quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

De Profundis



As exigências que faz Alexander Soljenítsin a seus leitores clandestinos na União Soviética (quantos serão?) e a seu vasto público ocidental são ferozes e muito perspicazes. Ele conhece e desdenha a fácil solidariedade com que reage o público ocidental, o gosto levemente obsceno pelo sofrimento à distância. Mais do que sermos nós a ler Soljenítsin, é Soljenítsin quem nos lê. Como Tolstói em seus anos mais avançados, Soljenítsin é um perscrutador, um explorador das fraquezas humanas e um incômodo para o mundo.
Soljenítsin, anarquista teocrático, não sente grande apreço pela razão, sobretudo quando brota do “intelectual”, do homem que faz da imparcialidade seu ganha-pão mais ou menos mundano. Diante do desumano, muitas vezes a razão é um agente fraco, até risível. Também pode ser levemente presunçosa, e Soljenítsin troça impiedoso da “objetividade” fácil daqueles que argumentam, que tentam ser “razoáveis” sem ter sido expostos a um milímetro sequer do arquipélago da dor. O que tem a análise histórica a dizer diante dos sofrimentos de Soljenítsin e de seu grito a percorrer a história moderna? Cada tortura, cada indignidade imposta a um ser humano é irredutivelmente singular e irredimível. A cada vez que um ser humano é açoitado, submetido à fome, roubado de sua dignidade, abre-se um buraco negro específico na estrutura da vida. Uma obscenidade adicional é despersonalizar a desumanidade, é recobrir o fato irreparável da agonia individual com categorias anônimas da análise estatística, da teoria histórica ou da construção de modelos sociológicos. Conscientemente ou não, qualquer um que ofereça um diagnóstico, por mais compassivo ou mesmo condenatório que seja, diminui, atenua a irremediável concretude da morte sob tortura deste homem ou daquela mulher, da morte à fome desta criança específica, facilitando o esquecimento. Soljenítsin tem a obsessão pela sacralidade do detalhe. Como acontece em Dante e Tolstói, os nomes próprios saem em cascatas de sua caneta. Ele sabe que, para rezarmos pelos mortos sob tortura, devemos decorar e dizer seus nomes, aos milhões, num infindável réquiem a nomeá-los sem cessar.
Mas a mente dos mortais é feita de tal maneira que não consegue reter com uma identidade precisa mais do que um pequeno número de presenças conhecidas. Pelo menos 20 milhões de homens, mulheres e crianças foram enviados à morte nos expurgos stalinistas. Se tivermos uma grande capacidade de percepção interna, conseguiremos visualizar, conseguiremos enumerar e, em certa medida, identificar cinquenta, talvez cem pessoas. Para além disso estende-se o cômodo limbo da abstração. Assim, se realmente quisermos entender, precisamos tentar analisar, classificar, expor esses sonhos da razão que se chamam teorias.
É uma platitude mais antiga do que Tucídides que os homens no exercício do poder político podem voltar e voltarão à bestialidade. Os milênios estão pontuados de massacres com uma monotonia chocante. O tratamento rotineiro dado aos escravos, aos dependentes familiares, aos loucos ou aos aleijados em épocas e sociedades que agora, retrospectivamente, consideramos de grande esplendor artístico, intelectual ou cívico é tão brutal que paralisa nossa imaginação. Os oásis de compaixão eram raros e esporádicos. (Daí a promessa cristã de um Paraíso em compensação.) Ninguém sabe realmente se a grama voltou a crescer por onde Gêngis Khan passou; não sobrou ninguém para verificar. Em vastas áreas da Europa Central durante a Guerra dos Trinta Anos, restaram apenas lobos se alimentando de ar.
Mas houve uma trégua, um relativo armistício com a história nas áreas mais afortunadas da Europa Ocidental e dos eua durante boa parte do século xviii, e depois novamente entre o final das guerras napoleônicas e 1914. A constante de selvageria ficou nas mãos de exércitos profissionais especializados e foi exportada para a fronteira ou para as colônias. Voltaire não era um utopista ingênuo quando previu o desaparecimento da tortura e da represália em massa na vida política. Os sinais eram auspiciosos. As táticas do general Sherman, ao estilo huno, pareciam mero atavismo isolado e um tanto embaraçoso.
São os massacres armênios de 1915-16 que se mostram problemáticos e, ao mesmo tempo, cruciais. Teriam sido, como dizem alguns, um nefasto epílogo de uma longa história de invasão e devastação “bárbara”, um retrocesso ao mundo de Átila? Ou, como afirmam outros, marcaram o início da era do holocausto e do genocídio? E quais são os vínculos técnicos e psicológicos, se é que existem, entre a matança deliberada de 1 milhão de armênios às mãos dos turcos e as hecatombes simultâneas no fronte ocidental? Qualquer que seja a resposta, o fato avassalador foi que o homem político, o homem nacionalista, equipado com armas sem precedentes na história, relembrou ou redescobriu a lógica da aniquilação.
É segundo esta lógica que temos conduzido nossos assuntos desde então. A lógica acarretou a insanidade do assassinato em massa de 1914 a 1918 (quase 750 mil pessoas apenas em Verdun), a erradicação de povos e alvos civis, o envenenamento programado do meio ambiente, a matança brutal de espécies animais, a liquidação nazista de judeus e ciganos. Hoje, essa mesma lógica gera a erradicação desapiedada das tribos indígenas em toda a Amazônia, a ubiquidade de um grau de terror e tortura no Uruguai e na Argentina que se equipara ao que sabemos sobre os matadores de Stálin e da Gestapo. Hoje, neste exato minuto, é uma lógica que subscreve a carnificina suicida no Camboja. O gulag não tem fronteiras físicas.
Isso não significa diminuir de maneira alguma a especificidade dos relatos de Soljenítsin sobre o Inferno. Mas cabe perguntar se e como o edifício soviético da servidão e da degradação é ou não é uma parcela de uma catástrofe mais geral. O próprio Soljenítsin não se mostra claro a este respeito. Os dois primeiros volumes da crônica do gulag eram peremptórios ao ressalvar que se deviam estabelecer distinções entre as práticas nazistas e as stalinistas. Soljenítsin se concentrou mais no fato (incontestável) de que Stálin massacrou muitos milhões a mais do que Hitler. (Em seu auge, como mostrou Robert Conquest em seus estudos clássicos a respeito, os campos soviéticos contavam com cerca de 8 milhões de prisioneiros.) Soljenítsin chegou a avançar a hipótese de que a Gestapo torturava para arrancar “fatos”, ao passo que a polícia secreta russa torturava para obter falsos testemunhos. Nenhuma dessas vulgaridades desfigura este terceiro volume, O arquipélago Gulag três (Harper & Row, 1978), mas Soljenítsin continua indeciso no momento de indicar onde e como o gulag se insere no tecido da história e da índole russas. Em alguns pontos, ele dá voz à crença de que a opressão do alto e a obediência da grande massa da população à autoridade bruta são características do espírito russo. Mas, em outros, insiste na natureza especificamente bolchevique do regime de terror, regime este iniciado por Lênin, levado a uma eficácia insana por Stálin e que ainda hoje persiste na loucura, em escala menos apocalíptica. Soljenítsin estabelece várias vezes um contraste sarcástico entre as diabruras relativamente benignas do aparato punitivo czarista (tal como exposto por Tchecov ou Dostoiévski) e a bestialidade rematada da solução soviética.
Se se perguntasse a Soljenítsin se o retorno do homem político moderno à tortura, ao encarceramento e ao assassinato de massa representa algum fenômeno geral, ou se cada caso é uma pavorosa singularidade, imagino que ele responderia algo assim: no momento em que a humanidade rejeitou o verdadeiro significado e a premência do exemplo de Cristo, no momento em que optou por ideais seculares e esperanças materiais, ela separou sua história e suas instituições políticas da compaixão, do imperativo da graça. Uma política ou uma burocracia social apartada da sanção teológica traz inevitavelmente dentro de si a mecânica do niilismo, da gratuidade autodestrutiva. O planeta gulag, a ubiquidade da tortura e do homicídio em nossa existência pública, é apenas a manifestação mais extrema, mais despudorada de uma desumanidade que perpassa tudo.
