilado saía da mata. Vai que uma bala podia varar-lhe
goela e nuca, sem partir dente, derribando-o dessa banda. Nem, não
imaginar desrazão. Mesmo havia de querer muitas coisas, o
pobre. Rapaz, guapo, a onça quase o acabara, comera-lhe carnes. A
onça, pagara. Juntos, nenhuma vencia-os, companheiros.
Coxeava, o tanto, pela clareira, no
devagar de ligeireza, macio. Também tendo cicatriz, feiosa, olho
esvaziado. Não olhava para a casa. Moço quieto, áspero, que devia
de ser leal, que lhe era semelhável. Precisava mais de
viver; para a responsabilidade.
Saudaram-se, baixo. O velho não se
levantara. — “Queria saber de mim?” — um arrepio
vital, a seca pergunta. O outro curvou-se, não ousava indagar por
saúde. No que pensava, calava. E rodeavam-se com os olhos, deviam
ser acertadamente amigos. Moravam em ermos, distantes.
Viúvo, o velho tornara a casar-se,
com mulher prazível. O moço, sozinho, mudava-se sempre mais
afastado. Vinha, raro, ao necessário. Dar uma conversa, incansável
escutador. Quanto mais que tinham ali de atacar em comum a onça —
braçal, miã, com poder de espaço — o que nenhum dos jagunços do
Coronel rompia; o ofício para que davam era aquele.
O moço ia pôr-se de cócoras, o
velho apontou-lhe firme o cepo, foi quem ficou agachado. Mas, de
chapéu. O moço, o seu nos joelhos, sentava-se meio torcido, de
lado.
Mudo modo, como quando a onça
pirraça. Os cães, próximos. — “Aí... s’tro dia...”
— ou — “...esse rastro é velho...” — inteiravam-se,
passado conveniente tempo. Viravam novo silêncio.
Fazia ideia, o velho, pesado de coisas
na cabeça, ocultas figuras. Mal mirava o outro: aqueles grandes
cabelos ruivo-amarelos, orelhas miúdas, o nariz curto, redonda
ossuda a cara. Seco de pertinácias, de sem-medo; desde menino
pequeno. Tinha as vantagens da mocidade, as necessidades…
Enquanto que, ele, esmorecia, com o
render-se aos anos, o alquebro. O que era o que é a vida. A mais, a
doença. Tormentos. Porque tinha aceitado de um qualquer dia morrer,
deixando a mulher debaixo de amparo? Ia não largar no mundo viúva
para mãos de estranhos!
Daí, com o outro, o conversado, à
mútua vontade, para providência. A esse, seguro por sangue e
palavra, protetor, entregava então herdada a companheira, para
quando a ocasião; tratou-se. Para ele poder morrer sem abalo... A
mulher, entendendo, crer que anuía, tranquila calada. Disso ele
tinha sabedoria. Em tanto que, às vezes, achava raiva. Agoniava-o o
razoável. Direiteza, ou erro? Isso ficava em questão.
Dera um gemido cavo. De rebate: se
esticara para diante, o intento dos olhos se alargando, o corpo
dançado. — “A que há, uma onça...” — começara.
Repôs-se em equilíbrio nos calcanhares. Recuava de pensar, em
posição de ação.
O moço: — “Ah!” — no falso
fio; vigiava por tudo, em seu entendimento.
Vagaravam.
Sem mal-entenderem-se.
Tardinho, na mata, o ar se some em
preto, já da noite por vir.
Agitavam-se súbito os cães, até à
choupana, à porta: abrira-a a mulher, com a comida. Mulher
pequenina, sisuda. Não voltava o rosto. E pela dita causa.
O moço ia-se, fez menção. Conteve-o
o velho: — “Mais logo...” — entre dentes dito.
Tornou a mulher a abrir a porta. Não
olhava, não chamou. Mas tinha um prato do jantar em cada mão.
O velho ergueu-se, foi buscar.
O moço comia, a gosto. O coitado, com
afeto nenhum, ninguém cuidando dele. Conhecera já a careta, o
escarrar, os bigodes — a massa da onça, a pancada! O que
arde.
Por que não o castrara a fera
monstra, em vez de escavacar-lhe as costas e rasgar banda da face,
consumir barriga-da-perna, o acima-da-coxa, esses desperdícios? Se
fosse, mais merecia, para aquilo — por resguardo e defendimento,
respeitante, postiço, sem abusos...
E velhamente. Falava, lembranças, da
meninice ainda do outro, falando com a boca amargosa. Nem tinha
fome. Os fatos não se emendavam.
Dava ânsia pensar — a coisa,
encorpada. A mulher, mulherzinha nas noites. Aquele, rente, o
outro, pescoço grosso, macho gatarro, de onça, se em cio.
Tinha vexame do que sendo para ser, do inventado.
Encarou-o: — “Vai.”
Falou; foi a rouco. Em dó de sentir o que olhos não vão ver,
preenchidos pela terra.
O moço tristemente, também, se
entortando, aleijado. Voltava só a seu rancho. Cruzava caminho da
outra, onça jagunça — a abertura em-pé do meio-do-olho, que no
escuro vê — o pulo, as presas, a tigresia.
Mas, tinha no ombro o rifle! E o saber
— pelo desassombrar, abarbar, com ela igualar-se à mão-tente —
fugir o perigo. Ensinara-lhe, tudo, prevenira... o velho se
levantava.
De supetão: — “Quer ficar?”
Assim dizendo. — “Madrugada, a gente vai... mata...” —
bufo por bufo.
De não, o outro respondeu, vago.
— “...andadora... onça
grossa...”
Não; o moço sacudiu-se.
O velho tocou-lhe no braço — “Te
protege!” — disse, risse.
Depois, de novo, mestre, ia sentar-se
na tora, num derrêio, por enfim; esfregava-se as pálpebras com as
unhas dos dedos. As coisas, mesmas, por si, escolhem de suceder ou
não, no prosseguir.
O moço se despedia, sem brusqueza. Só
a saudação reverencial: — “Meu pai, a sua benção...”
Tinham contas sem fim. Latiam os cães.
Ia dar luar, o para caminhada, do homem e da onça, erradios, na
mata do Gorutuba.
Guimarães Rosa, em Tutameia
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