domingo, 21 de maio de 2023

Passeio

 

Ilustração: Leya Mira Brander


Aconteceu que o pai, à mesa de jantar, disse de repente: Sábado vamos lá. A menina, mais rápida que o irmão, perguntou, Lá onde, pai?, e ele, |Não posso falar, é surpresa, e o garoto, Fala, pai, aonde a gente vai?, e ele, já vendo a felicidade futura dos filhos, sorriu, enigmático, Sábado, à tarde!, e continuou a comer, como se nada tivesse acontecido — o mundo de sempre funcionando. Aquela era só a notícia, a hora de vivê-la seria adiante; a mãe, mesmo sem saber qual o plano do marido, disse, em seu auxílio, A semana passa depressa!, e, com efeito, já estavam em sua metade.
Mas os filhos queriam tudo imediato da vida e ficaram atiçados, aquele “lá” tinha sido vento em brasa, eles ardiam de curiosidade, o garoto mais, por ser menor; a menina, no seu canto, esperta, pensando, pensando, Vou descobrir! Fosse a praça, redonda, onde alugavam bicicleta e faziam piquenique; ou o parque, grande, de tanto verde, que não entrava de uma só vez em seus olhos; já estariam contentes. Mas lá, lá onde seria?
Não podiam se conter, os dois estavam além dessa noite. E era hora de dormir. Como manter a calma com aquela alegria, ainda sem forma, lá na frente? Sonhavam sem sono em suas camas. Reviravam-se, igualmente, nas dobras do lençol e da imaginação. Sorriam no escuro, só sentindo essa dúvida boa, onde?, onde?. O pai era mesmo de revelar aos poucos, para que vissem tudo, devagar, na sua inteireza. O cansaço, contudo, pedia-lhes mais corpo. E ganhou. O garoto foi o primeiro a dormir: arquitetava desejos e fatos, mesclando-os quando, de súbito, já ressonava alto; a respiração forte, no sonho certamente ele corria, era a sede dos dias seguintes. A menina, em seguida: nos lábios, o som silente de umas palavras adivinhas: shopping, karaokê, Playcenter. O que seria? O passeio, misterioso! Mas como são grossas as camadas da certeza, a menina não podia penetrá-las e ficou só na sua superfície, inventando lugares menores, se comparados à realidade. Bocejou uma vez. Duas. Dormiu.
E, de súbito, já era o dia seguinte.
E depois a noite desse dia.
E logo outro dia.
E a sua noite correspondente.
No meio dessas horas todas, entre sol e sono, os dois irmãos reouviam, na memória, o anúncio do pai, Sábado vamos lá, e experimentavam a mesma feliz aflição, de saber já o quê e o quando, mas não o onde ainda encoberto. E como o eco retornava, também se reesqueciam, tinham as suas urgências. Mas aí, de repente, relembravam. O garoto rodeava o pai, Aonde a gente vai?, a menina jogava verde com a mãe, Na quermesse?, insistiam, insistiam, e nada. Melhor era viver sem expectativas a chegada do sábado.
E esperaram assim, sem perceber, cuidando do que era próprio de sua idade — os deveres da escola, o direito às brincadeiras.
E o sábado chegou.
Dia claro, o sol abriu cedo a manhã. Ninguém se lembrava do passeio, mas o passeio estava lá nas suas profundezas. Bastava atirar a primeira palavra para acordá-lo, e foi o pai — só podia ser ele — quem o fez no café da manhã, dizendo: Vamos sair às três! E aí o sorriso de um canto a outro da mesa, a curiosidade vívida das crianças, o mistério, enfim, com a sua hora do parto marcada.
Ainda havia uma chance de descobrir, e o garoto não a deixou passar, Posso levar skate? O pai, Melhor não. A resposta já reduzia as opções, não era campo, praça, parque. A menina perguntou, Posso levar um gibi? O pai, Lá você não vai querer ler, e completou, só se for no caminho. E antes que replicassem, ele completou, é meio longe, vamos de ônibus! A mãe observava os filhos, também ignorava qual o programa, e achou prudente perguntar, Preparo uns lanches?, ao que o marido respondeu, Não, não precisa, a gente come lá!
O mistério prosseguia. O pai com o novelo da surpresa só para ele. Então, cada um foi gastar com alguma coisa a leveza de seu sábado: o garoto com o cachorro no quintal, a menina com seus CDs, a mãe com as providências para o almoço. Assim, o devagar das horas passou depressa enquanto eles ocupavam as mãos e, sobretudo, a mente.
E pronto: já era o tempo de ir.
A mãe queria tirar umas dúvidas: Com que roupa? O marido, à porta do quarto, Confortável, e ela, Vestido ou calça jeans?, e ele, Vestido, e ela, Bolsa grande ou pequena?, e ele, Pequena, e ela, com um fiozinho de impaciência, Mas, afinal, aonde vamos?, e ele, Mais uns minutos e você saberá.
Deu a hora combinada.
