Não
sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um
poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos:
Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de
los troncos.
E
tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda
uma vez sobre o mistério da poesia.
O
poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram.
Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido,
tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses
momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de
consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me
agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa
coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De
onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos
versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno
trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar.
Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer
usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo;
ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras
usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que
tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno,
Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
Isso
me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as
palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das
coisas que passaram.”
Talvez
o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido
solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a
ideia da canoa é também um motivo de emoção.
Não
há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco
de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande
beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me
emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e
de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o
do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade
aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada
e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se
muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que
procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem
a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia
e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso
não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais
profundas…
Rubem Braga, em A traição das elegantes
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