terça-feira, 25 de julho de 2023

Admirável gado novo | Zé Ramalho, 1980



Num caldeirão em que se misturam literatura de cordel e ficção científica, o rock dos Beatles e dos Stones, o folk elétrico de Dylan, o iê-iê-iê da Jovem Guarda e o baião de Luiz Gonzaga, Zé Ramalho forjou seu estilo original, ganhando lugar na música popular brasileira também como um vigoroso e personalíssimo cantor de voz grave e rascante, fora dos padrões da época e reconhecível às primeiras notas.
Zé também se tornou conhecido por suas letras barrocas e elaboradas a partir de sua vasta cultura do cordel e dos grandes repentistas, como em “Avohai”, “Frevo mulher” e “Vila do sossego”:
Meu treponema não é pálido nem viscoso / Os meus gametas se agrupam no meu som / E as querubinas meninas rever / Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço / Chame o padre Ciço para me benzer.”
Admirável gado novo” é o melhor exemplo da força, audácia e personalidade do seu estilo, com letras delirantes, irônicas e contundentes integradas ao Nordeste elétrico de suas músicas. A sua letra de protesto entre o cordel e o manifesto político questiona e provoca a passividade da massa manipulada pelos poderes dominantes, num paralelo paródico com a distopia criada pelo escritor inglês Aldous Huxley no livro Admirável mundo novo.
Destaque nas rádios do segundo álbum solo de Zé Ramalho, A peleja do Diabo com o Dono do Céu, lançado no fim de 1979, “Admirável gado novo” teve um segundo surto de popularidade quase duas décadas depois. A mesma gravação, com arranjo do tecladista Paulo Machado, foi incluída, como tema dos personagens sem-terra, na trilha sonora da novela O rei do gado (Rede Globo, 1996/1997) com espetacular sucesso popular de Norte a Sul do Brasil. Ainda em 1997, uma vigorosa versão de Cássia Eller (na coletânea Música urbana) explodiu nas rádios, universalizando e dando nova vida à canção.
Nascido em 3 de outubro de 1949 em Brejo da Cruz, interior da Paraíba, Zé chegou a João Pessoa na adolescência e deu seus primeiros passos musicais influenciado pelo rock e pela Jovem Guarda. Em 1975, gravou ao lado do pernambucano Lula Côrtes o lendário e ultraunderground álbum Paêbiru, de rock nordestino e psicodélico, que foi ignorado na época mas virou um dos álbuns mais procurados por adoradores de vinil do mundo inteiro. Zé Ramalho começou a ser reconhecido a partir de 1976, participando da banda elétrica de Alceu Valença. Dois anos depois, seu primeiro álbum solo já anunciava a alquimia sonora e poética que ele iria sintetizar em “Admirável gado novo”.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário