terça-feira, 25 de julho de 2023

O homem que calculava | Capítulo 11


11. Vamos aqui narrar como iniciou Beremiz o seu curso de Matemática. Uma frase de Platão. A unidade e Deus. Que é medir. As partes que formam a Matemática. A Aritmética e os Números. A Álgebra e as relações. A Geometria e as formas. A Mecânica e a Astronomia. Um sonho do rei Asad-Abu-Carib. A “aluna invisível” ergue a Alá uma prece.

O aposento em que devia Beremiz realizar o seu curso de Matemática era espaçoso. Dividia-o ao centro pesado e farto reposteiro de veludo vermelho que descia do teto até o chão. O teto era colorido e as colunas douradas. Achavam-se espalhadas sobre os tapetes grandes almofadas de seda com legendas do Alcorão.
Adornavam as paredes caprichosos arabescos azuis entrelaçados com lindos versos de Antar (1) o poeta do deserto. Lia-se ao centro, entre duas colunas, em letras de ouro, em fundo azul, este dístico notável, colhido, certamente, na moalakat(2) de Antar:
Quando Alá quer bem a um de seus servidores, abre para ele as portas da Inspiração.”
Sentia-se um perfume suave de incenso e rosa. A tarde declinava.
As janelas de mármore polido estavam abertas e deixavam ver o jardim e os frondosos pomares que se estendiam até o rio pardacento e triste.
Uma escrava morena, tipo de formosura circassiana, mantinha-se de pé, imóvel, o rosto descoberto, junto à porta. As suas unhas eram pintadas de hena.
A vossa filha já se acha presente? — perguntou Beremiz ao xeque.
Decerto que sim — respondeu Iezid. — Mandei-a estar na outra parte deste aposento atrás do reposteiro, de onde poderá ver e ouvir; estará, porém, invisível para os que aqui se acham.
Realmente. As coisas eram dispostas de tal forma que nem mesmo se distinguia o vulto da jovem que ia ser discípula de Beremiz. Era bem possível que ela estivesse a observar-nos por algum pequenino orifício feito na peça de veludo, e para nós imperceptível.
Penso que já é oportuno dar início à primeira lição — advertiu o xeque.
E indagou com meiguice:
Estás atenta, Telassim, minha filha?
Sim, meu pai — respondeu bem timbrada voz feminina do outro lado do aposento.
Diante disso preparou-se Beremiz para a aula: cruzou as pernas e sentou-se sobre uma almofada, no centro da sala; coloquei-me discretamente a um canto e acomodei-me como pude. A meu lado veio sentar-se o xeque Iezid.
Toda pesquisa de ciência é precedida pela prece. Foi, pois, com a prece que Beremiz iniciou:
Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente criador de todos os mundos! A misericórdia é em Deus o atributo supremo! Nós Te adoramos, Senhor, e imploramos a Tua assistência! Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho dos esclarecidos e abençoados por Ti(3).
Finda a prece, o calculista assim falou:
Quando olhamos, senhora, para o céu em noite calma e límpida, sentimos que a nossa inteligência é franzina para conceber a obra maravilhosa do Criador. Diante dos nossos olhos pasmados, as estrelas são uma caravana luminosa a desfilar pelo deserto insondável do infinito, as nebulosas imensas e os planetas rolam, segundo leis eternas, pelos abismos do espaço! Uma noção, entretanto, surge logo, bem nítida, em nosso espírito: a noção de número.
