Na
Marina del Rey, a coisa estava ficando preta. Como transporte, Jon
Pinchot dirigia um Pontiac 1968 conversível verde, e François
Racine um Ford 1958 marrom. Também tinham duas motos Kawazaki, uma
750 e uma 1000.
Wenner
Zergog tomara emprestado o Ford 1958 e, dirigindo-o sem água no
radiador, fundira o motor.
– Ele
é um gênio – disse-me Jon. – Não sabe muito dessas coisas.
As
motos foram as primeiras a ser torradas. O 1958 era usado para
viagens mais curtas.
Então
François Racine se mandou para a França. Jon vendeu o Ford 1958.
E
aí, é claro, chegou o dia em que o telefone tocou e era Jon.
– Preciso
me mudar. Vão derrubar este prédio e construir um hotel ou alguma
coisa assim. Merda, não sei pra onde ir. Gostaria de ficar na cidade
e negociar seu argumento. Como está indo essa coisa?
– Oh,
está saindo...
– Estou
perto de um acordo. E se não der certo, tem um cara no Canadá. Mas
preciso me mudar. Os tratores já estão a caminho.
– Escute,
Jon, você pode ficar em nossa casa. Temos um quarto no térreo.
– Está
falando sério?
– Claro...
– Eu
fico fora a maior parte do tempo. Vocês nem vão saber que estou aí.
– Ainda
tem o Pontiac 1968?
– Tenho...
– Então
ponha suas coisas nele e venha pra cá...
Desci
e falei a Sarah.
– Jon
vai se mudar pra cá por uns tempos.
– Quê?
– Jon
Pinchot. Vão derrubar a casa dele. Vai ficar aqui por uns tempos.
– Hank,
você sabe que não suporta viver com ninguém. Isso vai deixar você
maluco.
– Vai
ser só por uns tempos...
– Você
vai estar lá em cima batendo na máquina e ele aqui embaixo ouvindo.
Não vai dar certo.
– Eu
faço com que dê. Jon me pagou pra escrever esse troço.
Boa
sorte – ela disse, deu as costas e foi para a cozinha.
As
primeiras duas noites não foram ruins: Jon, Sarah e eu simplesmente
bebemos e conversamos. Jon contou algumas histórias, a maioria sobre
problemas com atores e o que tinha de fazer para que atuassem. Tinha
um cara que, no meio de uma filmagem, de repente se recusou a falar.
Ensaiava as cenas mas não dizia nada. Exigia que uma determinada
cena fosse rodada a seu modo. Estavam no meio de uma selva em algum
lugar, o tempo e o dinheiro acabando. Finalmente Jon disse ao ator:
“Merda, faça como quiser!”. E o ator fez a cena como queria, com
diálogo. Só não sabia que não tinha filme na câmera. Depois
disso, não houve mais problema.
Foi
na segunda noite que o vinho realmente rolou. Eu falei um pouco,
sobretudo repetições de histórias, material que já tinha escrito
muito tempo atrás. Já era madrugada, quando Jon disse:
– Giselle
se apaixonou por um diretor que só tinha um bago...
Giselle
era sua namorada em Paris.
– Sinto
muito – eu disse.
– Só
que é pior agora. Câncer. Cortaram o outro bago também. Ela está
muito perturbada.
– Não
há dúvida de que parece azar.
– É,
é, eu escrevo pra ela, telefono pra ela... faço tudo que posso pra
ajudar. E estão no meio de uma filmagem...
(Tudo
sempre acontecia no meio de uma filmagem.)
Giselle
era uma atriz famosa na França. Dividia um apartamento com Jon em
Paris.
Tentamos
animá-lo sobre o azar da namorada. Ele descascou um longo charuto,
lambeu-o, cortou o bico com os dentes, acendeu-o, inalou e exalou a
primeira coluna de exótica fumaça.
– Sabe,
Hank, eu sempre soube que você ia escrever um argumento pra mim. Tem
coisas que a gente sabe instintivamente. Eu sei disso há muito
tempo. E andava buscando o dinheiro pra isso há muito tempo, muito
antes de fazer contato com você.
– Talvez
eu escreva um argumento muito ruim.
– Não
vai escrever. Já li tudo que você escreveu.
– Isso
foi antes. Na profissão de escritor existem mais já-eras do que
qualquer outra coisa.
– Isso
não se aplica a você.
– Acho
que ele tem razão, Hank – disse Sarah. – Você é simplesmente
um escritor nato.
