Fortaleza.
Eu ia fazer uma fala. Aí me disseram que antes haveria um pequeno
concerto de uma orquestra de flautas de crianças pobres: sorriso no
rosto, camiseta abóbora, flautinhas na mão. O regente era um
mocinho magro. No fim, o Marcelo — esse era o seu nome — me
convidou a visitar a orquestrinha na cidade de Aquiraz, bairro
Tapera, a uma hora de Fortaleza.
O
concerto aconteceria numa chácara, à noite. Mangueiras enormes, céu
estrelado. Tocaram a sua alegria. Aí o Marcelo se juntou conosco.
Pedimos que contasse sua história.
Família
muito pobre. Pai bravo e batedor. Comiam os peixes que tarrafeavam
num rio. E era preciso trabalhar para ajudar. Marcelo trabalhava numa
padaria. Ganhava dez reais por mês. E ainda tarrafeava, depois de
terminado o trabalho na padaria.
O
seu grande sonho era ser músico, baterista. Pois um dia correu a
notícia de que iriam formar uma banda. Quem quisesse que se
candidatasse. O Marcelo se candidatou. Mas o homem que fez a
apresentação do projeto nada falou sobre baterias. Em vez disso,
tocou uma flautinha. O Marcelo se esqueceu da bateria e se apaixonou
pela flauta.
O
pai disse um “não” grosso e definitivo quando soube das
intenções do filho. “Flauta é coisa de vagabundo. Filho meu não
toca flauta...” Marcelo soube então que seu namoro com a flauta
teria de ser como os namoros antigos, escondido.
A
inscrição pra valer terminava às cinco da tarde. Marcelo, nessa
hora, estava na padaria. Só pôde sair muito mais tarde, de
bicicleta. No caminho, por aflição, caiu da bicicleta. Os peixes se
espalharam e ele ficou todo escalavrado.
E
foi assim que chegou ao lugar da inscrição com duas horas de
atraso. Mas o homem da inscrição ficou com dó dele e o inscreveu.
Ele tinha onze anos. Acontecia que a flauta custava dez reais, o
salário de todo um mês. Precisava ajuntar dinheiro. Passou a
caminhar olhando para o chão, em busca de moedas perdidas. Por um
ano, juntou moedas de um centavo. Completou os dez reais. Comprou a
flauta de plástico. Como não podia estudar em casa, pela braveza do
pai, passou a estudar no alto de um cajueiro, de noite, longe de
casa. No cajueiro guardava a flauta. Mas, num dia de chuva, ficou com
medo de que a flauta se estragasse com a água. Escondeu-a em casa.
No fim do dia, voltando do trabalho, o pai o esperava. Havia
encontrado a flauta. O pai acendeu uma fogueira e a queimou,
aplicando-lhe a seguir uma surra. Mas ele não desistiu.
Mais
um ano juntando centavos até comprar nova flauta. Aí ele arranjou
uma aluna. Pela aluna ganhava dez reais por mês! Uma fortuna. Outra
aluna, e mais outra. Nove alunas! Noventa reais. O pai passou a
gostar de flauta.
Foi
então que o Marcelo teve a ideia de ensinar flauta para as crianças
— sem nada ganhar. E assim surgiu a orquestra de flautas. Naquela
noite, debaixo da mangueira, ele tinha dezoito anos. “Eu tenho um
sonho”, ele disse. “Gostaria de ter uma flauta de verdade,
transversal. Mas ela custa muito caro. Vai levar muito tempo para
ajuntar o dinheiro...”
Aí
uma professora que estava na roda abriu-se num sorriso e disse:
“Marcelo, eu tenho uma flauta guardada numa caixa de veludo. Flauta
que ninguém toca... A flauta é sua!”.
Isso
aconteceu faz tempo. O Marcelo entrou para a universidade, tornou-se
flautista e regente. E continua ensinando música para as crianças
por puro prazer, sem ganhar dinheiro. E não sei por que, o fato é
que me elegeu seu padrinho... Tanta gente bonita e esforçada por
esse Brasil imenso. Dá esperança.
Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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