quinta-feira, 25 de maio de 2023

Hollywood | 14



Na Marina del Rey, a coisa estava ficando preta. Como transporte, Jon Pinchot dirigia um Pontiac 1968 conversível verde, e François Racine um Ford 1958 marrom. Também tinham duas motos Kawazaki, uma 750 e uma 1000.
Wenner Zergog tomara emprestado o Ford 1958 e, dirigindo-o sem água no radiador, fundira o motor.
Ele é um gênio – disse-me Jon. – Não sabe muito dessas coisas.
As motos foram as primeiras a ser torradas. O 1958 era usado para viagens mais curtas.
Então François Racine se mandou para a França. Jon vendeu o Ford 1958.
E aí, é claro, chegou o dia em que o telefone tocou e era Jon.
Preciso me mudar. Vão derrubar este prédio e construir um hotel ou alguma coisa assim. Merda, não sei pra onde ir. Gostaria de ficar na cidade e negociar seu argumento. Como está indo essa coisa?
Oh, está saindo...
Estou perto de um acordo. E se não der certo, tem um cara no Canadá. Mas preciso me mudar. Os tratores já estão a caminho.
Escute, Jon, você pode ficar em nossa casa. Temos um quarto no térreo.
Está falando sério?
Claro...
Eu fico fora a maior parte do tempo. Vocês nem vão saber que estou aí.
Ainda tem o Pontiac 1968?
Tenho...
Então ponha suas coisas nele e venha pra cá...
Desci e falei a Sarah.
Jon vai se mudar pra cá por uns tempos.
Quê?
Jon Pinchot. Vão derrubar a casa dele. Vai ficar aqui por uns tempos.
Hank, você sabe que não suporta viver com ninguém. Isso vai deixar você maluco.
Vai ser só por uns tempos...
Você vai estar lá em cima batendo na máquina e ele aqui embaixo ouvindo. Não vai dar certo.
Eu faço com que dê. Jon me pagou pra escrever esse troço.
Boa sorte – ela disse, deu as costas e foi para a cozinha.