– Mas
um argumento! Merda, é como se eu usasse patins de rodas e
você me pusesse numa pista de gelo!
– Vai
conseguir. Sei que vai, soube que ia quando eu estava na Rússia.
– Rússia?
– É,
antes de conhecer você eu fui à Rússia procurar dinheiro pra
produzir seu futuro argumento.
– Do
qual eu não sabia ainda.
– Exatamente.
Só eu sabia. De qualquer modo, soube por uma fonte digna de crédito
que uma dona na Rússia tinha 80 milhões de dólares num banco
suíço.
– Isso
parece um thriller barato de TV.
– É,
eu sei. Mas eu verifiquei. Tenho fontes muito boas pra esse tipo de
coisa. Não posso falar muito sobre elas.
– Não
queremos saber – disse Sarah.
– Assim,
encontrei o endereço da dona. E teve início o longo e lento
processo. Comecei a escrever cartas à dona...
– Que
foi que fez? – perguntou Sarah. – Juntou fotos de nu frontal?
– Ou
nus anais? – perguntei.
– A
princípio, não. A princípio as cartas eram bastante formais. Disse
que tinha encontrado o endereço dela do modo mais estranho, anotado
num minúsculo pedaço de papel dentro de uma caixa de sapatos num
toalete de Paris. Sugeri que talvez fosse destino. Oh, vocês não
fazem ideia de como trabalhei duro nessas cartas!
– Você
faria tudo isso pra arranjar dinheiro pra produzir um filme?
– Mais
que isso!
– Mataria?
– Por
favor, não me pergunte isso. De qualquer modo, enviei uma carta
atrás da outra, mudando aos poucos pra cartas de amor.
– Eu
não sabia que você sabia russo – disse Sarah.
– Eu
escrevia as cartas em francês. A dona tinha uma intérprete. A dona
respondia em russo e meu intérprete botava em francês.
– Não
usariam isso nem num thriller barato de TV – eu disse.
– Eu
sei. Mas eu pensava nos 80 milhões dela naquela conta suíça, e
minhas cartas pra ela iam se tornando cada vez melhores. Cartas de
amor. Amor em chamas.
– Beba
mais um pouco de vinho – eu disse, tornando a encher o copo dele.
– Bem,
ela terminou me pedindo que fosse visitá-la. E de repente, sem mais
aquela, lá estava eu nas neves de Moscou.
– As
neves de Moscou...
– Arranjei
um quarto que acho que estava grampeado pela KGB. Acho que tinha
grampo até no toalete. Eles ouviam até o meu cocô caindo...
– Acho
que também estou ouvindo...
– Não,
não, me escute... Finalmente, marquei um encontro pra ver a dona.
Fui à casa dela, bati. A porta se abriu e lá estava aquela garota
belíssima! Eu jamais vira uma garota tão bela!
– Ah,
deus, Jon, por favor...
– Só
que não era a dona, era a intérprete!
– Jon
– perguntou Sarah –, que é que você está tomando além desse
vinho?
– Nada!
Nada! É verdade! Entrei na sala e lá estava o trapo velho sentado,
toda de negro. Não tinha dentes, mas muitas verrugas. Eu me
adiantei, me curvei, tomei a mão dela, fechei os olhos e beijei-a. A
intérprete se sentou numa cadeira, nos observando. Eu me virei pra
ela.
– “Eu
gostaria de ficar sozinho com você”, eu disse.
Ela
falou com a velha. Depois se virou pra mim e disse: “Metra deseja
ficar a sós com você. Mas numa igreja. Metra é muito religiosa.”
– “Acho
que estou apaixonado por você”, eu disse à intérprete. Ela falou
com a velha. A velha respondeu. Então a intérprete se virou pra
mim: “Metra disse que o amor é possível, mas primeiro quer que
você vá à igreja com ela”.
Eu
fiz que sim com a cabeça e a velha se levantou lentamente de sua
cadeira, e deixamos a sala juntos, deixando a bela jovem pra trás...
– Essa
coisa fodida podia ganhar um Prêmio da Academia – eu disse.
– Por
favor, lembre-se de que eu estava tentando conseguir o dinheiro pro
seu futuro argumento.
– Sim,
por favor, prossiga, Jon. Conte o resto...
– Pois
bem, chegamos à igreja. Ajoelhamos nos bancos. Não sou religioso.