Lá foi a família. O pai à frente, rebocando a mulher e os filhos até o ponto de ônibus. Esperaram em pé, o orgulho no olhar. Passou um, passou outro. Era o terceiro. O pai viu, É aquele, e acenou, vamos, vamos! O ônibus encostou e abriu a porta: entraram, rápidos, e se sentaram ao fundo. A realidade junto, generosa naquele instante, passeio iniciado. Os dois irmãos continuavam sem saber onde era , mas já provavam uma alegria modesta. E trataram de engordá-la: uma freada do ônibus os atirou um sobre o outro, e eis que riram, gargalharam. A mãe de olho, Cuidado, segurem firme!, o pai feliz também, era isso o que desejava, os filhos daquele jeito, o bom da diversão era ela toda — o caminho.
Primeiro, da janela, viram o bairro de sempre, Olha, olha, o supermercado, a igreja, a escola: tudo há muito conhecido, embora fosse um ver novo, com o contentamento. Depois, o ônibus os levou pela primeira vez a umas ruas nervosas, edifícios velhos dos dois lados, até desembocar numa praça cercada de árvores. Aí foram dar numa avenida de tráfego veloz, depois passaram por uns bairros bonitos; parecia outra cidade: casarões imponentes, alamedas, jardins. E essa outra cidade os via dentro do ônibus, à espera do que vinha. O garoto provocava a menina para aumentar a graça da viagem; o pai e a mãe sorrindo-se e, de repente, de mãos dadas, o vento suave nos cabelos.
Então, uma sombra enorme cobriu a avenida por onde o ônibus seguia e, depois de sumir, deixou-a como antes. Logo à frente, puderam ver no céu o que era — Nossa! —, um avião. Rasante, planava quase a tocar os prédios: o ventre bojudo de metal, as asas estalando ao sol, o som trovejando atrás feito um rabicho.
Admiradas, as crianças esticaram os olhos para ver no seu rever o avião, imenso, sumindo sobre os edifícios, era o seu pouso. Até então tinham visto os aviões só pequenos, no muito alto do céu, entre nuvens, sem os detalhes de agora e — descobriam, naquele momento — que eram, em verdade, sempre grandes. Tão despropositada era essa visão, que cutucaram o pai e a mãe perguntando o óbvio, se também tinham visto, como se o avião fosse um passarinho e só o olhar atento, de criança, pudesse percebê-lo na paisagem.
O ônibus fez uma curva, pegou uma rua lateral e eis um novo redemoinho de excitação: no horizonte, vindo da esquerda, outro avião sobrevoava baixinho os edifícios e seguia rugindo para a mesma direção. O pai disse, É no próximo ponto!, e se levantou com a mãe. Os filhos o imitaram com atraso, flertando ainda o avião em seus pormenores, o bico, as asas…
Saltaram do ônibus no meio de uma longa avenida. Atravessaram-na por uma passarela e, já do outro lado, caminharam algum tempo. Antes que o pai dissesse, os irmãos já sabiam. Era lá, o pleno passeio. O coração deles estremecia, com os primeiros encantos… Dali, podiam avistar a entrada principal do aeroporto, a torre de controle, um trecho da pista onde um avião taxiava lentamente, sem que soubessem se era sua partida ou chegada. Também não importava: só queriam vê-lo, com os olhos da certeza, aquele era o instante, sem o antes e o depois, o imediato real — o avião, sólido, movia-se, mais e mais, fora da neblina do sonho. A família, igualmente, seguia devagarinho pela calçada, rumo ao seu destino.
O pai, no comando, conduziu-os à área de desembarque. Gente e mais gente afluía de várias direções, com bolsas a tiracolo, mochila às costas, malas sobre carrinhos. O frenesi excitava e entontecia. A mãe se pôs entre os filhos, dando-lhes as mãos para que não se perdessem entre as pessoas. Chegaram a uma porta de vidro, que se abriu, automaticamente. Entraram. O pai, Vamos, é lá em cima, e seguiu para a escada rolante, margeando os guichês das companhias aéreas.
Subiram, a curiosidade acelerada. Um andar mais calmo, e também eles num novo estado, acima. Ali, o mirante. Uma aglomeração de pessoas em frente à imensa janela panorâmica. Todas para ver além do vão do seu dia. Os irmãos achataram o nariz no vidro, como se quisessem transpô-lo. Latejava nos dois a felicidade, e era muita: até incômoda. Assistiam àquele trecho do mundo, inteiros, que tudo o mais era de força menor. O quadro se fazia e se refazia, móvel: dezenas de jatos estacionados com as portas abertas; ao redor, um ir e vir de tratores e ônibus, o sol atrás dos prédios, e, tocando a pista, agora pousava um avião, Olha lá, olha lá! Chegava, enfim, a hora máxima.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

Nenhum comentário:

Postar um comentário