Ilustração: Leya Mira Brander
Aconteceu
que o pai, à mesa de jantar, disse de repente: Sábado vamos lá.
A menina, mais rápida que o irmão, perguntou, Lá onde, pai?,
e ele, |Não posso falar, é surpresa, e o garoto, Fala,
pai, aonde a gente vai?, e ele, já vendo a felicidade futura dos
filhos, sorriu, enigmático, Sábado, à tarde!, e continuou a
comer, como se nada tivesse acontecido — o mundo de sempre
funcionando. Aquela era só a notícia, a hora de vivê-la seria
adiante; a mãe, mesmo sem saber qual o plano do marido, disse, em
seu auxílio, A semana passa depressa!, e, com efeito, já
estavam em sua metade.
Mas
os filhos queriam tudo imediato da vida e ficaram atiçados, aquele
“lá” tinha sido vento em brasa, eles ardiam de curiosidade, o
garoto mais, por ser menor; a menina, no seu canto, esperta,
pensando, pensando, Vou descobrir! Fosse a praça, redonda,
onde alugavam bicicleta e faziam piquenique; ou o parque, grande, de
tanto verde, que não entrava de uma só vez em seus olhos; já
estariam contentes. Mas lá, lá onde seria?
Não
podiam se conter, os dois estavam além dessa noite. E era hora de
dormir. Como manter a calma com aquela alegria, ainda sem forma, lá
na frente? Sonhavam sem sono em suas camas. Reviravam-se, igualmente,
nas dobras do lençol e da imaginação. Sorriam no escuro, só
sentindo essa dúvida boa, onde?, onde?. O pai era mesmo de
revelar aos poucos, para que vissem tudo, devagar, na sua inteireza.
O cansaço, contudo, pedia-lhes mais corpo. E ganhou. O garoto foi o
primeiro a dormir: arquitetava desejos e fatos, mesclando-os quando,
de súbito, já ressonava alto; a respiração forte, no sonho
certamente ele corria, era a sede dos dias seguintes. A menina, em
seguida: nos lábios, o som silente de umas palavras adivinhas:
shopping, karaokê, Playcenter. O que seria? O passeio,
misterioso! Mas como são grossas as camadas da certeza, a menina não
podia penetrá-las e ficou só na sua superfície, inventando lugares
menores, se comparados à realidade. Bocejou uma vez. Duas. Dormiu.
E,
de súbito, já era o dia seguinte.
E
depois a noite desse dia.
E
logo outro dia.
E
a sua noite correspondente.
No
meio dessas horas todas, entre sol e sono, os dois irmãos reouviam,
na memória, o anúncio do pai, Sábado vamos lá, e
experimentavam a mesma feliz aflição, de saber já o
quê e o quando,
mas não o onde ainda encoberto. E como o eco retornava, também se
reesqueciam, tinham as suas urgências. Mas aí, de repente,
relembravam. O garoto rodeava o pai, Aonde a gente vai?, a
menina jogava verde com a mãe, Na quermesse?, insistiam,
insistiam, e nada. Melhor era viver sem expectativas a chegada do
sábado.
E
esperaram assim, sem perceber, cuidando do que era próprio de sua
idade — os deveres da escola, o direito às brincadeiras.
E
o sábado chegou.
Dia
claro, o sol abriu cedo a manhã. Ninguém se lembrava do passeio,
mas o passeio estava lá nas suas profundezas. Bastava atirar a
primeira palavra para acordá-lo, e foi o pai — só podia ser ele —
quem o fez no café da manhã, dizendo: Vamos sair às três! E aí o
sorriso de um canto a outro da mesa, a curiosidade vívida das
crianças, o mistério, enfim, com a sua hora do parto marcada.
Ainda
havia uma chance de descobrir, e o garoto não a deixou passar, Posso
levar skate? O pai, Melhor não. A resposta já reduzia as
opções, não era campo, praça, parque. A menina perguntou, Posso
levar um gibi? O pai, Lá você não vai querer ler, e
completou, só se for no caminho. E antes que replicassem, ele
completou, é meio longe, vamos de ônibus! A mãe observava
os filhos, também ignorava qual o programa, e achou prudente
perguntar, Preparo uns lanches?, ao que o marido respondeu,
Não, não precisa, a gente come lá!
O
mistério prosseguia. O pai com o novelo da surpresa só para ele.
Então, cada um foi gastar com alguma coisa a leveza de seu sábado:
o garoto com o cachorro no quintal, a menina com seus CDs, a mãe com
as providências para o almoço. Assim, o devagar das horas passou
depressa enquanto eles ocupavam as mãos e, sobretudo, a mente.
E
pronto: já era o tempo de ir.
A
mãe queria tirar umas dúvidas: Com que roupa? O marido, à
porta do quarto, Confortável, e ela, Vestido ou calça jeans?,
e ele, Vestido, e ela, Bolsa grande ou pequena?, e ele,
Pequena, e ela, com um fiozinho de impaciência, Mas,
afinal, aonde vamos?, e ele, Mais uns minutos e você saberá.
