As exigências que faz Alexander
Soljenítsin a seus leitores clandestinos na União Soviética
(quantos serão?) e a seu vasto público ocidental são ferozes e
muito perspicazes. Ele conhece e desdenha a fácil solidariedade com
que reage o público ocidental, o gosto levemente obsceno pelo
sofrimento à distância. Mais do que sermos nós a ler Soljenítsin,
é Soljenítsin quem nos lê. Como Tolstói em seus anos mais
avançados, Soljenítsin é um perscrutador, um explorador das
fraquezas humanas e um incômodo para o mundo.
Soljenítsin, anarquista teocrático,
não sente grande apreço pela razão, sobretudo quando brota do
“intelectual”, do homem que faz da imparcialidade seu ganha-pão
mais ou menos mundano. Diante do desumano, muitas vezes a razão é
um agente fraco, até risível. Também pode ser levemente
presunçosa, e Soljenítsin troça impiedoso da “objetividade”
fácil daqueles que argumentam, que tentam ser “razoáveis” sem
ter sido expostos a um milímetro sequer do arquipélago da dor. O
que tem a análise histórica a dizer diante dos sofrimentos de
Soljenítsin e de seu grito a percorrer a história moderna? Cada
tortura, cada indignidade imposta a um ser humano é irredutivelmente
singular e irredimível. A cada vez que um ser humano é açoitado,
submetido à fome, roubado de sua dignidade, abre-se um buraco negro
específico na estrutura da vida. Uma obscenidade adicional é
despersonalizar a desumanidade, é recobrir o fato irreparável da
agonia individual com categorias anônimas da análise estatística,
da teoria histórica ou da construção de modelos sociológicos.
Conscientemente ou não, qualquer um que ofereça um diagnóstico,
por mais compassivo ou mesmo condenatório que seja, diminui, atenua
a irremediável concretude da morte sob tortura deste homem ou
daquela mulher, da morte à fome desta criança específica,
facilitando o esquecimento. Soljenítsin tem a obsessão pela
sacralidade do detalhe. Como acontece em Dante e Tolstói, os nomes
próprios saem em cascatas de sua caneta. Ele sabe que, para rezarmos
pelos mortos sob tortura, devemos decorar e dizer seus nomes, aos
milhões, num infindável réquiem a nomeá-los sem cessar.
Mas a mente dos mortais é feita de
tal maneira que não consegue reter com uma identidade precisa mais
do que um pequeno número de presenças conhecidas. Pelo menos 20
milhões de homens, mulheres e crianças foram enviados à morte nos
expurgos stalinistas. Se tivermos uma grande capacidade de percepção
interna, conseguiremos visualizar, conseguiremos enumerar e, em certa
medida, identificar cinquenta, talvez cem pessoas. Para além disso
estende-se o cômodo limbo da abstração. Assim, se realmente
quisermos entender, precisamos tentar analisar, classificar, expor
esses sonhos da razão que se chamam teorias.
É uma platitude mais antiga do que
Tucídides que os homens no exercício do poder político podem
voltar e voltarão à bestialidade. Os milênios estão pontuados de
massacres com uma monotonia chocante. O tratamento rotineiro dado aos
escravos, aos dependentes familiares, aos loucos ou aos aleijados em
épocas e sociedades que agora, retrospectivamente, consideramos de
grande esplendor artístico, intelectual ou cívico é tão brutal
que paralisa nossa imaginação. Os oásis de compaixão eram raros e
esporádicos. (Daí a promessa cristã de um Paraíso em
compensação.) Ninguém sabe realmente se a grama voltou a crescer
por onde Gêngis Khan passou; não sobrou ninguém para verificar. Em
vastas áreas da Europa Central durante a Guerra dos Trinta Anos,
restaram apenas lobos se alimentando de ar.
Mas houve uma trégua, um relativo
armistício com a história nas áreas mais afortunadas da Europa
Ocidental e dos eua durante boa parte do século xviii, e depois
novamente entre o final das guerras napoleônicas e 1914. A constante
de selvageria ficou nas mãos de exércitos profissionais
especializados e foi exportada para a fronteira ou para as colônias.
Voltaire não era um utopista ingênuo quando previu o
desaparecimento da tortura e da represália em massa na vida
política. Os sinais eram auspiciosos. As táticas do general
Sherman, ao estilo huno, pareciam mero atavismo isolado e um tanto
embaraçoso.
