A
morte, mãe da religião – Necessidade metafísica – Necessidade
de uma fé positiva – Insuficiência prática da moral religiosa –
Catolicismo – Conflito da religião com a filosofia
Não
admite dúvida que é o conhecimento da morte e a consideração do
sofrimento e da miséria da existência que dão o impulso mais forte
ao pensamento filosófico e às interpretações metafísicas do
mundo. Se a nossa existência fosse ilimitada e isenta de dores,
talvez nenhum homem tivesse tido a ideia de perguntar a si próprio
porque existe o mundo e se encontra constituído justamente dessa
maneira; tudo se compreenderia por si mesmo. Também assim se explica
o interesse que nos inspiram os sistemas filosóficos e as religiões.
Esse poderoso interesse liga-se principalmente ao dogma de uma
duração qualquer após a morte; e se as religiões parecem cuidar,
acima de tudo, da existência dos seus deuses, e empregar todo zelo a
defendê-la, é unicamente porque ligam a essa existência o dogma da
imortalidade de que a consideram inseparável: só a imortalidade os
preocupa. Se fosse possível assegurar de outra maneira a vida eterna
ao homem, o seu zelo ardente pelos deuses esfriaria imediatamente, e
daria até lugar a uma indiferença quase absoluta, desde que lhe
fosse mostrada com evidência a impossibilidade de uma vida futura…
Por esse motivo, os sistemas completamente céticos ou materialistas
nunca hão de exercer uma influência geral ou duradoura.
Templos
e igrejas, pagodes e mesquitas, em todos os tempos, pela sua
magnificência e grandeza, testemunham a necessidade metafísica do
homem que, forte e indestrutível, segue passo a passo a necessidade
física. Poder-se-ia, é certo, querendo empregar o tom satírico,
acrescentar que a primeira necessidade é modesta e contenta-se com
pouco. Fábulas grosseiras, contos para dormir em pé, é quanto lhe
basta muitas vezes: se as imprimirem bastante cedo no espírito do
homem, essas fábulas e essas lendas tornam-se as explicações
suficientes da sua existência e os sustentáculos da sua moralidade.
Considere-se, por exemplo, o Alcorão: esse livro medíocre bastou
para fundar uma religião que, espalhada pelo mundo, satisfaz a
necessidade metafísica de milhões de homens há mil e duzentos
anos, serve-lhes de fundamento à moral, inspira-lhes grande desprezo
pela morte e entusiasmo pelas guerras sangrentas e pelas vastas
conquistas. Encontramos nesse livro a figura mais triste e miserável
do teísmo. Talvez tenha perdido muito com as traduções; mas não
me foi possível descobrir aí um único pensamento de algum valor. O
que prova que a capacidade e a necessidade metafísicas não andam a
par.
Não
contente com os cuidados, as aflições e os embaraços que o mundo
real lhe impõe, o espírito humano crê ainda num mundo imaginário
sob a forma de mil superstições diversas. Essas ocupam-no de todas
as maneiras; consagra-lhes o melhor do seu tempo e das suas forças,
logo que o mundo real lhe conceda um repouso que não é capaz de
gozar. Pode-se verificar esse fato na sua origem, entre os povos que,
colocados sob um céu puro e num solo clemente, têm uma existência
fácil, tal como os índios, depois os gregos, os romanos, mais tarde
os italianos, os espanhóis etc. – O homem representa demônios,
deuses e santos à sua imagem; exigem a todo momento sacrifícios,
orações, ornamentos, promessas feitas e realizadas, peregrinações,
prosternações, quadros, adornos etc. Ficção e realidade
entremeiam-se ao seu serviço, e a ficção obscurece a realidade;
qualquer acontecimento da vida é aceite como uma manifestação do
seu poder. Os colóquios místicos com essas divindades preenchem
metade dos dias, sustentam incessantemente a esperança; o encanto da
ilusão torna-os muitas vezes mais interessantes que a convivência
dos seres reais. Que expressão e que sintoma da miséria inata do
homem, da urgente necessidade que ele tem de socorro e de
assistência, de ocupação e de passatempo! E, embora perca forças
úteis e instantes preciosos em súplicas e sacrifícios vãos em vez
de se proteger a si mesmo, quando surgem perigos imprevistos, não
cessa contudo de se ocupar e distrair nesse exercício fantástico
com um mundo de espíritos com que sonha; é essa a vantagem das
superstições, vantagem da qual não se deve desdenhar.
Para
domar as almas bárbaras e desviá-las da injustiça e da crueldade,
não é a verdade que se torna útil, porque não lhes é dado
concebê-la; é portanto o erro, um conto, uma parábola. Daí vem a
necessidade de ensinar uma fé positiva.