As primeiras duas noites não foram ruins: Jon, Sarah e eu simplesmente bebemos e conversamos. Jon contou algumas histórias, a maioria sobre problemas com atores e o que tinha de fazer para que atuassem. Tinha um cara que, no meio de uma filmagem, de repente se recusou a falar. Ensaiava as cenas mas não dizia nada. Exigia que uma determinada cena fosse rodada a seu modo. Estavam no meio de uma selva em algum lugar, o tempo e o dinheiro acabando. Finalmente Jon disse ao ator: “Merda, faça como quiser!”. E o ator fez a cena como queria, com diálogo. Só não sabia que não tinha filme na câmera. Depois disso, não houve mais problema.
Foi na segunda noite que o vinho realmente rolou. Eu falei um pouco, sobretudo repetições de histórias, material que já tinha escrito muito tempo atrás. Já era madrugada, quando Jon disse:
Giselle se apaixonou por um diretor que só tinha um bago...
Giselle era sua namorada em Paris.
Sinto muito – eu disse.
Só que é pior agora. Câncer. Cortaram o outro bago também. Ela está muito perturbada.
Não há dúvida de que parece azar.
É, é, eu escrevo pra ela, telefono pra ela... faço tudo que posso pra ajudar. E estão no meio de uma filmagem...
(Tudo sempre acontecia no meio de uma filmagem.)
Giselle era uma atriz famosa na França. Dividia um apartamento com Jon em Paris.
Tentamos animá-lo sobre o azar da namorada. Ele descascou um longo charuto, lambeu-o, cortou o bico com os dentes, acendeu-o, inalou e exalou a primeira coluna de exótica fumaça.
Sabe, Hank, eu sempre soube que você ia escrever um argumento pra mim. Tem coisas que a gente sabe instintivamente. Eu sei disso há muito tempo. E andava buscando o dinheiro pra isso há muito tempo, muito antes de fazer contato com você.
Talvez eu escreva um argumento muito ruim.
Não vai escrever. Já li tudo que você escreveu.
Isso foi antes. Na profissão de escritor existem mais já-eras do que qualquer outra coisa.
Isso não se aplica a você.
Acho que ele tem razão, Hank – disse Sarah. – Você é simplesmente um escritor nato.
Mas um argumento! Merda, é como se eu usasse patins de rodas e você me pusesse numa pista de gelo!
Vai conseguir. Sei que vai, soube que ia quando eu estava na Rússia.
Rússia?
É, antes de conhecer você eu fui à Rússia procurar dinheiro pra produzir seu futuro argumento.
Do qual eu não sabia ainda.
Exatamente. Só eu sabia. De qualquer modo, soube por uma fonte digna de crédito que uma dona na Rússia tinha 80 milhões de dólares num banco suíço.
Isso parece um thriller barato de TV.
É, eu sei. Mas eu verifiquei. Tenho fontes muito boas pra esse tipo de coisa. Não posso falar muito sobre elas.
Não queremos saber – disse Sarah.
Assim, encontrei o endereço da dona. E teve início o longo e lento processo. Comecei a escrever cartas à dona...
Que foi que fez? – perguntou Sarah. – Juntou fotos de nu frontal?
Ou nus anais? – perguntei.
A princípio, não. A princípio as cartas eram bastante formais. Disse que tinha encontrado o endereço dela do modo mais estranho, anotado num minúsculo pedaço de papel dentro de uma caixa de sapatos num toalete de Paris. Sugeri que talvez fosse destino. Oh, vocês não fazem ideia de como trabalhei duro nessas cartas!
Você faria tudo isso pra arranjar dinheiro pra produzir um filme?
Mais que isso!
Mataria?
Por favor, não me pergunte isso. De qualquer modo, enviei uma carta atrás da outra, mudando aos poucos pra cartas de amor.
Eu não sabia que você sabia russo – disse Sarah.
Eu escrevia as cartas em francês. A dona tinha uma intérprete. A dona respondia em russo e meu intérprete botava em francês.
Não usariam isso nem num thriller barato de TV – eu disse.
Eu sei. Mas eu pensava nos 80 milhões dela naquela conta suíça, e minhas cartas pra ela iam se tornando cada vez melhores. Cartas de amor. Amor em chamas.
Beba mais um pouco de vinho – eu disse, tornando a encher o copo dele.
Bem, ela terminou me pedindo que fosse visitá-la. E de repente, sem mais aquela, lá estava eu nas neves de Moscou.
As neves de Moscou...
Arranjei um quarto que acho que estava grampeado pela KGB. Acho que tinha grampo até no toalete. Eles ouviam até o meu cocô caindo...
Acho que também estou ouvindo...
Não, não, me escute... Finalmente, marquei um encontro pra ver a dona. Fui à casa dela, bati. A porta se abriu e lá estava aquela garota belíssima! Eu jamais vira uma garota tão bela!
Ah, deus, Jon, por favor...
Só que não era a dona, era a intérprete!
Jon – perguntou Sarah –, que é que você está tomando além desse vinho?
Nada! Nada! É verdade! Entrei na sala e lá estava o trapo velho sentado, toda de negro. Não tinha dentes, mas muitas verrugas. Eu me adiantei, me curvei, tomei a mão dela, fechei os olhos e beijei-a. A intérprete se sentou numa cadeira, nos observando. Eu me virei pra ela.