Viveu outrora, na Grécia, quando esse país era dominado pelo paganismo, um filósofo notável chamado Pitágoras(4) (Alá, porém, é mais sábio!). Consultado por um discípulo sobre as forças dominantes dos destinos dos homens, o grande sábio respondeu: “Os números governam o mundo!”
Realmente. O pensamento mais simples não pode ser formulado sem nele se envolver, sob múltiplos aspectos, o conceito fundamental do número. O beduíno que no meio do deserto, no momento da prece, murmura o nome de Deus tem o espírito dominado por um número: a Unidade! Sim, Deus, segundo a verdade expressa nas páginas do Livro Santo e repetida pelos lábios do Profeta, é Um, Eterno e Imutável! Logo, o número aparece no quadro da nossa inteligência como o símbolo do Criador.
Do número, senhora, que é a base da razão e do entendimento, surge outra noção de indiscutível importância: é a noção de medida.
Medir, senhora, é comparar. Só são, entretanto, suscetíveis de medida as grandezas que admitem um elemento como base de comparação. Será possível medir-se a extensão do espaço? De modo nenhum. O espaço é infinito, e sendo assim, não admite termo de comparação. Será possível avaliar a Eternidade? De modo nenhum. Dentro das possibilidades humanas o tempo é sempre infinito, e no cálculo da Eternidade não pode o efêmero servir de unidade a avaliações.
Em muitos casos, entretanto, ser-nos-á possível representar uma grandeza que não se adapta aos sistemas de medidas por outra que pode ser avaliada com segurança e vigor. Essa permuta de grandeza, visando a simplificar os processos de medida, constitui o objeto principal de uma ciência que os homens denominam Matemática (5).
Para atingir o seu objetivo, precisa a Matemática estudar os números, suas propriedades e transformações. Nessa parte ela toma o nome de Aritmética. Conhecidos os números é possível aplicá-los na avaliação das grandezas que variam ou que são desconhecidas, mas que se apresentam expressas por meio de relações e fórmulas. Temos assim a Álgebra. Os valores que medimos no campo da realidade são representados por corpos materiais ou por símbolos; em qualquer caso, entretanto, esses corpos ou símbolos são dotados de três atributos: forma, tamanho e posição. Importa, pois, que estudemos tais atributos. E esse estudo vai constituir o objeto da Geometria.
Interessa-se, ainda, a Matemática, pelas leis que regem os movimentos e as forças, leis que vão aparecer na admirável ciência que se denomina Mecânica.
A Matemática põe todos os seus preciosos recursos a serviço de uma ciência que eleva a alma e engrandece o homem. Essa ciência é a Astronomia.
Falam alguns nas Ciências Matemáticas, como se a Aritmética, a Álgebra e a Geometria formassem partes inteiramente distintas. Puro engano!
Todas se auxiliam mutuamente, se apoiam umas nas outras e, em certos pontos, se confundem.
A Matemática, senhora, que ensina o homem a ser simples e modesto, é a base de todas as ciências e de todas as artes.
Um episódio ocorrido com o famoso monarca iemenita(6) é bastante expressivo.
Vou narrá-lo.