Quando
se compara a prática dos fiéis à excelente moral que prega a
religião cristã e mais ou menos qualquer religião, e se representa
o que seria dessa moral se o braço secular não impedisse os crimes,
e o que teríamos a temer, se por um único dia se suprimissem todas
as leis, há de se confessar que a ação de todas as religiões
sobre a moral é, na realidade, muito fraca. Certamente a culpa é da
fraqueza da fé. Teoricamente e enquanto se entregam às meditações
pias, todos se julgam firmes na sua fé. Mas o ato é a dura pedra de
toque de todas as nossas convicções: quando se chega aos atos e se
torna necessário provar a fé por grandes renúncias e duros
sacrifícios, é então que se vê surgir toda a fraqueza. Quando um
homem medita seriamente num delito, abre já uma brecha na moralidade
pura. A primeira consideração que em seguida o detém é a da
justiça e da polícia. Se passa adiante, esperando subtrair-se-lhe,
o segundo obstáculo que então se apresenta é a questão da honra.
Se o transpõe, pode-se apostar que depois de haver triunfado dessas
duas resistências poderosas qualquer dogma religioso não terá já
a força precisa para o impedir de proceder. Porque se um perigo
iminente, seguro, não assusta, como se poderá recear um perigo
distante e que só se funda na fé?
Na
religião dos gregos a moral reduzia-se a bem pouco, tudo se limitava
quase ao respeito pelo juramento, não havia moral nem dogmas
oficiais; contudo não vemos que a generalidade dos gregos fosse
moralmente inferior aos homens dos séculos cristãos. A moral do
cristianismo é infinitamente superior a todas as das outras
religiões que jamais apareceram na Europa, mas quem poderá crer que
a moralidade dos europeus melhorou na mesma proporção, ou seja,
atualmente superior à dos outros países? Isso constituiria um
grande erro, porque se encontra entre os maometanos, os guebros, os
índios e os budistas pelo menos tanta honestidade, fidelidade,
tolerância, serenidade, benevolência, generosidade, abnegação
como entre os outros povos cristãos. De mais, seria longa a lista
das bárbaras crueldades que acompanharam o cristianismo, cruzadas
injustificáveis, exterminação de uma grande parte dos habitantes
primitivos da América e colonização dessa parte do mundo com
escravos negros, arrancados sem direito, sem a sombra de um direito,
à pátria, à família, ao solo natal e condenados por toda a vida a
trabalhos forçados, perseguição incansável dos heréticos
tribunais de inquisição que bradam ao céu vingança, noite de S.
Bartolomeu, execução de 18 mil holandeses pelo Duque de Alba etc.,
outros tantos fatos pouco favoráveis que deixam incerteza sobre a
superioridade do cristianismo.
A
religião católica é uma instrução para mendigar o céu, que
seria muito incômodo merecer. Os padres são intermediários dessa
mendicidade.
A
confissão foi um pensamento feliz; porque na verdade cada um de nós
é um juiz moralmente perfeito e competente, conhecendo exatamente o
bem e o mal, e mesmo um santo, quando ama o bem, detesta o mal. Isso
é verdade com respeito a cada um de nós, contanto que o inquérito
seja aos atos de outrem e não aos nossos próprios, e que se trate
apenas de aprovar e reprovar, e que os outros se encarreguem da
execução. Portanto, qualquer um pode, como confessor, tomar
absolutamente o lugar de Deus.
As
religiões são necessárias ao povo, e são para ele um benefício
inapreciável. Mesmo quando elas querem se opor ao progresso da
humanidade no conhecimento do verdadeiro, é preciso desviá-las com
todas as atenções possíveis. Mas exigir que um grande espírito,
um Goethe, um Shakespeare, aceite convictamente impliciter, bona
fide et sensu próprio (Implicitamente,
de boa-fé e no verdadeiro sentido) os dogmas de uma
religião qualquer é exigir que um gigante calce o sapato de um
anão.
Na
realidade, qualquer religião positiva é usurpadora do trono que
pertence à filosofia. Por isso os filósofos hão de estar sempre em
hostilidade com ela, embora tenham de considerá-la como um mal
necessário, um amparo para a fraqueza mórbida do espírito da maior
parte dos homens.
Deus,
na nova filosofia, representa o papel dos últimos reis francos com
os seus mordomos-mores; é apenas um nome que se conserva para maior
proveito e comodidade, a fim de se assegurar mais facilmente o
caminho no mundo.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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