São os massacres armênios de 1915-16
que se mostram problemáticos e, ao mesmo tempo, cruciais. Teriam
sido, como dizem alguns, um nefasto epílogo de uma longa história
de invasão e devastação “bárbara”, um retrocesso ao mundo de
Átila? Ou, como afirmam outros, marcaram o início da era do
holocausto e do genocídio? E quais são os vínculos técnicos e
psicológicos, se é que existem, entre a matança deliberada de 1
milhão de armênios às mãos dos turcos e as hecatombes simultâneas
no fronte ocidental? Qualquer que seja a resposta, o fato avassalador
foi que o homem político, o homem nacionalista, equipado com armas
sem precedentes na história, relembrou ou redescobriu a lógica da
aniquilação.
É segundo esta lógica que temos
conduzido nossos assuntos desde então. A lógica acarretou a
insanidade do assassinato em massa de 1914 a 1918 (quase 750 mil
pessoas apenas em Verdun), a erradicação de povos e alvos civis, o
envenenamento programado do meio ambiente, a matança brutal de
espécies animais, a liquidação nazista de judeus e ciganos. Hoje,
essa mesma lógica gera a erradicação desapiedada das tribos
indígenas em toda a Amazônia, a ubiquidade de um grau de terror e
tortura no Uruguai e na Argentina que se equipara ao que sabemos
sobre os matadores de Stálin e da Gestapo. Hoje, neste exato minuto,
é uma lógica que subscreve a carnificina suicida no Camboja. O
gulag não tem fronteiras físicas.
Isso não significa diminuir de
maneira alguma a especificidade dos relatos de Soljenítsin sobre o
Inferno. Mas cabe perguntar se e como o edifício soviético da
servidão e da degradação é ou não é uma parcela de uma
catástrofe mais geral. O próprio Soljenítsin não se mostra claro
a este respeito. Os dois primeiros volumes da crônica do gulag eram
peremptórios ao ressalvar que se deviam estabelecer distinções
entre as práticas nazistas e as stalinistas. Soljenítsin se
concentrou mais no fato (incontestável) de que Stálin massacrou
muitos milhões a mais do que Hitler. (Em seu auge, como mostrou
Robert Conquest em seus estudos clássicos a respeito, os campos
soviéticos contavam com cerca de 8 milhões de prisioneiros.)
Soljenítsin chegou a avançar a hipótese de que a Gestapo torturava
para arrancar “fatos”, ao passo que a polícia secreta russa
torturava para obter falsos testemunhos. Nenhuma dessas vulgaridades
desfigura este terceiro volume, O arquipélago Gulag três
(Harper & Row, 1978), mas Soljenítsin continua indeciso no
momento de indicar onde e como o gulag se insere no tecido da
história e da índole russas. Em alguns pontos, ele dá voz à
crença de que a opressão do alto e a obediência da grande massa da
população à autoridade bruta são características do espírito
russo. Mas, em outros, insiste na natureza especificamente
bolchevique do regime de terror, regime este iniciado por Lênin,
levado a uma eficácia insana por Stálin e que ainda hoje persiste
na loucura, em escala menos apocalíptica. Soljenítsin estabelece
várias vezes um contraste sarcástico entre as diabruras
relativamente benignas do aparato punitivo czarista (tal como exposto
por Tchecov ou Dostoiévski) e a bestialidade rematada da solução
soviética.
Se se perguntasse a Soljenítsin se o
retorno do homem político moderno à tortura, ao encarceramento e ao
assassinato de massa representa algum fenômeno geral, ou se cada
caso é uma pavorosa singularidade, imagino que ele responderia algo
assim: no momento em que a humanidade rejeitou o verdadeiro
significado e a premência do exemplo de Cristo, no momento em que
optou por ideais seculares e esperanças materiais, ela separou sua
história e suas instituições políticas da compaixão, do
imperativo da graça. Uma política ou uma burocracia social apartada
da sanção teológica traz inevitavelmente dentro de si a mecânica
do niilismo, da gratuidade autodestrutiva. O planeta gulag, a
ubiquidade da tortura e do homicídio em nossa existência pública,
é apenas a manifestação mais extrema, mais despudorada de uma
desumanidade que perpassa tudo.