– “Eu gostaria de ficar sozinho com você”, eu disse.
Ela falou com a velha. Depois se virou pra mim e disse: “Metra deseja ficar a sós com você. Mas numa igreja. Metra é muito religiosa.”
– “Acho que estou apaixonado por você”, eu disse à intérprete. Ela falou com a velha. A velha respondeu. Então a intérprete se virou pra mim: “Metra disse que o amor é possível, mas primeiro quer que você vá à igreja com ela”.
Eu fiz que sim com a cabeça e a velha se levantou lentamente de sua cadeira, e deixamos a sala juntos, deixando a bela jovem pra trás...
Essa coisa fodida podia ganhar um Prêmio da Academia – eu disse.
Por favor, lembre-se de que eu estava tentando conseguir o dinheiro pro seu futuro argumento.
Sim, por favor, prossiga, Jon. Conte o resto...
Pois bem, chegamos à igreja. Ajoelhamos nos bancos. Não sou religioso. Ficamos algum tempo ali ajoelhados em silêncio. Então ela tocou em mim. Nos levantamos e fomos até um altar cheio de velas. Algumas estavam acesas. Muitas não estavam. Ela começou a acender muitas das velas apagadas. Isto a excitou. A boca dela tremia e pequenos fios de saliva começaram a cair de cada lado da boca dela, correndo e sumindo por entre as rugas. Por favor, acredita em mim, não tenho nada, nada mesmo contra a velhice! Mas por que será que algumas pessoas envelhecem pior que as outras?
Sei lá – eu disse –, mas tenho a impressão que as pessoas que não pensam muito sempre vão parecer mais jovens por mais tempo.
Eu acho que ela não pensava muito... de qualquer maneira, depois de acender muitas velas ela se excitou de novo. Pegou minha mão e apertou. Era forte, uma velhinha forte. Me levou até a estátua de Cristo...
Sim...
Largou o meu braço e ajoelhou e começou a beijar os pés daquele Cristo. Beijando mesmo. Os dedos dos pés dele ficaram molhados de saliva. Estava apaixonadíssima. Tremendo. Então se pôs de pé, pegou minha mão, apontou os pés. Sorri. Apontou de novo. Sorri de novo. Então ela me agarrou e começou a me forçar em direção aos pés. Merda, pensei, e aí pensei nos 80 milhões e ajoelhei e beijei os pés. Sabe, eles não limpam muito bem os pés na Rússia. A saliva de Metra... e a poeira... foi só com muita força de vontade que consegui beijar. Depois me coloquei de pé. Metra me levou de volta para o banco. Ajoelhamos de novo. De repente ela me pegou e a boca dela se colou à minha. Por favor, entenda, não tenho nada contra os velhos, os idosos, mas foi como beijar um bueiro. Me afastei. Alguma coisa deu voltas no meu estômago e me fui para o confessionário, afastei as cortinas, entrei, ajoelhei, e vomitei. Depois me levantei e saímos da igreja juntos. Deixei-a em casa. Então peguei uma garrafa de vodka e voltei para o meu quarto.
Sabe, se eu escrevesse um roteiro de cinema assim, me expulsariam da cidade.
Eu sei. Mas espere. Esta coisa não terminou ainda. Enquanto eu bebia vodka, pensei no que tinha acontecido. Não havia necessidade de recuar. A velha evidentemente era louca. A gente não beija na igreja, não é? Talvez num casamento. Assim lá estava eu...
Beija e casa, hein? – perguntei.
Bem, eu queria me assegurar dos 80 milhões. Depois de terminar a vodka, comecei uma longa carta de amor para Metra, só que o tempo todo fiquei pensando na intérprete. Uma carta de amor que era preciso ver. E nas entrelinhas daquele papo de amor expliquei para ela que queria fazer um filme sobre nós dois e que tinha sabido do dinheiro dela na Suíça, só que isto não tinha nada que ver com a minha presença ali, exceto que eu estava sem grana e queria muito levar nossa história de amor para a tela e para o público e para os amantes de Cristo.
Tudo isto para conseguir dinheiro para produzir um roteiro que Hank nem conhecia e nem tinha escrito? – perguntou Sarah.
Claro – disse Jon.
Você é louco – acrescentei.
Talvez. Enfim, a velha recebeu minha carta de amor e pensei que tinha concordado em ir à Suíça comigo apanhar o dinheiro. Combinamos tudo. Enquanto isto aconteceram outras duas viagens, para beijar os pés de Cristo e acender muitas velas e mais um pouquinho de beijos. Aí... recebi um telefonema do meu informante. A mulher que tinha 80 milhões de dólares na Suíça tinha exatamente o mesmo nome, tinha exatamente a mesma idade da minha velha, mas tinha nascido numa outra cidade e tinha outros pais. Tinha sido apenas uma coincidência idiota e estava tudo terminado para mim. Eu tinha sido enganado. Eu teria de arranjar o dinheiro de outra maneira...
Esta é uma das histórias fodidas mais tristes que já ouvi – eu disse.
Sinto muito – disse Jon –, mas é verdade.
Por que você sofre desta maneira só para fazer filmes? – perguntou Sara.
Porque eu adoro – respondeu Jon.

Charles Bukowski, in Hollywood

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