passava
o curandeiro cheio de sabedoria e conselhos de boticário.
alinhámo-nos em minutos para que nos verificasse as alterações de
postura, cor e odores. ele rodava muito lento cerca de cada um e
desconfiava de tudo, parecia procurar falhas como se fosse do
espírito de cada pessoa. escarafunchava buracos todos, descobria-nos
coisas nunca vistas na pele mais escondida. mas era pelo feitio
exterior, como qualquer nódoa nas mãos que não saísse com água,
que ele nos estudava. depois tirava instrumentos de bater ou apertar,
passava as mãos sobre nós a magoar nas zonas doridas, e zangava-se
pela nossa falta de atenção, já nem sabíamos como nos
aleijáramos. ficávamos à espera que nos desempenasse braços,
peito e pernas, que nos tapasse feridas abertas, que nos descobrisse
parasitas ou outras coisas esquecidas no corpo. e ele lá nos mandava
ao boticário também, a tirar da cabeça coisas para beber e comer
de necessidade para a saúde, porque nos dava frio aos pulmões e
respirar podia ser difícil, ou porque o estômago rejeitasse os
melhores frutos que comesse. o curandeiro vinha sempre para esticar o
pé à minha mãe, puxava-lho, ela a gritar, a desentortá-lo um
bocado, como dizia, e que pena não poder fazê-lo mais vezes se, na
insistência, o pé tornaria ao seu lugar. mas ela duvidava de medo,
também atazanada com ele a mexer-lhe nos olhos, deitando-lhe vapores
e bufando para dentro. o meu pai perdia muitas vezes a paciência,
dizia que merda para aquelas coisas e, furioso, saía-nos da beira. o
curandeiro gritava-lhe de alto, que às ordens de visita de dom
afonso não haveria de ser mal obediente o meu pai. por isso, o sarga
voltava mansinho de obrigação e permitia que o curandeiro lhe
enfiasse dedo nos ouvidos a doer-lhe, como se fizesse de propósito.
se o senhor sarga não ficar quieto ainda lhe dói mais, dizia quase
sorrindo de dentes incrivelmente brancos. o curandeiro, eu notei,
sabia que ao meu pai aproveitava muito a tortice de minha mãe. com o
pé em modos de pouco andar, ela haveria de estar sempre por ali, e
mais que a fúria do meu pai pudesse acontecer um dia, à minha mãe
não lhe valeria corrida alguma. haveria de estar parada por
natureza, à mercê da sabedoria do marido. e mais nada se
intrometeria entre administração tão correcta de um casamento.
o
aldegundes pedia ao curandeiro pela sarga constantemente. que fosse a
vê-la, tão bom se nos dissesse como engordá-la, ainda que as
nossas rações fossem nenhumas de tanta pobreza, e que a erva lhe
parecesse sempre um tão desinteressante prato. mas ele não estava
pelos animais, e só a insistência do aldegundes e a anuência do
meu pai o levavam a olhar para a vaca e dizer que estava muito velha,
já era bênção suficiente que não morresse. mais do que isso ele
não fazia, nunca tocaria no animal, se depois seguia directo para a
casa de dom afonso, a vê-lo e à dona catarina, para lhe descobrir
chatos nas partes da natureza, como eu saberia mais tarde pela
brunilde, também contaminada pela praga, a coçar-se feia de gestos
pelo caminho, à vista de todos. não se apanham chatos durante a
virgindade, é o que se notava, e ela com catorze anos estava
solteira de noivos e maridos mas nada de castidades. o curandeiro
podia garanti-lo, informado das necessidades femininas dela, algumas
dores que lhe deram tempos antes, segredadas para que não fossem uma
gravidez indesejada. e não era.
o
aldegundes apartou-se embicado de arrelio e não quis falar com
ninguém. estava predisposto a deixar de ser amigo de todos, se a
sarga ficaria ali para correr quaisquer perigos sem apoio. agora que
a tiraríamos do seu poiso e a teríamos fora da casa, encostada a
uma parede debaixo de uns tristes tapumes, e se não nos batíamos
por que engordasse de forças e aspecto era porque a deixávamos a
morrer do azar da nossa tão grande desumanidade. o senhor santiago,
o curandeiro, fungou-lhe para cima e ordenou-lhe que crescesse de
atitudes e responsabilidades, não fosse perpetuar indecentemente a
fama do pai de dormir com vacas. e era o que se dizia, que dormia com
as vacas e a uma até lhe pediu os filhos que tinha, por isso a
tratava em casa como membro da família. assim terminou a visita.
todos nós para cada lado tombados de tanto nos enfiar dedos e mãos,
irritados, maltratados de termos uma vida cheia de maleitas de corpo
e imprecações de cabeça.
foi
o curandeiro que levou recado à minha amada. assim eu a tinha, posta
no coração de tanta ansiedade e fascínio de beleza. e ele
convinha, muito douto e sabedor, mesmo tocado de alguma nobreza pela
amizade que lhe vinha dos senhores dom afonso e dona catarina a salvo
nos seus cuidados, e lá me dizia, estás bom de corpo e cabeça,
darás bom juízo a uma rapariga tão criada. eu encolhia os ombros
de alegria e pedia-lhe informações. ele não me contava nada, e
verdade bastava-me que me dissesse dela a saúde e a curiosidade em
saber com quem se casaria. e assim era. perante a minha insistência,
ele acedeu a dizer-lhe que eu a amava e que, turvado desses
sentimentos por si, estaria disposto a elevá-la num matrimónio onde
a respeitasse como poucos maridos o fariam. aconselhou-me dos chatos
e dos preparos para a noite de conhecimento. como eu deveria estar
sem ameaças dessas pragas, para não imprimir uma dor logo no tempo
de ensino de como se dormia com um homem. que fosse delicado com ela
e não quisesse que a rapariga soubesse demasiado à primeira. tantos
homens estragam as mulheres por ganância de fazer tudo na primeira
noite. dão-lhes prática em demasia que lhes puxa ossos para além
do possível, até lhes tiram carne a caminho de entrarem, o que as
desfigura de apetites maiores para muito tempo ou mesmo para sempre.
tens de lhe dar tempo, deixar que aprenda e ganhe alguma confiança,
de outro modo fugirá de ti o resto da vida, assustada com o tanto
que a quiseste ter. e eu fazia contas à vontade e ao desejo, e
tentava começar a acalmar quando ainda só me apetecia metê-la
debaixo de mim e enervar-me ainda mais. mas era natural que estivesse
louco por conhecê-la e que acalmar me doesse, pois que sem
sacrifício nem mereceria tão perfeita moça.
era
o que revia, à noite, nas palhas da cama achegadas de lado para lado
na minha impaciência. o aldegundes a dormir de paz e eu no escuro a
medir o arfar da sarga e a pensar como mudaria tudo. como aquele
arfar sairia de dentro de casa e naquele mesmo lugar gemeríamos
casados de fresco, e como ali onde ainda estava se escutaria tudo
para deixar os meus pais envergonhados de velhice e o aldegundes
acordado de juventude. era só o que eu queria, que o curandeiro lhe
dissesse e ela se apaixonasse por mim, lavada de amores para se
prender aos meus planos e melhor obedecer ao nosso casamento.
Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião
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