sábado, 13 de maio de 2023

A religião

A morte, mãe da religião – Necessidade metafísica – Necessidade de uma fé positiva – Insuficiência prática da moral religiosa – Catolicismo – Conflito da religião com a filosofia

Não admite dúvida que é o conhecimento da morte e a consideração do sofrimento e da miséria da existência que dão o impulso mais forte ao pensamento filosófico e às interpretações metafísicas do mundo. Se a nossa existência fosse ilimitada e isenta de dores, talvez nenhum homem tivesse tido a ideia de perguntar a si próprio porque existe o mundo e se encontra constituído justamente dessa maneira; tudo se compreenderia por si mesmo. Também assim se explica o interesse que nos inspiram os sistemas filosóficos e as religiões. Esse poderoso interesse liga-se principalmente ao dogma de uma duração qualquer após a morte; e se as religiões parecem cuidar, acima de tudo, da existência dos seus deuses, e empregar todo zelo a defendê-la, é unicamente porque ligam a essa existência o dogma da imortalidade de que a consideram inseparável: só a imortalidade os preocupa. Se fosse possível assegurar de outra maneira a vida eterna ao homem, o seu zelo ardente pelos deuses esfriaria imediatamente, e daria até lugar a uma indiferença quase absoluta, desde que lhe fosse mostrada com evidência a impossibilidade de uma vida futura… Por esse motivo, os sistemas completamente céticos ou materialistas nunca hão de exercer uma influência geral ou duradoura.
Templos e igrejas, pagodes e mesquitas, em todos os tempos, pela sua magnificência e grandeza, testemunham a necessidade metafísica do homem que, forte e indestrutível, segue passo a passo a necessidade física. Poder-se-ia, é certo, querendo empregar o tom satírico, acrescentar que a primeira necessidade é modesta e contenta-se com pouco. Fábulas grosseiras, contos para dormir em pé, é quanto lhe basta muitas vezes: se as imprimirem bastante cedo no espírito do homem, essas fábulas e essas lendas tornam-se as explicações suficientes da sua existência e os sustentáculos da sua moralidade. Considere-se, por exemplo, o Alcorão: esse livro medíocre bastou para fundar uma religião que, espalhada pelo mundo, satisfaz a necessidade metafísica de milhões de homens há mil e duzentos anos, serve-lhes de fundamento à moral, inspira-lhes grande desprezo pela morte e entusiasmo pelas guerras sangrentas e pelas vastas conquistas. Encontramos nesse livro a figura mais triste e miserável do teísmo. Talvez tenha perdido muito com as traduções; mas não me foi possível descobrir aí um único pensamento de algum valor. O que prova que a capacidade e a necessidade metafísicas não andam a par.
Não contente com os cuidados, as aflições e os embaraços que o mundo real lhe impõe, o espírito humano crê ainda num mundo imaginário sob a forma de mil superstições diversas. Essas ocupam-no de todas as maneiras; consagra-lhes o melhor do seu tempo e das suas forças, logo que o mundo real lhe conceda um repouso que não é capaz de gozar. Pode-se verificar esse fato na sua origem, entre os povos que, colocados sob um céu puro e num solo clemente, têm uma existência fácil, tal como os índios, depois os gregos, os romanos, mais tarde os italianos, os espanhóis etc. – O homem representa demônios, deuses e santos à sua imagem; exigem a todo momento sacrifícios, orações, ornamentos, promessas feitas e realizadas, peregrinações, prosternações, quadros, adornos etc. Ficção e realidade entremeiam-se ao seu serviço, e a ficção obscurece a realidade; qualquer acontecimento da vida é aceite como uma manifestação do seu poder. Os colóquios místicos com essas divindades preenchem metade dos dias, sustentam incessantemente a esperança; o encanto da ilusão torna-os muitas vezes mais interessantes que a convivência dos seres reais. Que expressão e que sintoma da miséria inata do homem, da urgente necessidade que ele tem de socorro e de assistência, de ocupação e de passatempo! E, embora perca forças úteis e instantes preciosos em súplicas e sacrifícios vãos em vez de se proteger a si mesmo, quando surgem perigos imprevistos, não cessa contudo de se ocupar e distrair nesse exercício fantástico com um mundo de espíritos com que sonha; é essa a vantagem das superstições, vantagem da qual não se deve desdenhar.
Para domar as almas bárbaras e desviá-las da injustiça e da crueldade, não é a verdade que se torna útil, porque não lhes é dado concebê-la; é portanto o erro, um conto, uma parábola. Daí vem a necessidade de ensinar uma fé positiva.
