Há
uma estátua de Sidney Bechet em algum lugar de Paris. Ele e
Josephine Baker, em épocas diferentes — Josephine foi antes —
foram os dois maiores exemplos de artistas negros americanos adotados
por Paris. Onde, além de um refúgio do racismo, encontraram fama e
favores como não tinham em casa. Até hoje Bechet tem mais reputação
na França do que nos Estados Unidos. Era um tipo curioso, que
cultivava com cuidado a própria singularidade. Para começar, tocava
saxofone soprano, um instrumento raro no jazz ainda hoje. (Por favor,
se você lembrou do Kenny G, pare de ler imediatamente.) Até John
Coltrane começar a usá-lo com regularidade, só Bechet, Eric Dolphy
e outros poucos jazzistas tocavam o sax soprano. Bechet era um
mestre. Conhecido pela sua vaidade, tanto quanto pelo temperamento
explosivo e a excentricidade, Bechet nunca discordou dos franceses
que o idolatravam. Sua interpretação mais famosa é da sua própria
composição Petite fleur.
Bechet
é um bom exemplo do outro lado da relação de Paris com os seus
expatriados. Para alguns o exílio em Paris foi uma liberação e uma
educação, para outros Paris acabou sendo um retiro quase
provinciano, e um atraso. É enorme a lista das vanguardas que
floresceram na cidade, embora seja relativamente pequeno o número
das que nasceram lá, mas muitos — principalmente os americanos —
só aproveitaram de Paris o pitoresco e o aluguel baixo. Com a
possível exceção de Gertrude Stein, cuja sensibilidade já era
meio europeia, todos os outros brancos (Hemingway, Fitzgerald,
Miller, etc.) provavelmente fariam o que fizeram com ou sem o seu
rito de passagem por Paris. E se para estes Paris foi só paisagem,
para artistas tipo Bechet, mimado além da conta por razões que não
tinham a ver com a música, Paris foi um mundo protegido, diminuído
e finalmente diminuidor.
Para
os seus contemporâneos no jazz, Bechet morreu como uma curiosidade,
mais uma mania francesa do que um grande músico. O pianista Bud
Powell, supostamente o modelo para o personagem do filme Round about
Midnight, teria tido o mesmo destino de Bechet se não preferisse
voltar para Nova York, a sujeira, as drogas, o ódio racial e a
realidade. Morreu moço e louco, mas com a reputação de gênio.
Para Bechet o exílio foi uma espécie de abstenção. E ele foi um
precursor da estranheza americana com o gosto francês em americanos
que culminou com as exegeses críticas da obra de Jerry Lewis. Em
Paris, Bechet estava longe da zona de combate, onde a sensibilidade
jazzística brigava com o crasso comercialismo, a incompreensão, a
discriminação e o embrutecimento, mas onde as reputações que
contavam eram feitas.
Muitos
exilados em Paris eram isso, combatentes longe da ação. Viviam no
centro do mundo com a sensação de que sua vida devia estar
acontecendo em outro lugar. O próprio Bechet se livrou da síndrome
porque era tão vaidoso, dizem, que achava que era, pessoalmente, o
centro do mundo.
Em
Paris há uma academia de música russa cujo refeitório é aberto ao
público. Comida previsível — o estrogonofe, fica-se sabendo, não
foi uma invenção de anfitriãs brasileiras nos anos cinquenta, é
russo mesmo —, mas boa e barata. Come-se no porão da academia em
meio a retratos de compositores russos e uma decoração pobre mas
evocativa. Bonecas e balalaicas e um velho rádio de madeira no qual
jamais se ouvirá que o tzar voltou. Há algo de melancólico nestes
enclaves de nostalgia para refugiados de outros tempos, embora
ninguém à nossa volta parecesse muito russo ou ressentido.
Justamente por ser a cidade mais cosmopolita do mundo, Paris acabou
sendo uma confederação de deslocados, de pequenas comunidades
desterradas, cada uma com suas saudades e suas queixas em mau
francês.
Todas
as diásporas do século dos refugiados se cruzaram em Paris. Pode-se
mesmo fazer uma recapitulação deste século cruel através das
lembranças de terras abandonadas grudadas nas suas paredes. Russos
corridos da sua terra pela História, portugueses corridos da sua
terra pela miséria, brasileiros exilados amaldiçoando o frio e o
feijão-branco e sonhando em voltar para retomar suas vidas
consequentes, ou pelo menos se atualizar com a gíria. A vida de
verdade acontecendo longe de todos eles. A vida cosmopolita sendo,
como para Sidney Bechet, um sinônimo de irrelevância.
Na
saída da academia russa dá-se com a Torre Eiffel do outro lado do
rio. A torre foi inaugurada no começo do século dos refugiados. O
exílio foi o fato intelectual do século XX e provocou ou inspirou
os artistas que não diminuiu.
Mas
ô século desgraçado.
Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis
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