quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

o remorso de baltazar serapião | quatro


passava o curandeiro cheio de sabedoria e conselhos de boticário. alinhámo-nos em minutos para que nos verificasse as alterações de postura, cor e odores. ele rodava muito lento cerca de cada um e desconfiava de tudo, parecia procurar falhas como se fosse do espírito de cada pessoa. escarafunchava buracos todos, descobria-nos coisas nunca vistas na pele mais escondida. mas era pelo feitio exterior, como qualquer nódoa nas mãos que não saísse com água, que ele nos estudava. depois tirava instrumentos de bater ou apertar, passava as mãos sobre nós a magoar nas zonas doridas, e zangava-se pela nossa falta de atenção, já nem sabíamos como nos aleijáramos. ficávamos à espera que nos desempenasse braços, peito e pernas, que nos tapasse feridas abertas, que nos descobrisse parasitas ou outras coisas esquecidas no corpo. e ele lá nos mandava ao boticário também, a tirar da cabeça coisas para beber e comer de necessidade para a saúde, porque nos dava frio aos pulmões e respirar podia ser difícil, ou porque o estômago rejeitasse os melhores frutos que comesse. o curandeiro vinha sempre para esticar o pé à minha mãe, puxava-lho, ela a gritar, a desentortá-lo um bocado, como dizia, e que pena não poder fazê-lo mais vezes se, na insistência, o pé tornaria ao seu lugar. mas ela duvidava de medo, também atazanada com ele a mexer-lhe nos olhos, deitando-lhe vapores e bufando para dentro. o meu pai perdia muitas vezes a paciência, dizia que merda para aquelas coisas e, furioso, saía-nos da beira. o curandeiro gritava-lhe de alto, que às ordens de visita de dom afonso não haveria de ser mal obediente o meu pai. por isso, o sarga voltava mansinho de obrigação e permitia que o curandeiro lhe enfiasse dedo nos ouvidos a doer-lhe, como se fizesse de propósito. se o senhor sarga não ficar quieto ainda lhe dói mais, dizia quase sorrindo de dentes incrivelmente brancos. o curandeiro, eu notei, sabia que ao meu pai aproveitava muito a tortice de minha mãe. com o pé em modos de pouco andar, ela haveria de estar sempre por ali, e mais que a fúria do meu pai pudesse acontecer um dia, à minha mãe não lhe valeria corrida alguma. haveria de estar parada por natureza, à mercê da sabedoria do marido. e mais nada se intrometeria entre administração tão correcta de um casamento.
o aldegundes pedia ao curandeiro pela sarga constantemente. que fosse a vê-la, tão bom se nos dissesse como engordá-la, ainda que as nossas rações fossem nenhumas de tanta pobreza, e que a erva lhe parecesse sempre um tão desinteressante prato. mas ele não estava pelos animais, e só a insistência do aldegundes e a anuência do meu pai o levavam a olhar para a vaca e dizer que estava muito velha, já era bênção suficiente que não morresse. mais do que isso ele não fazia, nunca tocaria no animal, se depois seguia directo para a casa de dom afonso, a vê-lo e à dona catarina, para lhe descobrir chatos nas partes da natureza, como eu saberia mais tarde pela brunilde, também contaminada pela praga, a coçar-se feia de gestos pelo caminho, à vista de todos. não se apanham chatos durante a virgindade, é o que se notava, e ela com catorze anos estava solteira de noivos e maridos mas nada de castidades. o curandeiro podia garanti-lo, informado das necessidades femininas dela, algumas dores que lhe deram tempos antes, segredadas para que não fossem uma gravidez indesejada. e não era.
o aldegundes apartou-se embicado de arrelio e não quis falar com ninguém. estava predisposto a deixar de ser amigo de todos, se a sarga ficaria ali para correr quaisquer perigos sem apoio. agora que a tiraríamos do seu poiso e a teríamos fora da casa, encostada a uma parede debaixo de uns tristes tapumes, e se não nos batíamos por que engordasse de forças e aspecto era porque a deixávamos a morrer do azar da nossa tão grande desumanidade. o senhor santiago, o curandeiro, fungou-lhe para cima e ordenou-lhe que crescesse de atitudes e responsabilidades, não fosse perpetuar indecentemente a fama do pai de dormir com vacas. e era o que se dizia, que dormia com as vacas e a uma até lhe pediu os filhos que tinha, por isso a tratava em casa como membro da família. assim terminou a visita. todos nós para cada lado tombados de tanto nos enfiar dedos e mãos, irritados, maltratados de termos uma vida cheia de maleitas de corpo e imprecações de cabeça.
foi o curandeiro que levou recado à minha amada. assim eu a tinha, posta no coração de tanta ansiedade e fascínio de beleza. e ele convinha, muito douto e sabedor, mesmo tocado de alguma nobreza pela amizade que lhe vinha dos senhores dom afonso e dona catarina a salvo nos seus cuidados, e lá me dizia, estás bom de corpo e cabeça, darás bom juízo a uma rapariga tão criada. eu encolhia os ombros de alegria e pedia-lhe informações. ele não me contava nada, e verdade bastava-me que me dissesse dela a saúde e a curiosidade em saber com quem se casaria. e assim era. perante a minha insistência, ele acedeu a dizer-lhe que eu a amava e que, turvado desses sentimentos por si, estaria disposto a elevá-la num matrimónio onde a respeitasse como poucos maridos o fariam. aconselhou-me dos chatos e dos preparos para a noite de conhecimento. como eu deveria estar sem ameaças dessas pragas, para não imprimir uma dor logo no tempo de ensino de como se dormia com um homem. que fosse delicado com ela e não quisesse que a rapariga soubesse demasiado à primeira. tantos homens estragam as mulheres por ganância de fazer tudo na primeira noite. dão-lhes prática em demasia que lhes puxa ossos para além do possível, até lhes tiram carne a caminho de entrarem, o que as desfigura de apetites maiores para muito tempo ou mesmo para sempre. tens de lhe dar tempo, deixar que aprenda e ganhe alguma confiança, de outro modo fugirá de ti o resto da vida, assustada com o tanto que a quiseste ter. e eu fazia contas à vontade e ao desejo, e tentava começar a acalmar quando ainda só me apetecia metê-la debaixo de mim e enervar-me ainda mais. mas era natural que estivesse louco por conhecê-la e que acalmar me doesse, pois que sem sacrifício nem mereceria tão perfeita moça.
era o que revia, à noite, nas palhas da cama achegadas de lado para lado na minha impaciência. o aldegundes a dormir de paz e eu no escuro a medir o arfar da sarga e a pensar como mudaria tudo. como aquele arfar sairia de dentro de casa e naquele mesmo lugar gemeríamos casados de fresco, e como ali onde ainda estava se escutaria tudo para deixar os meus pais envergonhados de velhice e o aldegundes acordado de juventude. era só o que eu queria, que o curandeiro lhe dissesse e ela se apaixonasse por mim, lavada de amores para se prender aos meus planos e melhor obedecer ao nosso casamento.

Valter Hugo Mãe, em o remorso de baltazar serapião

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