Ficamos algum tempo ali ajoelhados em silêncio. Então ela tocou em
mim. Nos levantamos e fomos até um altar cheio de velas. Algumas
estavam acesas. Muitas não estavam. Ela começou a acender muitas
das velas apagadas. Isto a excitou. A boca dela tremia e pequenos
fios de saliva começaram a cair de cada lado da boca dela, correndo
e sumindo por entre as rugas. Por favor, acredita em mim, não tenho
nada, nada mesmo contra a velhice! Mas por que será que algumas
pessoas envelhecem pior que as outras?
– Sei
lá – eu disse –, mas tenho a impressão que as pessoas que não
pensam muito sempre vão parecer mais jovens por mais tempo.
– Eu
acho que ela não pensava muito... de qualquer maneira, depois de
acender muitas velas ela se excitou de novo. Pegou minha mão e
apertou. Era forte, uma velhinha forte. Me levou até a estátua de
Cristo...
– Sim...
– Largou
o meu braço e ajoelhou e começou a beijar os pés daquele Cristo.
Beijando mesmo. Os dedos dos pés dele ficaram molhados de saliva.
Estava apaixonadíssima. Tremendo. Então se pôs de pé, pegou minha
mão, apontou os pés. Sorri. Apontou de novo. Sorri de novo. Então
ela me agarrou e começou a me forçar em direção aos pés. Merda,
pensei, e aí pensei nos 80 milhões e ajoelhei e beijei os pés.
Sabe, eles não limpam muito bem os pés na Rússia. A saliva de
Metra... e a poeira... foi só com muita força de vontade que
consegui beijar. Depois me coloquei de pé. Metra me levou de volta
para o banco. Ajoelhamos de novo. De repente ela me pegou e a boca
dela se colou à minha. Por favor, entenda, não tenho nada contra os
velhos, os idosos, mas foi como beijar um bueiro. Me afastei. Alguma
coisa deu voltas no meu estômago e me fui para o confessionário,
afastei as cortinas, entrei, ajoelhei, e vomitei. Depois me levantei
e saímos da igreja juntos. Deixei-a em casa. Então peguei uma
garrafa de vodka e voltei para o meu quarto.
– Sabe,
se eu escrevesse um roteiro de cinema assim, me expulsariam da
cidade.
– Eu
sei. Mas espere. Esta coisa não terminou ainda. Enquanto eu bebia
vodka, pensei no que tinha acontecido. Não havia necessidade de
recuar. A velha evidentemente era louca. A gente não beija na
igreja, não é? Talvez num casamento. Assim lá estava eu...
– Beija
e casa, hein? – perguntei.
– Bem,
eu queria me assegurar dos 80 milhões. Depois de terminar a vodka,
comecei uma longa carta de amor para Metra, só que o tempo todo
fiquei pensando na intérprete. Uma carta de amor que era preciso
ver. E nas entrelinhas daquele papo de amor expliquei para ela que
queria fazer um filme sobre nós dois e que tinha sabido do dinheiro
dela na Suíça, só que isto não tinha nada que ver com a minha
presença ali, exceto que eu estava sem grana e queria muito levar
nossa história de amor para a tela e para o público e para os
amantes de Cristo.
– Tudo
isto para conseguir dinheiro para produzir um roteiro que Hank nem
conhecia e nem tinha escrito? – perguntou Sarah.
– Claro
– disse Jon.
– Você
é louco – acrescentei.
– Talvez.
Enfim, a velha recebeu minha carta de amor e pensei que tinha
concordado em ir à Suíça comigo apanhar o dinheiro. Combinamos
tudo. Enquanto isto aconteceram outras duas viagens, para beijar os
pés de Cristo e acender muitas velas e mais um pouquinho de beijos.
Aí... recebi um telefonema do meu informante. A mulher que tinha 80
milhões de dólares na Suíça tinha exatamente o mesmo nome, tinha
exatamente a mesma idade da minha velha, mas tinha nascido numa outra
cidade e tinha outros pais. Tinha sido apenas uma coincidência
idiota e estava tudo terminado para mim. Eu tinha sido enganado. Eu
teria de arranjar o dinheiro de outra maneira...
– Esta
é uma das histórias fodidas mais tristes que já ouvi – eu disse.
– Sinto
muito – disse Jon –, mas é verdade.
– Por
que você sofre desta maneira só para fazer filmes? – perguntou
Sara.
– Porque
eu adoro – respondeu Jon.
Charles Bukowski, in Hollywood
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