quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Fotografia: uma pequena suma

1. Fotografia é, antes de tudo, um modo de ver. Não é a visão em si mesma.
 
2. É a maneira inelutavelmente “moderna” de ver — predisposta em favor de projetos de descoberta e inovação.
 
3. Essa maneira de ver, que agora tem uma longa história, molda aquilo que procuramos perceber e estamos habituados a distinguir nas fotografias.
 
4. A maneira moderna de ver é ver em fragmentos. Tem-se a sensação de que a realidade é essencialmente ilimitada e o conhecimento não tem fim. Segue-se que todas as fronteiras, todas as ideias unificadoras têm de ser enganosas, demagógicas; na melhor hipótese, temporárias; a longo prazo, quase sempre falsas. Ver a realidade à luz de certas ideias unificadoras tem a vantagem inegável de dar forma e feição à nossa experiência. Mas também — assim nos instrui a maneira moderna de ver — nega a infinita variedade e complexidade do real. Desse modo reprime a nossa energia, a rigor o nosso direito, de refazer o que queremos refazer — a nossa sociedade, nós mesmos. O que é liberador, assim nos dizem, é perceber cada vez mais.
 
5. Numa sociedade moderna, as imagens feitas por câmeras são o principal acesso a realidades das quais não temos experiência direta de espécie alguma. E se espera que recebamos e registremos um número ilimitado de imagens daquilo que não experimentamos de forma direta. A câmera define para nós o que permitimos que seja “real” — e empurra continuamente para adiante as fronteiras do real. Os fotógrafos são especialmente admirados se revelam verdades ocultas sobre si mesmos ou conflitos sociais que não foram plenamente cobertos pela imprensa, em sociedades ao mesmo tempo próximas e distantes de onde vivem os espectadores.
 
6. Na maneira moderna de conhecer, é preciso que haja imagens para que algo se torne “real”. Fotos identificam eventos. Fotos conferem importância aos eventos e os tornam memoráveis. Para uma guerra, uma atrocidade, uma pandemia, um assim chamado desastre natural tornar-se objeto de ampla preocupação, é preciso alcançar pessoas por meio de vários sistemas (desde a televisão e a internet até jornais e revistas) que difundem imagens fotográficas aos milhões.
 
7. Na maneira moderna de ver, a realidade é antes de tudo aparência — a qual está sempre mudando. Uma foto registra a aparência. O registro da fotografia é o registro da mudança, da destruição do passado. Como somos modernos (e se temos o hábito de olhar fotos, somos modernos por definição), compreendemos que todas as identidades são construções. A única realidade irrefutável — e nossa melhor pista para a identidade — é a aparência que as pessoas têm.
 
8. Uma foto é um fragmento — um relance. Acumulamos relances, fragmentos. Todos nós estocamos mentalmente centenas de imagens fotográficas, que podem ser lembradas de modo instantâneo. Todas as fotos aspiram à condição de ser memoráveis — ou seja, inesquecíveis.
 
9. Na visão que nos define como modernos há um número infinito de detalhes. Fotos são detalhes. Portanto, fotos se parecem com a vida. Ser moderno é viver extasiado pela autonomia selvagem do detalhe.
 
10. Conhecer é, antes de tudo, reconhecer. O reconhecimento é a forma do conhecimento que agora se identifica com a arte. As fotos das terríveis crueldades e injustiças que afligem a maioria das pessoas do mundo parecem nos dizer — a nós, que somos privilegiados e estamos relativamente seguros — que temos de ser despertados; que temos de querer que se faça algo a fim de cessarem tais horrores. E há também fotos que parecem reclamar um tipo diferente de atenção. Para esse corpo de obra em andamento, a fotografia não é uma espécie de agitação moral ou social, destinada a nos incitar a sentir e a agir, mas sim um projeto de notação. Olhamos, registramos, reconhecemos. Essa é uma maneira mais fria de olhar. É a maneira de olhar que identificamos como arte.
 
11. A obra de alguns dos melhores fotógrafos socialmente engajados é muitas vezes reprovada, caso se pareça muito com arte. E a fotografia entendida como arte pode incorrer numa reprovação paralela — a de que amortece a preocupação. Mostra-nos fatos, situações e conflitos que temos de deplorar e nos pede que fiquemos distantes. Pode nos mostrar algo realmente medonho e ser um teste do que nosso olhar consegue suportar e que temos o dever de aceitar. Ou muitas vezes — isto é verdade para boa parte da melhor fotografia atual — nos convida a olhar para a banalidade. Olhar para a banalidade e também apreciá-la, apoiados nos hábitos de ironia bastante desenvolvidos ratificados nas justaposições surreais de fotos típicas de exposições e livros sofisticados.
 
12. A fotografia — a forma suprema de viajar, de turismo — é o principal meio moderno de ampliar o mundo. Como um ramo da arte, o projeto da fotografia de ampliação do mundo tende a especializar-se em temas tidos por contestadores, transgressivos. Uma foto pode estar nos dizendo: isso também existe. E isso. E isso. (E tudo isso é “humano”.) Mas o que devemos fazer com esse conhecimento — se de fato é um conhecimento sobre, digamos, o eu, sobre a anormalidade, sobre mundos clandestinos ou relegados ao ostracismo?
 
13. Chamemos de conhecimento ou chamemos de reconhecimento — de uma coisa podemos ter certeza a respeito desse modo caracteristicamente moderno de experimentar qualquer coisa: a visão e a acumulação de fragmentos de visão nunca podem ser completadas.
 
14. Não existe uma foto final.

Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo Ensaios e Discursos

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