Quando se compara a prática dos fiéis à excelente moral que prega a religião cristã e mais ou menos qualquer religião, e se representa o que seria dessa moral se o braço secular não impedisse os crimes, e o que teríamos a temer, se por um único dia se suprimissem todas as leis, há de se confessar que a ação de todas as religiões sobre a moral é, na realidade, muito fraca. Certamente a culpa é da fraqueza da fé. Teoricamente e enquanto se entregam às meditações pias, todos se julgam firmes na sua fé. Mas o ato é a dura pedra de toque de todas as nossas convicções: quando se chega aos atos e se torna necessário provar a fé por grandes renúncias e duros sacrifícios, é então que se vê surgir toda a fraqueza. Quando um homem medita seriamente num delito, abre já uma brecha na moralidade pura. A primeira consideração que em seguida o detém é a da justiça e da polícia. Se passa adiante, esperando subtrair-se-lhe, o segundo obstáculo que então se apresenta é a questão da honra. Se o transpõe, pode-se apostar que depois de haver triunfado dessas duas resistências poderosas qualquer dogma religioso não terá já a força precisa para o impedir de proceder. Porque se um perigo iminente, seguro, não assusta, como se poderá recear um perigo distante e que só se funda na fé?
Na religião dos gregos a moral reduzia-se a bem pouco, tudo se limitava quase ao respeito pelo juramento, não havia moral nem dogmas oficiais; contudo não vemos que a generalidade dos gregos fosse moralmente inferior aos homens dos séculos cristãos. A moral do cristianismo é infinitamente superior a todas as das outras religiões que jamais apareceram na Europa, mas quem poderá crer que a moralidade dos europeus melhorou na mesma proporção, ou seja, atualmente superior à dos outros países? Isso constituiria um grande erro, porque se encontra entre os maometanos, os guebros, os índios e os budistas pelo menos tanta honestidade, fidelidade, tolerância, serenidade, benevolência, generosidade, abnegação como entre os outros povos cristãos. De mais, seria longa a lista das bárbaras crueldades que acompanharam o cristianismo, cruzadas injustificáveis, exterminação de uma grande parte dos habitantes primitivos da América e colonização dessa parte do mundo com escravos negros, arrancados sem direito, sem a sombra de um direito, à pátria, à família, ao solo natal e condenados por toda a vida a trabalhos forçados, perseguição incansável dos heréticos tribunais de inquisição que bradam ao céu vingança, noite de S. Bartolomeu, execução de 18 mil holandeses pelo Duque de Alba etc., outros tantos fatos pouco favoráveis que deixam incerteza sobre a superioridade do cristianismo.
A religião católica é uma instrução para mendigar o céu, que seria muito incômodo merecer. Os padres são intermediários dessa mendicidade.
A confissão foi um pensamento feliz; porque na verdade cada um de nós é um juiz moralmente perfeito e competente, conhecendo exatamente o bem e o mal, e mesmo um santo, quando ama o bem, detesta o mal. Isso é verdade com respeito a cada um de nós, contanto que o inquérito seja aos atos de outrem e não aos nossos próprios, e que se trate apenas de aprovar e reprovar, e que os outros se encarreguem da execução. Portanto, qualquer um pode, como confessor, tomar absolutamente o lugar de Deus.
As religiões são necessárias ao povo, e são para ele um benefício inapreciável. Mesmo quando elas querem se opor ao progresso da humanidade no conhecimento do verdadeiro, é preciso desviá-las com todas as atenções possíveis. Mas exigir que um grande espírito, um Goethe, um Shakespeare, aceite convictamente impliciter, bona fide et sensu próprio (Implicitamente, de boa-fé e no verdadeiro sentido) os dogmas de uma religião qualquer é exigir que um gigante calce o sapato de um anão.
Na realidade, qualquer religião positiva é usurpadora do trono que pertence à filosofia. Por isso os filósofos hão de estar sempre em hostilidade com ela, embora tenham de considerá-la como um mal necessário, um amparo para a fraqueza mórbida do espírito da maior parte dos homens.
Deus, na nova filosofia, representa o papel dos últimos reis francos com os seus mordomos-mores; é apenas um nome que se conserva para maior proveito e comodidade, a fim de se assegurar mais facilmente o caminho no mundo.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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