Vó,
tenho escrito semanalmente para o maior jornal do país. Gosto muito
da experiência de me comunicar pela escrita, assim posso dar
continuidade a tantos anos escrevendo nos meus cadernos de anotações.
No primeiro texto da minha coluna, decidi declarar meu amor pela
cantora Whitney Houston. Tenho certeza de que você teria comprado o
jornal e mostrado para todas as vizinhas, falando do orgulho que
sentia pela neta de Santos. Eu escrevi essa coluna pensando em você,
quase uma pequena antecipação dessas cartas que lhe escrevo agora.
Eu
sentia medo de me expor, você sabe como as pessoas são cruéis com
mulheres como nós. Era a coluna de estreia, os leitores esperavam
que eu abordasse o tema pelos quais me tornei conhecida na esfera
pública: desigualdade racial e de gênero. Vou copiar um trecho aqui
para você, pois foi a ideia de te escrever que me abriu as portas. O
nome do artigo é “Desculpe, Whitney”:
Eu
fiz uma escolha política de abordar temas como racismo estrutural,
sexismo, opressão de classe em meus trabalhos. Nasci em uma família
de militantes, desde cedo participo de reuniões e encontros do
movimento negro. Na adolescência, já atuava em organizações e
coletivos e sigo na luta.
Porém,
é importante se humanizar ao se permitir falar do que se tem
vontade, sem se importar com aquela cobrança chata de “e aí, não
vai falar sobre tal coisa?”.
Às
vezes, estou tomando cerveja, e não é incomum alguém aparecer e
dizer: “Nossa, racismo é pesado, né?”. Nessas horas, penso:
“Muito, mas hoje eu só queria tomar uma cerveja”.
Essa
imagem da mulher negra forte é muito cruel. As pessoas se esquecem
de que não somos naturalmente fortes. Precisamos ser fortes porque o
Estado e a iniciativa privada são omissos e violentos.
Restituir
a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias da
condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas. E pergunto:
quando seremos humanas? Aos que não me conhecem, muito prazer,
falarei de temas diversos. Aos que conhecem, sinto se decepcioná-los
por não corresponder à imagem que podem ter criado. Aqui, quero,
como diz a pensadora Grada Kilomba, “ter a liberdade humana de ser
eu”.
Quero
falar que a última diva pop foi Whitney Houston, peço desculpas aos
fãs da Beyoncé. Nada contra, já a defendi em debates calorosos, só
não curto muita pirotecnia. Amo como Whitney dominava o palco
sozinha, sem dançarinos, no gogó. Assisti algumas vezes ao
documentário sobre sua vida, chamado Can I Be Me e refleti muito.
“Posso ser eu?” Deve ter sido doloroso seguir o que todos
queriam, empresários, família, militância e, apesar de ser genial,
ser reduzida a “viciada”.
Uma
mulher triste, assim começa o documentário. Impossível não pensar
na relação entre “quero ter a liberdade humana de ser eu” e
“can I be me?”, apesar de uma ser afirmação e a outra, o
desejo, a espera eterna pela permissão que nunca vem. Desculpe,
Whitney, eles sabem o que fazem e o fazem mesmo assim. Agradeço por
“The Greatest Love of All”, aliás, ouvir essa música no repeat
do meu radinho Lenoxx me livrou de muitas armadilhas.
Eu
decidi há muito tempo
Nunca
andar na sombra de alguém
Se
eu falhei, se eu fui bem-sucedido
Pelo
menos eu vivi como eu acreditei
Não
importa o que possam tirar de mim
Eles
não podem tirar minha dignidade
Porque
o maior amor de todos
Está
acontecendo comigo
Eu
encontrei o maior amor de todos dentro de mim
Piegas?
Pode ser, mas hoje não ligo. Durante muito tempo, em círculos
acadêmicos, escondi meu amor por Whitney. “Lixo da indústria
cultural”, eles diziam. De fato, há muita coisa ruim na era das
vozes moduladas, mas como falar em bom gosto numa sociedade de
massas?
Eles
se esqueceram da infância pobre e do racismo, de como ela aprendeu a
cantar em igrejas, do relacionamento abusivo e de que havia ali um
ser humano de talento engolido por uma indústria — e que, mesmo
assim, cantava com verdade. Esse é um dos grandes méritos dela.
“Tá, vou ter que cantar isso aí, mas canto pra caramba e vou
arrebentar.” Parece autoajuda, já me disseram. Para mim, é
somente a música que me acompanhou em noites trancadas no quarto,
rebobinando a fita que me acolhia quando ninguém mais o fazia. Amo
Whitney e vou defendê-la, não ligo de perder a carteirinha cult do
bar de jazz. Can I be me?
Amo
blues e jazz, sou capaz de ficar meses seguidos ouvindo Otis Redding,
Marvin Gaye, Billie Holiday e Nina Simone, compro vinis e CDs de jazz
em sebos e bazares beneficentes. Considero Cartola e Milton
Nascimento os reis da música. Tenho um quadro de Clementina de Jesus
na sala e me indigno por ver Mussum ser lembrado como um estereótipo,
e não como o grande sambista que foi no Originais do Samba. Ouço as
novas gerações e gosto de muitos, não quero ser a chata
“saudosista da época que não viveu” — definição
interessante, inclusive.
Esses
dias vi um jovem de dezoito anos cantando Marvin Gaye. Felipe
Adetokunbo cantava lindamente “Just to Keep You Satisfied”, e a
doçura da sua voz trouxe de volta a alma da tia chata “old
school”, justo no momento em que estava começando a ouvir Beyoncé.
Foi lindo ver um rapaz tão jovem homenageando Gaye num mundo em que
ele é visto como “música chata de velho” por jovens viciados em
videogame.
“It’s
too late, babe”, dizia a canção. É tarde demais, Whitney. Mas
lembrei que música boa não morre, renasce sempre em Adetokunbos em
bares de blues.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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