Deu
a hora combinada.
Lá
foi a família. O pai à frente, rebocando a mulher e os filhos até
o ponto de ônibus. Esperaram em pé, o orgulho no olhar. Passou um,
passou outro. Era o terceiro. O pai viu, É aquele, e acenou,
vamos, vamos! O ônibus encostou e abriu a porta: entraram,
rápidos, e se sentaram ao fundo. A realidade junto, generosa naquele
instante, passeio iniciado. Os dois irmãos continuavam sem saber
onde era lá, mas já provavam uma alegria modesta. E trataram
de engordá-la: uma freada do ônibus os atirou um sobre o outro, e
eis que riram, gargalharam. A mãe de olho, Cuidado, segurem
firme!, o pai feliz também, era isso o que desejava, os filhos
daquele jeito, o bom da diversão era ela toda — o caminho.
Primeiro,
da janela, viram o bairro de sempre, Olha, olha, o
supermercado, a igreja, a escola: tudo há muito conhecido, embora
fosse um ver novo, com o contentamento. Depois, o ônibus os levou
pela primeira vez a umas ruas nervosas, edifícios velhos dos dois
lados, até desembocar numa praça cercada de árvores. Aí foram dar
numa avenida de tráfego veloz, depois passaram por uns bairros
bonitos; parecia outra cidade: casarões imponentes, alamedas,
jardins. E essa outra cidade os via dentro do ônibus, à espera do
que vinha. O garoto provocava a menina para aumentar a graça da
viagem; o pai e a mãe sorrindo-se e, de repente, de mãos dadas, o
vento suave nos cabelos.
Então,
uma sombra enorme cobriu a avenida por onde o ônibus seguia e,
depois de sumir, deixou-a como antes. Logo à frente, puderam ver no
céu o que era — Nossa! —, um avião. Rasante, planava
quase a tocar os prédios: o ventre bojudo de metal, as asas
estalando ao sol, o som trovejando atrás feito um rabicho.
Admiradas,
as crianças esticaram os olhos para ver no seu rever o avião,
imenso, sumindo sobre os edifícios, era lá o seu pouso. Até
então tinham visto os aviões só pequenos, no muito alto do céu,
entre nuvens, sem os detalhes de agora e — descobriam, naquele
momento — que eram, em verdade, sempre grandes. Tão despropositada
era essa visão, que cutucaram o pai e a mãe perguntando o óbvio,
se também tinham visto, como se o avião fosse um passarinho e só o
olhar atento, de criança, pudesse percebê-lo na paisagem.
O
ônibus fez uma curva, pegou uma rua lateral e eis um novo redemoinho
de excitação: no horizonte, vindo da esquerda, outro avião
sobrevoava baixinho os edifícios e seguia rugindo para a mesma
direção. O pai disse, É no próximo ponto!, e se levantou
com a mãe. Os filhos o imitaram com atraso, flertando ainda o avião
em seus pormenores, o bico, as asas…
Saltaram
do ônibus no meio de uma longa avenida. Atravessaram-na por uma
passarela e, já do outro lado, caminharam algum tempo. Antes que o
pai dissesse, os irmãos já sabiam. Era lá, o pleno passeio.
O coração deles estremecia, com os primeiros encantos… Dali,
podiam avistar a entrada principal do aeroporto, a torre de controle,
um trecho da pista onde um avião taxiava lentamente, sem que
soubessem se era sua partida ou chegada. Também não importava: só
queriam vê-lo, com os olhos da certeza, aquele era o instante, sem o
antes e o depois, o imediato real — o avião, sólido, movia-se,
mais e mais, fora da neblina do sonho. A família, igualmente, seguia
devagarinho pela calçada, rumo ao seu destino.
O
pai, no comando, conduziu-os à área de desembarque. Gente e mais
gente afluía de várias direções, com bolsas a tiracolo, mochila
às costas, malas sobre carrinhos. O frenesi excitava e entontecia. A
mãe se pôs entre os filhos, dando-lhes as mãos para que não se
perdessem entre as pessoas. Chegaram a uma porta de vidro, que se
abriu, automaticamente. Entraram. O pai, Vamos, é lá em cima,
e seguiu para a escada rolante, margeando os guichês das companhias
aéreas.
Subiram,
a curiosidade acelerada. Um andar mais calmo, e também eles num novo
estado, acima. Ali, o mirante. Uma aglomeração de pessoas em frente
à imensa janela panorâmica. Todas para ver além do vão do seu
dia. Os irmãos achataram o nariz no vidro, como se quisessem
transpô-lo. Latejava nos dois a felicidade, e era muita: até
incômoda. Assistiam àquele trecho do mundo, inteiros, que tudo o
mais era de força menor. O quadro se fazia e se refazia, móvel:
dezenas de jatos estacionados com as portas abertas; ao redor, um ir
e vir de tratores e ônibus, o sol atrás dos prédios, e, tocando a
pista, agora pousava um avião, Olha lá, olha lá! Chegava,
enfim, a hora máxima.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda
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