É esta leitura
teológico-penitencial da condição humana que serve de base aos
dogmas mais excêntricos, mas também mais profundos e sinceros, de
Soljenítsin: seu horror ao liberalismo laico tal como provém da
Revolução Francesa; a aversão aos judeus, nos quais vê não
apenas os primeiros negadores de Cristo, mas também os libertários
radicais cuja agitação culmina no marxismo e no socialismo utópico;
o desprezo pelo “hedonismo degenerado” e pelo consumo desenfreado
nas sociedades ocidentais; a indisfarçada nostalgia pela aura
teocrática da Rússia ortodoxa, quase bizantina.
É um conjunto de teses que gera
isolamento e desperta perplexidade. Tem contra si uma aliança, ao
mesmo tempo risível e — para Soljenítsin — plenamente natural,
entre a KGB, a sra. Jimmy Carter (veja-se sua tentativa de refutar o
discurso de Soljenítsin na cerimônia de formatura de Harvard) e as
autoridades do fisco suíço tentando arrebanhar seu dízimo sobre os
royalties de seu recente hóspede. Juntas, essas crenças de
Soljenítsin compõem uma explicação “mística” da barbárie
moderna. É uma explicação que, por sua própria natureza, é
impossível de provar ou refutar. Mas existe alguma melhor?
Muitos têm tentado encontrar. A
falecida Hannah Arendt se esforçou em localizar as raízes do
totalitarismo moderno em determinados aspectos da evolução do
Estado nacional abrangente e do tipo de coletivismo econômico e
psicológico pós-Iluminismo. Outros veem nos campos de concentração
e morte uma derradeira encenação, ao mesmo tempo lógica e
paródica, dos processos industriais de padronização e linha de
montagem. De minha parte, apresentei a “metáfora de trabalho”
segundo a qual a eliminação da presença de Deus na vida cotidiana
e na legitimidade do poder político gerou a necessidade de instituir
na terra um sucedâneo da condenação (um Inferno aqui), que seriam
os gulags nazistas, soviéticos, chilenos e cambojanos. Mas nenhuma
dessas hipóteses é realmente explicativa. O que nos resta é o fato
central: de uma maneira e numa escala inconcebível para o homem
ocidental educado, desde, digamos, Erasmo até Woodrow Wilson,
retomamos ou inventamos uma política da tortura e do massacre. Desse
fato brota a única pergunta que importa: é possível deter o ciclo
infernal?
Soljenítsin, que sobreviveu não só
ao gulag, mas também ao pavilhão dos cancerosos, é movido por uma
vontade ardente. Talvez mais do que qualquer outro desde Nietzsche e
Tolstói, ele é senhor e servo da infinita resistência do espírito
humano. A resposta dele seria: sim, é possível deter essa tremenda
força; é possível rejeitar a banalidade do mal e dizer não aos
que querem reduzir o indivíduo a um operário do matadouro. Ele
diria — ou deveria dizer, à luz de suas próprias ideias — que
os eua poderiam deter o genocídio na Amazônia, o festival de
sadismo na Argentina, as degradações no Chile, retirando desses
regimes grotescos os investimentos, os interesses empresariais cuja
generosidade lhes serve de apoio. Soljenítsin pode e deve proclamar
que é possível interromper o automatismo da opressão, porque já o
viu interrompido ou, pelo menos, reduzido a uma impotência
temporária nas profundezas do próprio Inferno.
Este é o testemunho do último volume
da trilogia, com seu fascinante registro das revoltas nos campos, das
fugas, do desafio das vítimas em grupo ou individualmente.
Soljenítsin narra os quarenta grandiosos dias e noites da revolta de
maio e junho de 1954 no campo de Kengir. Conta a história — é uma
narrativa clássica — de Georgi P. Tenno, o mestre das fugas. Nos
comoventes capítulos finais, ele evoca sua ressurreição da casa
dos mortos, seu regresso, ao mesmo tempo angustiado e jubiloso, à
luz habitual de uma existência autorizada mais ou menos normal.
E no entanto esse colosso de homem,
tão acentuadamente estranho à humanidade comum, não conclui o
épico em tom consolador. Depois de nove anos escrevendo
clandestinamente, Soljenítsin encerra sua trilogia com a terrível
observação de que se passara um século desde a invenção do arame
farpado. E ele, que viu, viveu, narrou a mais alta resistência, a
mais elevada esperança contra o Inferno, dá a entender que é essa
invenção que continuará a determinar a história do homem moderno.
No negro desse grandioso afresco, esse é o toque mais desesperado.
4 de setembro de 1978
George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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