É esta leitura teológico-penitencial da condição humana que serve de base aos dogmas mais excêntricos, mas também mais profundos e sinceros, de Soljenítsin: seu horror ao liberalismo laico tal como provém da Revolução Francesa; a aversão aos judeus, nos quais vê não apenas os primeiros negadores de Cristo, mas também os libertários radicais cuja agitação culmina no marxismo e no socialismo utópico; o desprezo pelo “hedonismo degenerado” e pelo consumo desenfreado nas sociedades ocidentais; a indisfarçada nostalgia pela aura teocrática da Rússia ortodoxa, quase bizantina.
É um conjunto de teses que gera isolamento e desperta perplexidade. Tem contra si uma aliança, ao mesmo tempo risível e — para Soljenítsin — plenamente natural, entre a KGB, a sra. Jimmy Carter (veja-se sua tentativa de refutar o discurso de Soljenítsin na cerimônia de formatura de Harvard) e as autoridades do fisco suíço tentando arrebanhar seu dízimo sobre os royalties de seu recente hóspede. Juntas, essas crenças de Soljenítsin compõem uma explicação “mística” da barbárie moderna. É uma explicação que, por sua própria natureza, é impossível de provar ou refutar. Mas existe alguma melhor?
Muitos têm tentado encontrar. A falecida Hannah Arendt se esforçou em localizar as raízes do totalitarismo moderno em determinados aspectos da evolução do Estado nacional abrangente e do tipo de coletivismo econômico e psicológico pós-Iluminismo. Outros veem nos campos de concentração e morte uma derradeira encenação, ao mesmo tempo lógica e paródica, dos processos industriais de padronização e linha de montagem. De minha parte, apresentei a “metáfora de trabalho” segundo a qual a eliminação da presença de Deus na vida cotidiana e na legitimidade do poder político gerou a necessidade de instituir na terra um sucedâneo da condenação (um Inferno aqui), que seriam os gulags nazistas, soviéticos, chilenos e cambojanos. Mas nenhuma dessas hipóteses é realmente explicativa. O que nos resta é o fato central: de uma maneira e numa escala inconcebível para o homem ocidental educado, desde, digamos, Erasmo até Woodrow Wilson, retomamos ou inventamos uma política da tortura e do massacre. Desse fato brota a única pergunta que importa: é possível deter o ciclo infernal?
Soljenítsin, que sobreviveu não só ao gulag, mas também ao pavilhão dos cancerosos, é movido por uma vontade ardente. Talvez mais do que qualquer outro desde Nietzsche e Tolstói, ele é senhor e servo da infinita resistência do espírito humano. A resposta dele seria: sim, é possível deter essa tremenda força; é possível rejeitar a banalidade do mal e dizer não aos que querem reduzir o indivíduo a um operário do matadouro. Ele diria — ou deveria dizer, à luz de suas próprias ideias — que os eua poderiam deter o genocídio na Amazônia, o festival de sadismo na Argentina, as degradações no Chile, retirando desses regimes grotescos os investimentos, os interesses empresariais cuja generosidade lhes serve de apoio. Soljenítsin pode e deve proclamar que é possível interromper o automatismo da opressão, porque já o viu interrompido ou, pelo menos, reduzido a uma impotência temporária nas profundezas do próprio Inferno.
Este é o testemunho do último volume da trilogia, com seu fascinante registro das revoltas nos campos, das fugas, do desafio das vítimas em grupo ou individualmente. Soljenítsin narra os quarenta grandiosos dias e noites da revolta de maio e junho de 1954 no campo de Kengir. Conta a história — é uma narrativa clássica — de Georgi P. Tenno, o mestre das fugas. Nos comoventes capítulos finais, ele evoca sua ressurreição da casa dos mortos, seu regresso, ao mesmo tempo angustiado e jubiloso, à luz habitual de uma existência autorizada mais ou menos normal.
E no entanto esse colosso de homem, tão acentuadamente estranho à humanidade comum, não conclui o épico em tom consolador. Depois de nove anos escrevendo clandestinamente, Soljenítsin encerra sua trilogia com a terrível observação de que se passara um século desde a invenção do arame farpado. E ele, que viu, viveu, narrou a mais alta resistência, a mais elevada esperança contra o Inferno, dá a entender que é essa invenção que continuará a determinar a história do homem moderno. No negro desse grandioso afresco, esse é o toque mais desesperado.
4 de setembro de 1978

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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