Asad-Abu-Carib(7), rei do Iêmen, ao repousar, certa vez, na larga varanda de seu palácio, sonhou que encontrara sete jovens que caminhavam por uma estrada. Em certo momento, vencidas pela fadiga e pela sede, as jovens pararam sob o sol causticante do deserto. Surgiu, nesse momento, uma famosa princesa que se aproximou das peregrinas, trazendo-lhes um grande cântaro cheio de água pura e fresca. A bondosa princesa saciou a sede que torturava as jovens e estas, reanimadas, puderam reiniciar a jornada interrompida.
Ao despertar, impressionado com esse inexplicável sonho, determinou Asad-Abu-Carib viesse à sua presença um astrólogo famoso, chamado Sanib, e consultou-o sobre a significação daquela cena a que ele — rei poderoso e justo — assistira no mundo das Visões e Fantasias. Disse Sanib, o astrólogo: “Senhor! As sete jovens que caminhavam pela estrada eram as artes divinas e as ciências humanas: a Pintura, a Música, a Escultura, a Arquitetura, a Retórica, a Dialética e a Filosofia. A princesa prestativa que as socorreu simboliza a grande e prodigiosa Matemática.” “Sem o auxílio da Matemática — prosseguiu o sábio — as artes não podem progredir e todas as outras ciências perecem.” Impressionado com tais palavras, determinou o rei que se organizassem em todas as cidades, oásis e aldeias do país centros de estudo de Matemática. Hábeis e eloquentes ulemás, por ordem do soberano, iam aos bazares e caravançarás lecionar Aritmética aos caravaneiros e beduínos. Ao termo de poucos meses, verificou que o país era agitado por um surto de incomparável prosperidade. Paralelamente ao progresso da ciência, cresciam os recursos materiais; as escolas viviam repletas; o comércio desenvolvia-se de maneira prodigiosa; multiplicavam-se as obras de arte; erguiam-se monumentos; as cidades viviam repletas de ricos forasteiros e curiosos.
O país do Iêmen teria aberto as portas do Progresso e da Riqueza se não viesse a fatalidade (Maktub!) pôr termo àquele fervilhar de trabalho e prosperidade. O rei Asad-Abu-Carib cerrou os olhos para o mundo e foi levado pelo impiedoso Asrail(8) para o céu de Alá. A morte do soberano fez abrir dois túmulos: um deles acolheu o corpo do glorioso monarca e ao outro foi atirada a cultura científica do povo. Subiu ao trono um príncipe vaidoso, indolente e de acanhados dotes intelectuais. Preocupavam-no mais os divertimentos do que os problemas administrativos do país. Poucos meses decorridos, todos os serviços públicos estavam desorganizados, as escolas fechadas e os artistas e ulemás forçados a fugir sob a ameaça dos perversos e ladrões. O tesouro público foi criminosamente dilapidado em ociosos festins e desenfreados banquetes. E o país, levado à ruína pelo desgoverno, foi atacado por inimigos ambiciosos e facilmente vencido.
A história de Asad-Abu-Carib, senhora, vem provar que o progresso de um povo se acha ligado ao desenvolvimento dos estudos matemáticos(9). No Universo tudo é número e medida. A Unidade, símbolo do Criador, é o princípio de todas as coisas, que não existem senão em virtude das imutáveis proporções e relações numéricas. Todos os grandes enigmas da vida podem ser reduzidos a simples combinações de elementos variáveis ou constantes, conhecidos ou incógnitos.
Para que possamos compreender a Ciência, precisamos tomar por base o número. Vejamos como estudá-lo, com a ajuda de Alá, Clemente e Misericordioso!
Uassalã!
Com essas palavras calou-se o calculista, dando por finda a sua primeira aula de Matemática.
Ouvimos, então, com agradável surpresa, a aluna, que o reposteiro tornava invisível, pronunciar a seguinte prece.
Ó Deus Onipotente, Criador do Céu e da Terra, perdoa a pobreza, a pequenez, a puerilidade de nossos corações. Não escutes as nossas palavras, mas sim os nossos gemidos inexprimíveis; não atendas às nossas petições, mas ao clamor de nossas necessidades. Quanta vez pedimos aquilo que possuímos e deixamos desaproveitado! Quanta vez sonhamos possuir aquilo que nunca poderá ser nosso!
Ó Deus, nós Te agradecemos por este mundo, nosso grande lar; por sua vastidão e riqueza, e pela vida multiforme que nele estua e de que todos fazemos parte. Louvamos-Te pelo esplendor do céu azul e pela brisa da tarde, e pelas nuvens rápidas e pelas constelações nas alturas. Louvamos-Te pelos oceanos imensos, pela água corrente, pelas montanhas eternas, pelas árvores frondosas e pela relva macia em que os nossos pés repousam. Nós Te agradecemos os múltiplos encantos com que podemos sentir, em nossa alma, as belezas da Vida e do Amor!
Ó Deus, Clemente e Misericordioso, perdoa a pobreza, a pequenez, a puerilidade de nossos corações.

Notas:

(1) Famoso poeta.
(2) Ver Glossário.
(3) Primeira surata do Alcorão.
(4) Um muçulmano ortodoxo, quando se refere, com certa ênfase, a um sábio, acrescenta a fórmula clássica: Alá, porém, é mais sábio.
(5) No tempo de Beremiz a ciência teria a denominação de Geometria.
(6) Natural do Iêmen.
(7) Ver Índice no final deste livro.
(8) Anjo da Morte. O rei Asad-Abu-Carib foi assassinado por conspiradores. Depois de sua morte subiu ao trono um aventureiro chamado Rébia-Ben-Nasr. O episódio do sonho é lendário.
(9) Cabe lembrar aqui a frase notável de Napoleão: “O progresso de um povo depende, exclusivamente, do desenvolvimento da cultura matemática.”

Malba Tahan, in O homem que calculava

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